A Maldição do Lobo Vermelho - Capítulo 29 - A besta vermelha
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No momento em que entrou na floresta, Ílios pôde sentir. Camuflado entre os odores das folhas secas e da terra úmida, o cheiro forte que tecia uma linha vermelha em meio aos tons de verde e marrom. A trilha de sangue era sutil demais para um humano comum captar, mas forte o suficiente para que qualquer lobo notasse, mesmo com a confusão que essa área aplicava aos sentidos. Como havia imaginado, Kardia não entraria nessa armadilha sem um plano e, graças a isso, não seria difícil encontrar o castelo de Netuno.
Enquanto seguia os rastros, a breve sensação de alívio foi subjugada pelo remorso crescente que contorcia as entranhas. Essa não era a primeira vez, nos momentos em que a razão faltava ao líder, Mirrado assumia a dianteira, sem se importar com a própria segurança ou com as intrigas e fofocas que suas ações “arrogantes” gerariam.
Desde o fatídico incidente, Kardia vestiu a carapuça que lhe deram, escondendo a personalidade doce e gentil sob a máscara petulante que pintaram em sua face. Ílios estava ciente dos motivos e por isso não o impediu de atuar nesse papel, contudo, ser apenas um expectador não fazia com que a culpa diminuísse. Na verdade, ver um de seus melhores amigos carregar um fardo tão pesado sozinho só aumentava o ódio que sentia por si mesmo.
Esses sentimentos complicados vinham alimentando a muito tempo a fera que habitava nas profundezas de seu coração. Quanto mais amargo o sabor do remorso, com mais violência forçava as celas que a mantinham cativa e com mais vigor arranhava as paredes escuras, desenterrando memórias dolorosas que o lobo ansiava esquecer.
“…Eu vou me tornar um guerreiro muito poderoso. Não! O mais poderoso de todos e irei proteger vocês!”.
Dentro da mata densa, as cenas do passado dançavam vivas diante dos olhos, amargando o estômago e deixando um gosto de fel na boca. A voz infantil repetia diversas vezes a promessa que não foi capaz de cumprir, amaldiçoando os passos errantes que avançavam pela trilha.
Perdido em pensamentos, a consciência oscilava entre as sombras da floresta e a fumaça que impregnava as masmorras. O cheiro salgado do suor e o som dos arcos retesados sobre as árvores se misturavam com os gritos das crianças e o odor de carne queimada, entrelaçando as memórias antigas com o presente que se desenrolava diante dos olhos.
O ruivo já não podia confiar nos instintos e estava ficando cada vez mais difícil manter a lucidez. Mesmo que escapasse da emboscada e corresse pelo restante da trilha, não tinha certeza se poderia manter a consciência até chegar ao castelo. Na hipótese mais plausível, sucumbiria bem antes disso e acabaria por atacar o que estivesse em seu caminho.
A mente agitada não tinha mais forças para resistir às ilusões e por um momento, Ílios se viu reinando sobre um castelo de chamas. Vários corpos carbonizados decoravam o piso negro ao passo que os cránios decepados adornavam as paredes escarlate. A sua destra, a haladie e o machado de guerra descansavam sobre uma pilha de ossos esbranquiçados enquanto o xale conhecido apodrecia em uma poça de sangue.
— NÃO!! — berrou enquanto tentava dissipar as imagens horrendas da cabeça.
Logo acima, as cordas se esticaram com mais força, espalhando o cheiro doce do veneno em que foram embebidas. Esse era o mesmo odor que impregnava a ferida de Dásos e foi nele que o lobo amarrou o restante da razão que possuía. Seu corpo todo estava tremendo e a respiração ficou fora de controle, preferia morrer a pintar um quadro tão hediondo quanto aquele.
Ílios encheu os pulmões e focou o raciocínio da melhor maneira que pode: “Se uma flecha foi o suficiente para incapacitar um animal daquele porte… talvez…”. Sobre os galhos, deveriam ter no mínimo dez setas armadas, fora as tantas outras que esperavam sua vez dentro das aljavas. Se o corpo resistisse a essa carga, havia uma possibilidade de que o choque despertasse sua consciência e caso não suportasse, provavelmente morreria na hora. As duas possibilidades evitariam o pior, então valia a pena tentar.
— O que estão esperando? — o animal rosnou — Se continuarem parados aí eu vou queimar todos vocês vivos.
O ruivo podia ouvir o bater descompassado dos corações que aguardavam o momento certo para atacar. Os humanos empoleirados nas árvores ao redor não eram soldados nem mesmo caçadores e apesar de habilidosos com o arco, sabiam que não poderiam lidar com uma investida direta do lobo. No meio da mata fechada, a única chance real que tinham de acertar um alvo tão veloz, era aproveitando as pequenas clareiras que se formavam entre os arbustos e ele estava parado em uma delas nesse momento.
— Agora! — soou uma voz feminina vinda do alto.
Ílios estava preparado e não recuou quando o silvo agudo embalou a primeira seta que desceu em sua direção. “Dásos, espero que isso lhe dê mais algum tempo”, pensou enquanto apertava os olhos e firmava as patas no chão macio. Os outros arcos rangeram impacientes e as flechas brilhavam sobre as copas verdes, no final das contas, humanos e lobos não eram tão diferentes assim, ambos estavam dispostos a arriscar a própria vida para proteger aqueles com quem se importavam.
Os sons cortantes foram abafados pela revoada dos pássaros que abandonaram a floresta e logo depois, suprimidos pelo silêncio. Ninguém ousava se mexer, ou melhor, não podiam movimentar uma célula sequer do corpo sem que a pressão esmagadora queimasse até os ossos. Isso, porém, não impediu que as várias hastes fincadas no chão vibrassem enquanto suas penas se contorciam com o calor emanado pela besta.
O rosnado grave se arrastou junto ao cheiro forte que encharcou a escuridão, abrindo distância entre o domínio moral e aqueles pares de olhos arregalados. As passadas lentas e pesadas seguiram o caminho marcado entre as árvores até o lago, queimando os arbustos e sufocando qualquer ser vivo que não se afastasse a tempo.
— Porque está tão mal humorado? — o boto falou com um tom manhoso — Finalmente seu amiguinho partiu dessa para uma melhor?
Debruçado sobre as muralhas escuras, o homem dava as boas vindas ao lobo enquanto observava as labaredas consumirem a floresta. Ílios tinha conseguido chegar à mansão de Netuno mas o fio que prendia a razão havia se rompido.
— Desça! — o lobo rosnou.
Netuno suspirou enquanto apoiava o queixo sobre o dorso das mãos, evidenciando o pouco caso que deu a ordem.
— Ah… porque eu deveria desperdiçar meu precioso tempo com você? — zombou — Eu sou um homem recém casado… tenho obrigações muito mais interessantes a cumprir.
Um calafrio percorreu a espinha de Ílios, eriçando os pelos mais escuros das costas e transformando as íris em um fino contorno verde sobre as pupilas dilatadas.
— Eu vou te matar… — sussurrou entre dentes.
— Você pode tentar… — Netuno riu apontando para a ponte.
O caminho estreito de madeira ficava suspenso sobre o lago e ligava a terra aos grandes portões da mansão. Ele não era guardado por soldados, mas emanava uma aura perigosa, quase como se confessasse ao visitante que escondia uma armadilha letal. A fera não precisava de um convite e esta provocação atiçou um pouco mais seus instintos.
O fogo que consumia sua sanidade se espalhou pelo ar, esquentando as águas inquietas. A mera intenção de cruzar a ponte foi o suficiente para que a barreira mostrasse seu poder e, quando o animal pisou na primeira tábua de madeira, o líquido reagiu. As correntezas convergiram para um grande redemoinho no centro do lago e várias bolhas subiram à superfície, anunciando o que estava por vir.
— Você é corajoso… eu gosto disso… Vamos ver até onde consegue chegar — o boto desafiou.
Ílios estava fora de controle e a voz presunçosa de Netuno o impeliu sobre o caminho instável. Os ventos fortes repuxavam as cordas que ligavam uma margem à outra enquanto os laços, que mantiam as peças de madeira unidas, estalavam e se partiam a cada passo do animal. Abaixo dele, o vortex crescia cobiçoso, atiçando das profundezas do lago vários turbilhões transparentes.
Essa, com toda a certeza, era uma visão inesperada. Os grandes tornados giravam implacáveis contornando a ponte ao mesmo tempo que se erguiam nas alturas e logo depois se jogavam com violência sobre o alvo. Eles pareciam ter vida própria e moviam-se de um lado para o outro, engolindo, sufocando ou empalhando o que estivesse no caminho.
Ílios conseguiu desviar com certa facilidade dessa primeira onda de ataques, mas apesar de serem feitos de água, o peso e a velocidade com que os tentáculos se contorciam foram mais que o suficientes para perfurar as várias tábuas atingidas, deixando vãos enormes entre as peças de madeira.
O lago não era tão fundo, em outra ocasião não seria um grande problema caso caísse da ponte, mas o redemoinho que crescia abaixo de seus pés sugava e moía tudo que tocava e, em pouco tempo, a paisagem pacífica se transformou em um caótico emaranhado de entulhos e lama, tornando impossível nadar por ali.
A magia defensiva se restringia às águas ao redor da muralha, mas a violência dos ataques havia revirado os jardins e derrubado as árvores que cercavam a clareira, aumentando seu poder destrutivo. Se as coisas continuassem nesse ritmo, seria impossível ultrapassar a parede de destroços.
O lobo acelerou em direção ao castelo, desviando das rajadas monstruosas que desciam sobre a ponte. Os turbilhões mais finos cortavam como lanças, perfurando a madeira antes de voltar ao lago; já os maiores, despencavam pesados, engolindo os escombros e alimentando os próximos ataques com farpas afiadas.
As tábuas maciças resistiram bem as primeiras investidas, mas as cordas que cingiam as peças não suportariam muito mais. Vários nós já haviam arrebentado e outros tantos ameaçam ceder, Ílios precisava chegar pelo menos na metade do caminho antes que a ponte terminasse de ruir, ou não conseguiria saltar para o outro lado.
Como se pudessem ler os pensamentos do animal, dois tentáculos desviaram da rota e colidiram com as tábuas que marcavam o centro da construção. A besta cambaleou, mas conseguiu recuperar o equilíbrio a tempo de desviar do terceiro, que mirava seu pescoço.
— Muito bem!! — Netuno bateu palmas animado. — Mas agora você não tem mais para onde ir! O que pretende fazer?
O peso do ataque acabou por arrebentar boa parte dos laços que prendiam as tábuas do lado esquerdo, transformando o caminho a frente em uma precária corda banda. As ripas que sobraram perigavam cair a qualquer momento, se não recuasse agora, ficaria ilhado sobre o vortex gigantesco e seria impossível escapar de uma nova investida.
O lobo rosnou alto e suas pupilas dilataram, o alvo estava cravado no homem e nada poderia impedi-lo.
— Ah! — O boto inclinou a cabeça e sorriu. — É uma pena, eu estava começando a gostar de você.
As águas se moveram rapidamente e um grande tornado subiu na direção do animal. Não havia como desviar e tudo o que pode fazer foi prender a respiração antes que o turbilhão o engolisse.
— Bem… já demorei demais. Se me der licença… preciso levar um lanchinho para a minha Pitanguinha… ela deve acordar faminta depois de ter se esforçado tanto…
Um sorriso malicioso iluminou o rosto de Netuno, que fez uma pequena reverência antes de se virar e caminhar de volta ao pátio. Mesmo que suas palavras não contassem a verdade, era divertido imaginar o tipo de expressão que Kardia faria ao ouvi-las e até as broncas que ganharia de Nice, se ela estivesse lá para defender o ruivo.
— Ah… — suspirou.
Essa dor que espremia o peito não era comum, aliás, não podia dizer que já a sentiu alguma outra vez, mas definitivamente, conhecia a sua fonte. Guiado pelas palavras amargas da esposa mais fiel, esse sentimento estranho se esgueirou pelos ouvidos e agora espreitava o coração, buscando uma brecha para envenenar o dia de Netuno.
Balançando a cabeça, tentou afastar os pensamentos sufocantes, mas por algum motivo, o ar se recusava a passar pela garganta. A sensação desconfortável não diminuiu, mesmo depois de abrir os botões da camisa e um mal pressentimento o fez correr de volta à muralha.
— Mas que merda é essa? — tossiu abanando as mãos.
As pedras escuras brilharam, molhadas pelo bafo quente que subia do lago. Era difícil se aproximar do guarda corpo e uma névoa pesada embaçava os contornos da figura que caminhava entre os destroços. Nos minutos em que Netuno esteve perdido em pensamentos, a atmosfera mudou completamente e uma pressão monstruosa havia suprimido o poder que agitava o centro das águas.
O homem estreitou os olhos, mas se recusava a acreditar no que via. Cortando lamaçal em dois, um brilho dourado desenhava uma trilha seca até os portões do castelo. Não havia mais sinal do redemoinho que causou toda aquela destruição e os tornados que demoliram a ponte, agora sopravam apenas vapor quente para o alto.
— Não p-pode ser… — o boto gaguejou.
Entre as paredes fumegante, a luz dourada acrescentava tons alaranjados ao pelo vermelho e fazia com que os olhos esmeralda cintilassem como o metal. Estava claro que aquele não era o mesmo lobo que foi engolido pelas águas, sua presença não seria capaz de causar tamanha opressão. Netuno chegou a se questionar se essa aura assassina podia mesmo ser emitida por um mortal, durante toda a sua vida, poucas vezes sentiu uma ameaça tão grande e em todas elas, um dos generais celestes estava presente.
— Vocês só podem estar de brincadeira… — O boto correu para dentro do castelo. — Malditos velhos decrépitos, eles realmente não sabem quando parar.
Três assobios curtos reverberaram pelas paredes da mansão e em poucos minutos, o som de passos e portas se fechando soaram de todas as direções. Netuno chegou rápido ao pátio interno, mas mal teve tempo de alcançar a lança que repousava sobre a cabeceira da cama antes que o portão principal recebesse o primeiro golpe.
Farpas voaram da madeira escura ao passo que os ponteiros tremeram dentro das dobradiças de metal. A área externa estava vazia, o que amplificava o rosnado da fera e o som abafado que as patas enormes faziam ao pegar impulso para o novo ataque.
— Mais que merda! — cuspiu.
Sua intenção era confrontar o Urutau enquanto as portas reforçadas seguravam o visitante indesejado, mas na atual situação, talvez fosse melhor garantir que suas esposas e filhos estivessem seguros nas áreas mais internas da mansão. Não que estivesse com medo de enfrentar o lobo, já havia lutado em mais batalhas do que o animal poderia sequer sonhar, mas também não tinha saudade do tempo em que vivia apenas para isso.
Um novo estrondo sacudiu o hall de entrada. Desta vez, além das lascas da madeira, pregos e fragmentos da rocha na qual os portões estavam fixados se espalharam pelo chão. Os domínios da criatura também estavam ficando mais intensos, contaminando o ar de dentro das muralhas com o calor sufocante que envenenava o lado exterior.
— Mais que cachorrinho mal educado! — Netuno parou na frente do portão. — Entre! Eu vou te ensinar a ter bons modos!
Publicado por:
- GSK
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Escrevendo, desenhando, editando e fazendo mais algumas artes por ai.
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