A Maldição do Lobo Vermelho - Capítulo 30 - Cinzas no ar
— ÍLIOS! — Dásos chamou assim que abriu os olhos.
Ofegante, virou a cabeça de um lado para o outro, mas o levantar repentino fez com que o mundo girasse ao seu redor. Espalmando o chão, piscou algumas vezes, tentando se acostumar novamente à luz do dia, contudo, a pequena silhueta o fez acelerar o processo.
— Ele partiu há algum tempo… — Moira explicou.
O comandante ficou confuso por alguns segundos. Não conhecia a mulher ajoelhada ao seu lado, nem suas intenções e para piorar, ela estava encharcada de sangue. Prevendo o mal entendido, Moira levantou as mãos e se afastou, mesmo que o lobo tivesse assumido a forma humana ainda era terrivelmente amedrontador.
— N-não é nada disso que você está pensando! Eu j-juro que posso explicar.
Claramente ela era uma das habitantes do povoado que o lobo destruiu, mas não parecia estar ali para lhe fazer mal, na verdade, levando em conta o cheiro forte que o vidro vazio em suas mãos emanava, era mais provável que fosse o contrário. O comandante não entendia muito bem de venenos, mas esse odor era muito parecido com o que impregnava a sala de Mirrado quando estava misturando poções e fazendo antídotos.
“Então ele conseguiu…”, o homem pensou e foi inevitável sorrir. Ele sabia que, enquanto estava desacordado, Kardia fez todo o possível para aliviar sua dor e permaneceu ao seu lado até que a única alternativa fosse ceder às chantagens do boto. Aliás, Ílios também não o abandonou, mesmo que isso significasse perder o seu querido “filhote de humano”.
— Ah…
Dásos resmungou e esfregou o rosto enquanto sentava, a cabeça estava pesada demais para simplesmente correr a procura do líder. Precisava primeiro entender, de tudo aquilo que ouviu, o que de fato aconteceu na vida real e o que pertencia apenas ao campo dos sonhos.
— Pois então comece… — ordenou.
Sua voz saiu mais grave do que o habitual, a garganta estava seca depois de todo esse tempo desacordado. Ele pigarreou tentando afastar a sensação incômoda e logo percebeu o copo trincado que tremia tímido à frente.
— B-beba um pouco, vai lhe fazer bem… É-é só água, de qualquer forma — a mulher se apressou em completar — não tenho a intenção de te ferir.
Pelo que Moira pode perceber, era um hábito dos lobos sufocar as pessoas com suas desconfianças. Ela teve a mesma impressão com Ílios, contudo, as íris esmeraldas lhe pareceram mortalmente mais afiadas do que o belo par amarelado que aguardava paciente. Não que fossem amigáveis, longe disso, mas a aparência voluptuosa do guerreiro tornava difícil se concentrar em algo mais.
Dásos cheirou o líquido sem desviar o olhar. As roupas sujas de sangue e as flanelas recém amarradas sobre o ferimento em seu ombro corroboravam a afirmação da mulher, além do que, alguns fragmentos de memória também testemunhavam em favor de suas boas intenções. Depois de tomar toda a água, interrompeu os pensamentos libidinosos da outra:
— Ainda estou esperando.
— A-ah claro… — Moira balançou a cabeça envergonhada.
Precisava recuperar a compostura e assim o fez enquanto relatava os acontecimentos passados.
O comandante a ouviu em silêncio, preenchendo as lacunas que lhe escaparam com as novas informações, ao que tudo indicava, estava mesmo consciente na maior parte do tempo e isso não era nada bom. O mal pressentimento que o acordou já havia sussurrado o ominoso dever, entretanto, Dásos ainda não estava preparado para cumprir a terrível promessa que fez ao líder.
— Como está o filhote? — o homem disse com um peso no coração.
Na atual situação, talvez o pequeno garoto fosse o único capaz de trazer Ílios de volta a consciência, se ele morresse, pior, se ele morresse por causa do ruivo, as chances de evitar a tragédia que estava por vir seriam quase nulas. Moira abaixou a cabeça e apertou a beirada da blusa. Tinha feito tudo que estava ao seu alcance, mas as feridas eram graves demais.
— Se o menino resistir as próximas horas já será um milagre… — ela suspirou.
— Você disse que tem alguém no castelo que poderia ajudar. — O brutamontes levantou. — Vamos levá-lo até el…
Uma forte vertigem o desequilibrou e Dásos precisou apoiar-se na mulher para não cair.
— Você está bem? — Moira falou preocupada — Sente-se, você ainda está fraco, não deve fazer esforço por enquanto.
— Eu estou bem — disse sacudindo a cabeça — o menino precisa viver! Eu vou levá-lo…
— Não se preocupe — ela interrompeu — como eu te disse, o outro lobo já foi buscar ajuda no castelo. Se você sair assim… só vai piorar as coisas.
Era irritante, mas ele precisava concordar, não tinha recuperado as forças completamente e nesse estado, não seria páreo para o líder dos lobos. O melhor a se fazer era proteger o garoto e arrumar uma forma de mantê-lo vivo enquanto Ílios lutava contra si mesmo. Com muita sorte, a fera descontrolada continuaria desperdiçando sua energia com o boto e assim, eles ganhariam algum tempo.
— O quão forte esse tal de Netuno é? — Dásos perguntou de forma fria.
— O maldito é o homem mais forte que já conheci… M-mas o outro lobo parecia muito forte também… — Moira se apressou em concertar.
O comandante estendeu a mão e aparou a fuligem que começava a cair dos céus. Mesmo distante, podia sentir a força brutal dos domínios de Ílios e toda a tristeza e amargor que alimentavam o fogo da besta.
— Eu realmente espero que ele seja… Ou não vai sobrar nada além de cinzas nesse lugar.
— Mas do que você está falan…
Dásos tapou a boca de Moira com uma das mãos enquanto fazia o sinal de silêncio com a outra. Ela arregalou os olhos, mas logo entendeu e concordou com a cabeça, alguém estava espiando a conversa dos dois.
— Saia daí enquanto estou pedindo com educação — o comandante ordenou.
Já havia notado o caminhar hesitante, mas o humano não representava perigo iminente e, além disso, estava mais interessado em ouvir a história de Moira. Entretanto, à medida que aquela pessoa se aproximava, um cheiro familiar se sobrepunha ao odor da madeira queimada e agora não tinha mais dúvidas.
— Bem… se você prefere desta forma…
O comandante inclinou a cabeça e estralou o pescoço. A intenção era clara e a ameaça foi mais do que suficiente para que Moira interviesse.
— Já chega — disse ao passar o braço na frente do homem — assim só vai afastar quem quer que seja.
Dásos levantou uma das sobrancelhas, mas a mulher parecia decidida. Não era a primeira vez que via esse tipo de expressão, lobas e humanas eram exatamente iguais nesse ponto. Apenas com um olhar, podiam insultar e desmerecer todas as ações que achassem infantis demais para ceder alguma palavra de repreensão. Ele não pode evitar sorrir ao pensar que existia mais alguém que o encarava com os mesmos olhos desdenhosos.
— Que seja, faça como desejar. — Curvou a cabeça. — Mas… isso faz um pouco de cócegas…
Moira acompanhou a direção apontada e corou ao perceber que estava apertando o peito do homem. Rapidamente puxou a mão e deu alguns passos tortos, tirando a imagem lasciva do seu campo de visão. Estava envergonhada demais para continuar admirando o rosto sorridente, mesmo que isso fosse um desperdício.
— B-bem… — pigarreou para fortalecer a voz — eu sei que você está aí. Nós não vamos te machucar, então pode sair.
Ela estendeu a mão, sinalizando o compromisso, mas logo a recolheu quando a figura saiu das sombras.
— Ai meu deus!!! — Tapou a boca com ambas as mãos. — Nice!!
— Moira! — a outra respondeu.
As mulheres correram, uma de encontro à outra e se abraçaram de forma demorada.
— Como você escapou do castelo? — Moira perguntou eufórica.
— É uma longa história. — Nice riu.
Dásos observou em silêncio o máximo que pode, mas tinha perguntas demais para ser compreensivo.
— Eu adoraria ouvir sua história, principalmente a parte em que você conseguiu essa linda mecha de fios vermelhos.
Ele apontou para os longos cabelos ruivos que a mulher segurava em uma das mãos. Apesar de não ter se aproximado, sua aparência intimidadora e a evidente desconfiança com que encarava o tufo fizeram Nice tremer. Instintivamente, ela passou os dedos sobre o pescoço e um calafrio subiu pela espinha.
Moira reagiu de imediato, se colocando na frente da outra:
— Fique aí! — ordenou ao puxar uma pequena faca da cintura — Não se aproxime!
— Achei que estávamos nos dando bem… — suspirou ao caminhar até as duas. — Bom, não importa. O tempo acabou.
Era óbvio que não teriam chances contra o brutamontes, mesmo assim, Moira manteve a faca esticada.
— Corra, Nice! Eu vou segurá-lo o máximo que eu puder.
Dásos estreitou os olhos, não que fosse ferir uma das duas, no máximo iria carregá-las a força até a cabana em que o garoto estava. Não gostava de ser rude com mulheres, mas toda essa situação já estava passando dos limites.
— Tudo bem, Moira. — Nice sorriu e segurou gentilmente a mão da amiga. — O dono desse cabelo me enviou para ajudar e me pediu para passar um recado.
— Como assim? — Moira abaixou a arma.
Nice caminhou até o homem e fez um sinal para que ele abaixasse, o brutamontes ergueu uma das sobrancelhas, mas obedeceu ao pedido. Ela sussurrou algumas palavras em seu ouvido e não pôde evitar se divertir enquanto o fazia.
— Ah, esse pestinha! — Os olhos de Dásos brilharam em excitação.
Moira piscou algumas vezes sem entender. De soslaio, fez uma pergunta silenciosa a amiga, mas ela apenas deu de ombros. O comandante deu meia volta e seguiu o rumo de onde podia sentir o cheiro de Fengari, enquanto gargalhava e balançando a cabeça.
— Eu estou ainda mais curioso para ouvir o restante da história, mas por hora, preciso de sua ajuda — falou sem diminuir os passos. — Se tudo der certo, poderemos salvar a minha tribo e a sua, mas tudo depende de quão boas são suas habilidades de costura.
Moira esperou que ele estivesse a uma distância segura e perguntou perplexa:
— O que você falou para ele?
Nice sorriu e tocou os lábios com o dedo indicador:
— É um segredo! Agora vamos, parece que ele está com pressa.
Enquanto andavam, Moira resumiu a condição do garoto e os primeiros socorros que prestou. Ambas concordaram que o pequeno não teria chances se continuasse ali, a situação por si só já não era boa e agora, um incêndio começava a nublar o céu da floresta. Por mais que o povoado ficasse fora da área de mata fechada, era inevitável que o fogo os alcançasse e a única alternativa seria fugir pelo rio.
No entanto, as águas controladas pelo boto não permitiam que os botes se afastassem muito da margem e mesmo que isso fosse o suficiente para aplacar o calor, não o salvariam da fumaça tóxica que se espalhava pelo ar.
— Tudo bem, o lobo que eu conheci no castelo conseguiu subjugar Netuno. Acredito que finalmente possamos sair dessa floresta com a ajuda dele e… Meu deus…
Nice arregalou os olhos e tapou a boca com uma das mãos ao entrar na cabana em que Fengari permanecia desacordado. Por mais que Moira tivesse lhe dado uma prévia, ver uma criança naquele estado não era nada fácil para uma mãe separada do filho.
— Eu fiz o meu melhor… mas…
— Eu sei, minha querida — Nice consolou — se não fosse por seus cuidados ele já teria partido. Pobrezinho… ainda bem que sempre ando com minhas agulhas.
— Você pode costurar-lo? — Dásos se apressou.
— Não fale como se ele fosse um pedaço de tecido rasgado. Você não recebeu boas maneiras? Bem que a Pitangui… digo, Kardia falou.
O homem perguntou sorrindo:
— E o que mais ele disse?
— Nada demais! Busque água e panos limpos. Moira, pegue o carretel e dobre um metro de linha em quatro pontas, vamos ver o que pode ser feito aqui.
O menino não era um pedaço de pano rasgado, mas foi costurado como se fosse. Às pressas, as mãos hábeis cingiram com destreza cada parte danificada e ao final do último nó, a colcha de retalhos de carne estava como nova. Contudo, eles não tiveram muito tempo para admirar o trabalho, se não saíssem naquele momento, ficariam presos na fogueira que a casa de madeira estava prestes a se tornar.
A fumaça já havia envenenado o ar do povoado e as centelhas carregadas pelo vento começavam a atiçar os telhados de palha. Os moradores entravam e saiam correndo das casas destruídas, buscando levar o que pudessem antes que o fogo consumisse o pouco que ainda restava. Rio abaixo, os botes partiam, transportando mulheres silenciosas e crianças em pranto.
— Maldição! — Moira cuspiu — levaram até a minha canoa. Como vamos fazer para sair daqui? Não dá para nadar com o menino nesse estado.
— Não se preocupem, eu vou levar vocês até a outra margem — Dásos falou enquanto se transformava — coloquem o garoto nas minhas costas e depois subam.
Ainda que Moira já o tivesse visto nessa forma, era inevitável não se espantar com a grande fera vermelha refletida sobre as águas escuras. Nice, por sua vez, tentou manter a calma, não era novidade ter um belo homem virando uma besta selvagem diante dos olhos.
— Não vai dar certo — a grávida repreendeu após se recuperar do choque — veja.
Mesmo que remassem com todas as forças, os barcos não conseguiam atravessar o centro do rio e por isso, apenas deixavam que a correnteza os arrastasse até o limite permitido pelo boto. As mulheres conheciam bem as linhas invisíveis que as mantiam cativas e também o lamaçal para onde os habitantes estavam fugindo. Aquele lugar era onde a barreira de Netuno terminava e também o túmulo de muitos amigos.
Moira deu um passo à frente:
— É a barreira. Só dá para chegar até ali ou descer até o lugar proibido.
— Subam logo! Kardia e eu atravessamos pela outra margem, provavelmente essa barreira não tem efeito sobre nós — Dásos falou impaciente.
— Tem razão. Ela só prende as noivas e os filhos de Netuno… Então você e o garoto podem se salvar — Nice explicou.
— Que besteira é essa? Você está dizendo que devemos partir e deixar vocês duas morrerem aqui, é isso? — o grande lobo rosnou alto.
As duas se entreolharam, pelo visto existia uma outra forma, mas era tão dolorosa quanto morrer asfixiada pela fumaça.
— Tem outra saída — Nice suspirou — mas, leva direto ao castelo.
— Ótimo! É para lá mesmo que eu pretendia ir. Agora parem de enrolar — rugiu.
— Eu prefiro morrer a entrar naquele lugar — Moira decretou.
Nice suspirou, já esperava por essa reação. Também não deseja voltar para o lugar que lutou por tanto tempo para sair, mas deixar a amiga para trás não era uma opção. Tomando fôlego, olhou fixamente para as grandes iris amareladas:
— Se nós formos com você…
— Nice, não! — Moira cortou.
A gestante balançou a cabeça e sorriu, pedindo de forma silenciosa a confiança da outra mulher:
— …Se nós formos com você… você consegue garantir que poderá nos libertar dos domínios de Netuno?
— Eu garanto que se eu falhar em fazê-lo, Kardia e Ílios não falharão!
O lobo falou de forma solene e, pela primeira vez depois de tantos anos tentando, as mulheres tiveram a certeza de que a liberdade não era mais apenas um sonho.
Publicado por:
- GSK
-
Escrevendo, desenhando, editando e fazendo mais algumas artes por ai.
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