A Maldição do Lobo Vermelho - Capítulo 01 - Entre tons de vermelho
- Início
- Todos Projetos
- A Maldição do Lobo Vermelho
- Capítulo 01 - Entre tons de vermelho
Caído aos pés de um grande jacarandá, aquela figura era uma mancha carmesim em meio a floresta. Os longos cabelos ruivos se misturavam perfeitamente aos retalhos do tecido bordô, que tremulavam sobre o peito nu. Entretanto, o tom mais intenso era o escarlate, que fluía de seu corpo ao chão, unindo-os como uma rosa sangrenta que acabara de desabrochar.
O corte profundo que abriu o ombro esquerdo, perdeu intensidade ao atravessar o peitoral, mas ainda se destacava entre os demais ferimentos e parecia um milagre não ter partido o homem em dois. Contudo, uma expressão suave repousava sobre as belas feições e se não fosse o estado deplorável do corpo e a palidez visível, poderia se passar por um viajante que apenas adormeceu enquanto descansava.
É claro, não era comum ver um aventureiro por essas bandas, muito menos um tão ferido. Apenas caçadores experientes subiam as trilhas sinuosas do monte, mesmo assim, asseguravam-se de permanecer atrás da linha invisível que delimitava a metade do caminho rochoso. Além disso, a lâmina larga que brilhava de forma ameaçadora sob a palma direita, indicava que ele também não era apenas um simples camponês perdido.
Os vários tons de vermelho que compunham a cena, evocavam sentimentos conflitantes no garoto que observava de longe. Um misto de temor e fascínio agitavam os pensamentos e, no silêncio da noite, parecia que as fortes batidas de seu coração podiam ser ouvidas a quilômetros de distância.
O pequeno não conseguia decidir se era o medo, mas sentia que estava sendo observado e por isso não era capaz de evitar se assustar com o mínimo som. Seu corpo permanecia em alerta, mas contrariando o bom senso não se afastou, na verdade, as pernas o moveram devagar até a figura ensanguentada.
Havia algo além da curiosidade em seus olhos. Uma sensação persistente e familiar que brilhava como uma fagulha incandescente atrás das pupilas, atiçando lembranças e emoções que não esperava revisitar.
A cada segundo ficava mais difícil controlar a respiração. Com medo de produzir algum som mais alto, optou por tapar boca e nariz com uma das mãos, enquanto apertava o peito com a outra, a fim de abafar as batidas descompassadas.
Como se quisesse testar os nervos do menino, um graveto se desprendeu da copa de uma das árvores próximas, arrastando vários outros pelo caminho. Apavorado, o pequeno virou-se de forma quase instantânea, mas graças aos céus, não viu nada além da escuridão da noite. Entretanto, antes que pudesse se recuperar do susto, um calafrio ominoso subiu pela espinha.
Não estava mais sozinho.
Aquela sensação angustiante, que vinha o alertando até agora, gritou nos ouvidos quando as folhas secas estalaram a centímetros das costas. Estava acostumado com a floresta e sabia como agir para se proteger do ataque de animais selvagens, contudo, não tinha muita certeza de que esta fosse uma besta comum.
A sombra gigantesca que o astro celeste desenhava no chão, dava uma ideia do tamanho monstruoso do animal. Sua velocidade também estava fora do comum, já que atravessou toda a clareira sem que o menino o percebesse. Além disso, a aura assassina que emanava era mais forte e assustadora do que qualquer outra que já sentiu.
“Talvez tenha sido essa a fera que atacou aquele homem…”, pensou.
O rosnado baixo que esquentou a parte detrás do pescoço, o convidou a abandonar esses devaneios. A respiração pesada soprou seus cabelos negros na direção do rosto, deixando evidente a impaciência da criatura.
Enchendo os pulmões de ar e a mente de coragem, decidiu que seria melhor encarar a morte de frente e com muito esforço, virou o corpo ainda rígido. No lugar em que o ruivo descansava, duas fileiras de presas afiadas e um par de olhos verdes, brilhavam envoltos por um emaranhado de pêlos. Aquela, com toda certeza, não era a mesma figura que outrora estava encostada no jacarandá, mas era fascinante na mesma proporção.
Um gigantesco lobo vermelho, do qual tanto ouvira falar.
Se as histórias fossem verdadeiras, não havia nada que pudesse fazer, a fera devoradora de homens não era um animal comum. Nem mesmo uma dúzia de soldados treinados seriam capazes de emboscar um desses sem a ajuda da magia das armas movidas a brasa e fogo. Um garoto sozinho e desarmado não teria chances nem mesmo de feri-lo.
A conclusão aterradora esfriou o estômago, quando os caninos, que eram maiores que sua mão, brilharam a menos de um palmo do rosto pálido.
— Então é assim que tudo acaba? — a criança murmurou — É mesmo uma pena…
Um sorriso desbotado curvou os lábios finos, mas logo foi substituído por uma linha mais ondulada e aberta. Estava prestes a lamentar suas últimas palavras quando um novo pensamento paralisou o som atrás dos dentes.
Mesmo tendo olhado de relance, não percebeu sinais de que a besta havia devorado alguém por ali. Estava claro que o homem de antes a ouviu se aproximar e conseguiu se esconder, mas com ferimentos tão graves, é certo que não teria ido muito longe. Se esse fosse o caso, talvez um deles pudesse escapar do final atroz.
Em um impulso inesperado, virou-se novamente e correu o mais rápido que pode para dentro da floresta, gritando:
— Fuja! Corra para longe! Eu vou distrair esse ani…
Ele não tinha se afastado nem mesmo o suficiente para alcançar os galhos mais baixos das árvores quando o lobo saltou por cima de sua cabeça, aterrissando de forma pesada sobre o mato rasteiro.
Era o fim e havia chegado mais rápido do que imaginara. A criança sabia que não seria possível escapar, mas esperava dar mais tempo de vantagem ao homem ferido. Ciente do fracasso, juntou toda a coragem que conseguiu e, pegando uma pedra pontiaguda que estava caída ao lado, ameaçou:
— Você não vai me devorar tão fácil! Não sem lutar!
Quebrando o silêncio, uma voz grave trovejou acima de seus ouvidos:
— Com quem você estava falando? Quem mais ousou me seguir até aqui?
Aquilo com certeza era inusitado e o garoto demorou um tempo até entender que o som vinha mesmo do animal.
— Você fala? Você consegue falar? — balbuciou perplexo.
— Sim! E se você consegue me entender, responda logo! Onde está o outro? Como me encontraram aqui?
As palavras vinham como rajadas de vento. Os olhos da criatura estavam ainda mais ferozes e a boca perto demais da garganta desprotegida. Mesmo assim, o menino se manteve firme e respondeu:
— Não sei quem era. E-eu apenas o encontrei caído enquanto estava caçando um coelho. T-também não estava te procurando. Quem em sã consciência procuraria uma besta como você?
— Então quer dizer que não o conhecia… mas arriscou a vida para que ele pudesse fugir? Que grande mentira! Diga a verdade, filhote de humano!
Ignorando por completo a pedra que estava apontado em sua direção, empurrou o peito do garoto com o focinho antes de continuar:
— Minha paciência é limitada, não abuse pequeno.
O movimento repentino fez com que o menino cambaleasse para trás e caísse de bunda no chão. Desse ângulo, era inevitável se sentir como uma presa prestes a ser devorada, mas mesmo que o coração estivesse repleto de medo os olhos se recusaram a desviar daquele par de íris brilhantes.
— E-eu realmente não sei quem ele era, m-mas sinto muito por não ter chegado antes… Eu poderia ter ajudado… — lamentou, abaixando a cabeça.
O animal estreitou os olhos tentando julgar as palavras:
— E por que você ajudaria alguém que nem ao menos conhece?
— É o certo a se fazer… e… — continuou com um tom mais fraco — Eu… eu gostaria muito de ter tocado nos cabelos dele…
A fera meneou as grandes orelhas pontudas, tentando desvendar a expressão complicada:
— Não me parece um bom motivo para arriscar a vida.
— Você não entenderia…
— Acho que tem razão… Mas você pode tentar me explicar, filhote.
O pequeno levantou o rosto, incrédulo no que acabara de ouvir. O animal ainda estava muito perto, mas o desejo assassino havia abandonado seus olhos e talvez fosse imaginação, mas as grandes pupilas negras pareciam mais curiosas do que assustadoras nesse momento.
— E-eles tinham a mesma cor dos cabelos da mãe… — gaguejou — antes dela partir, eu os penteava enquanto ela me contava histórias de dormir… e…
Sem aviso prévio, lágrimas escorreram pelas bochechas descoradas e o rosto frágil ganhou um ar ainda mais miserável.
“Então era isso… Patético”, o lobo afastou o focinho e caminhou devagar rumo à escuridão.
O menino permaneceu imovel, sentado no chão gelado, perdido em lembranças.
“Você é realmente patético…”, a voz conhecida ecoou de algum canto obscuro da memória e um sentimento familiar pesou sobre o coração do animal que deu meia volta. Não faria mal desperdiçar alguns segundos com esse capricho infantil.
Esticando o pescoço, resmungou:
— Se era isso que você tanto queria…
O garoto inclinou a cabeça mostrando os caminhos que as lágrimas haviam contornado. Os cabelos desgrenhados emolduravam o semblante confuso de quem não parecia entender o que estava acontecendo.
Percebendo a dúvida, o animal repetiu com um tom cansado:
— Toque-os. Era isso o que queria, não é? Mas anda logo, antes que eu mude de ideia.
O menino estava hesitante, não por medo, mas havia uma sensação estranha. De qualquer forma, o coração batia acelerado e a mente estava começando a se perder mais uma vez em lembranças agridoces.
Sem perceber, levou os dedos na direção dos fios brilhantes. Eles eram muito macios e longos o suficiente para que suas mãos desaparecessem em meio aos tufos. Perdido em memórias, acariciou com delicadeza o pescoço do lobo até que um som abafado o trouxe de volta à realidade.
O corpo do animal estava ficando cada vez mais próximo até que caiu sobre o colo do pequeno, que enfim percebeu as mãos e roupas ensopadas de sangue. Não tinha reparado, mas a criatura também estava gravemente ferida.
Com muito esforço, conseguiu desvencilhar-se da fera e sem hesitar, correu como um louco para dentro da escuridão. O lobo soltou um longo suspiro e fechou os olhos. Parecia que sua hora havia chegado e iria morrer sozinho. Não que a solidão fosse uma desconhecida, mas sempre imaginou que haveria alguém no final.
Cerca de meia hora depois, barulhos de passos puderam ser ouvidos vindo de longe. A criatura estava exausta e só tinha forças para mostrar as presas ao invasor, que parou de imediato. Os sentidos estavam confusos e demorou um pouco até que reconhecesse o intruso:
— O que está fazendo aqui? Por que voltou? — Forçou as perguntas por entre os dentes.
Ofegante pela corrida e o peso extra, a criança respondeu obediente:
— Você está muito ferido, eu trouxe um pouco de água e algumas ataduras… Posso me aproximar?
O lobo guardou as presas e não respondeu.
Entendendo a permissão, agachou ao lado de onde podia ver as feridas mais profundas e por um segundo, hesitou. Aquela cena era perturbadora, mas não era a primeira vez que via algo assim. Na verdade, o que paralisou seus dedos foi exatamente o fato de como a carne dilacerada e o sangue espalhado por todo o lugar pareciam iguais naquele dia. Até o ar ao redor do animal tinha o mesmo cheiro de ferrugem.
— Você não precisa fazer isso — o lobo recuou.
— N-não… tá t-tudo bem… eu só me distrai. — Forçando um sorriso amarelado, torceu um dos trapos que estavam submersos no balde. — Posso?
— Não entendo o porquê um filhote de humano ajudaria alguém como eu…
Arqueando a sobrancelha direita inclinou a cabeça como se a pergunta fosse totalmente descabida:
— Você está muito ferido, não poderia fazer por si só, então… eu posso começar?
— Filhote estranho… — suspirou, fechando os olhos.
O garoto fingiu não ouvir e, com cuidado, fez o melhor que pode para limpar os machucados do animal. Vez ou outra se levantava e saia correndo pela escuridão, voltando com água fresca e novos retalhos.
Esse processo de idas e vindas se repetiu pela madrugada, até ser interrompido por um atraso repentino.
— Você demorou, achei que outro tinha tomado meu lugar e o devorado.
O menino franziu a testa:
— Como pode ver, não foi este o caso. Você deve estar com fome então trouxe um pouco de água e algumas frutas… eu… eu não consegui capturar nenhum coelho, então… tente se contentar com isso aqui.
“Então foi por isso”, pensou. Aquilo realmente soava engraçado, não conhecia muitos humanos, mas todos que encontrou eram bons caçadores ou mesmo guerreiros eficientes. Nunca tinha visto um que fosse tão desajeitado antes, também era a primeira vez que um deles não estava tentando o matar.
Com a ponta do focinho derrubou a vasilha e devorou em uma bocada a goiana que rolou primeiro.
— Estão do jeito que eu gosto! — Lambeu os beiços. — Você fez um bom trabalho!
O rosto cansado se iluminou com o elogio. Sentando ao lado do grande animal o observou acabar de mastigar o restante das frutas.
— Obrigado pela ajuda — suspirou satisfeito — agora eu preciso descansar e você também deveria. Se seu rosto ficar um tom mais pálido as outras pessoas acharão que você é um espírito que assombra essa floresta.
O tom era descontraído, porém mostrava um fio de preocupação que o garoto não conseguiu perceber.
— Parece que você está bem melhor, talvez já possa se virar sozinho — respondeu emburrado — de toda forma, não precisa se preocupar, ninguém anda por essa floresta além de mim.
Aproveitando da irritação repentina, a fera resolveu se divertir às custas do outro:
— Ah, você é um pouco sentimental, não? Eu estava apenas brincando. Espere filhote de humano!
— Não sei não… Você nem perguntou meu nome — bufou — por que eu deveria continuar te ajudando?
— Realmente sentimental! — O lobo soltou uma gargalhada alta que fez seus ferimentos doerem.
— Ora, seu…!
Furioso, o garoto apanhou os objetos que tinha trago e virou para sair, mas uma cauda volumosa e pesada obstruiu o caminho. Tentou desviar para o outro lado, mas foi impedido novamente pelos tufos felpudos.
— Mais que inferno! Dá pra parar com isso? Ainda pretende me devorar depois de tudo?
Enroscando a cauda, o lobo trouxe o “prisioneiro” para mais perto e com a voz preguiçosa murmurou:
— Se eu quisesse já teria feito, não acha? Só quero te perguntar uma coisa.
— Então pergunte logo! Tenho muitas coisas para fazer em casa e… — Um ruído embaraçoso soou do estômago, interrompendo a frase.
Com uma timidez fingida o animal retrucou:
— Você ainda não comeu? Não me diga que aquele era o seu café da manhã…
— N-não… eu só estava com pressa e por isso ainda não parei para comer… — Virou o rosto.
— Então você não comeu porque correu para me ver? — O animal enfatizou as últimas palavras em um tom dramático.
Com as bochechas vermelhas e uma mistura de raiva e vergonha gaguejou:
— N-não seja ridículo! E-eu só estava com pressa te buscar isso aqui! Agora me solta!
Após se esforçar para passar por debaixo da barreira, pegou os baldes e marchou para fora da clareira enquanto o lobo o observava com um sorriso debochado. Por algum motivo, era muito satisfatório perturbar o moleque.
Em seu estado atual, não podia nem imaginar sair dessa floresta tão cedo, assim, decidiu estender a diversão mais um pouco. Estava prestes a chamar o garoto quando notou que os dois não estavam mais sozinhos.
Publicado por:
- GSK
-
Escrevendo, desenhando, editando e fazendo mais algumas artes por ai.
Se você está gostando da obra deixe um comentário, vou adorar saber 🙂
minhas outras postagens:
COMENTÁRIOS
Sua Comunidade de Novels BL/GL Aberta para Autores e Tradutores!
AVISO: Novos cadastrados para leitores temporariamente fechados. Se vc for autor ou tradutor, clique aqui, que faremos seu cadastro manualmente.