A Maldição do Lobo Vermelho - Capítulo 02 - A revoada dos abutres





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- Capítulo 02 - A revoada dos abutres
— Ansioso para vê-lo? Quem ele pensa que é? Criatura idiota! Eu jamais voltarei lá! — resmungava consigo mesmo — Se ele está tão bom para zombar dos outros já deve poder se virar sozinho!
Caminhando de volta para casa o estômago roncou novamente e ele soltou um longo suspiro. Já havia algum tempo desde que conseguira caçar com sucesso e os espólios eram apenas uma agradável lembrança. Além disso, as últimas frutas da estação foram entregues a aquela criatura mal agradecida.
Não havia outra alternativa, precisava ir à vila próxima para arrumar um pouco de comida. Apesar de ser a única opção, isso não a fazia menos irritante. Ele realmente odiava aquele lugar. Assim, com mais um longo suspiro, mudou a direção e foi até a horta que ficava nos fundos de sua casa, onde colheu algumas verduras.
Organizando os vegetais, caminhou lentamente pela senda que serpenteava entre as vastas árvores montanha abaixo.
No alto, o casebre em que vivia era a única moradia que podia ser avistada. A solidão não o incomodava e raramente descia até a vila, que fica ao sopé do monte.
Desde que sua mãe partiu, estava se virando razoavelmente bem sozinho e achava que essa era a melhor forma de viver até agora, mas era inevitável ir até as feiras vez ou outra para trocar algumas verduras por frutas ou utensílios domésticos.
Essas visitas eram sempre desagradáveis. Os moradores o tratavam com desdém e indiferença. Como se possuísse alguma doença contagiosa, as pessoas atravessavam a rua quando o viam e podia ouvir os burburinhos maliciosos atrás de si.
Quando mais jovem, lidava pior com a situação. Irritando-se facilmente, distribuia socos e pontapés a quem passasse pela frente, voltando para casa com o olho roxo e de mãos vazias.
Passado algum tempo, percebeu que era melhor ter comida na barriga do que orgulho no coração e já não caia mais nas provocações alheias. Vez ou outra, ainda podia ouvir alguns comentários desagradáveis a seu respeito e isso não o incomodava, porém, havia um tipo de comentário que não podia suportar.
Assim que terminou de descer a montanha pode avistar a vila, pequena e simples, como várias outras da região. A rua principal era de terra socada, razoavelmente apertada com pequenas barracas em ambos os lados. Nelas podiam se encontrar de tudo: mantimentos, remédios, roupas, elixires e poções.
Alguns vendedores eram animados e ostentavam suas frutas frescas a quem passava. Outros eram carrancudos e pareciam estar sempre de mau humor dizendo “se não vai comprar dê o fora!” a todos que mostravam curiosidade sobre suas mercadorias. De tempo em tempo alguma carroça dividia espaço com os pedestres fazendo-os se espremerem em algum canto. Parecia que nada havia mudado.
De cabeça baixa, caminhou até a barraca que vendia frutas. Ao ver um cliente se aproximando o vendedor levantou alegremente e exclamou:
— Olá criancinha! Você gosta de goiabas? Elas estão realmente maduras! Maravilhosas! Temos também maçãs frescas e laranja docinha! Um espetá… ah… é você? Dê o fora, não quero confusão.
— Senhor, eu não vim a procura de confusão, eu gostaria apenas de alguns mantimentos, veja, eu trouxe algumas verduras para trocar…
Mas antes que pudesse terminar o velho grunhiu:
— Não tenho interesse em fazer negócios com gente como você! Saia daqui, apenas sua presença já causa má sorte. SAIA!
O vendedor resmungava e fazia sinais para afastar o mau enquanto o pequeno recolhia suas verduras.
Abaixando ainda mais a cabeça, a fim de não ser reconhecido facilmente, o menino perambulou até encontrar uma barraca mais afastada, mas antes que pudesse chegar ao destino, uma grande carroça carregada exigia espaço e forçou os transeuntes a se espremerem nos cantos da rua.
Nesse momento, sentiu que havia esbarrado em alguém, mas não houve reclamações. Talvez porque não havia muito o que fazer nessa situação, as pessoas estavam acostumadas a serem espremidas vez ou outra e era inevitável colidir com alguém.
Assim que o veículo se afastou, as pessoas se desamontoaram, porém, antes que pudessem voltar a tranquilidade vários berros e passos apressados puderam ser ouvidos vindo na direção do grupo.
Um homem rechonchudo, de avental branco encardido, esbravejava enquanto corria:
— Eu vi que você se escondeu aí, saia seu ladrãozinho e eu lhe darei uma lição!
Mais pessoas começaram a se aglomerar para escutar o que o homem, que já estava vermelho de tanto gritar e correr dizia.
— Um ladrão?
— Aqui entre nós? Não é possível.
O burburinho começou a crescer e os cidadãos ficaram agitados.
— Tomem cuidado com as bolsas senhoras, uma peste anda perturbando a calma de nossa vila, afanando os feirantes e também as pessoas que andam distraídas por aqui — disse um homem com um grande sorriso malicioso que havia se esgueirado sabe-se lá quando para bem próximo do garoto.
Ele era alto e magro e estava completamente vestido de preto. Uma figura comum mas que emanava uma aura perversa.
Em pouco tempo, um grande círculo de pessoas se juntou no local.
— Com licença senhor, eu preciso voltar aos meus afazeres — o menino falou calmamente.
— Hmm e porque eu permitiria que você saísse? Não vê que temos um larápio escondido entre nós? Todos aqui são suspeitos — disse o homem de preto.
— Deve estar havendo um mal entendido, senhor. Eu cheguei aqui antes dessa confusão, eu acabei de sair da barraca de frutas, veja, o vendedor está logo ali. Ele poderá confirmar.
O garoto apontou para a primeira barraca que havia visitado, logo que chegou na feira.
Todos olharam na direção indicada e o vendedor apontou para o próprio rosto:
— Eu? Ah sim! O garoto realmente veio a minha barraca, mas eu não vendi nada a ele! Não me entendam mal, eu não faço negócios com esse tipo de gente.
Assim que terminou de falar, fez vários sinais contra a má sorte, que foram repetidos por alguns transeuntes ao seu redor. O menino se esforçava para se afastar, mas o caminho era constantemente bloqueado.
O burburinho continuou:
— De quem ele está falando?
— Oh, você não o reconheceu? É aquele moleque que vive no topo da montanha.
— O que? Você quer dizer que esse menino é o filho da bruxa?
— Sim. É ele mesmo!
O garoto se esforçou mais uma vez para sair daquele círculo, mas o homem que estava vestido de preto o bloqueou.
— Senhor, deixe-me sair, eu realmente não estou à procura de confusão — rosnou entre dentes.
— Ainda não moleque, ainda não provamos nada. Vamos perguntar ao comerciante furtado como era o ladrãozinho que o atacou, com certeza ele poderá dizer se você é inocente afinal — retrucou o homem emanando perversidade.
A multidão murmurou em aprovação.
Apontando para o rechonchudo ele indagou:
— Diga-nos senhor, foi esse garoto que o surrupiou?
O comerciante ainda estava afobado e a vermelhidão em suas bochechas não havia passado completamente. Com a voz um pouco engasgada ele respondeu:
— Veja bem, eu não pude ver completamente o delinquente. Ele era rápido como notícia ruim…
As pessoas se agitaram novamente:
— Mas se ele não viu quem o roubou, como poderá o reconhecer?
— Sim, se ele não viu estamos aqui perdendo o nosso tempo.
— Isso é realmente desconcertante.
Sentindo que as coisas não iam bem o vendedor se apressou:
— Vejam bem, não é como se eu não tivesse visto o ladrão, só não o vi completamente…
— Então senhor, o descreva, as pessoas estão ficando impacientes — disse o homem de preto.
— Sim, sim… — hesitante o vendedor continuou — ele era pequeno, estava envolto em trapos escuros e era muito rápido, nem parecia humano.
“Oh” — em uníssono a multidão exclamou enquanto se benziam afastando o mau.
— Hmm interessante. Muito parecido com você, não é mesmo garoto? — provocou o homem alargando um sorriso malicioso, enquanto o empurrava no centro da multidão — Ouvi falar coisas assustadoras a respeito de sua mãe, moleque. Se metade delas forem verdadeiras, a chance de você nem ao menos ser humano é alta, afinal.
— CALE A BOCA! — berrou o menino — Você não tem direito de falar assim da minha mãe! Ela não fez nada com voc…
Antes que pudesse terminar, um poderoso chute atingiu em cheio seu estômago, o mandando a metros de distância. As pessoas que estavam naquela direção afastaram-se rapidamente.
— Mais cuidado! Ele poderia ter nos atingido!
— Isso mesmo! Ensine bons modos a este pivete!
O ser humano possui um interesse sádico por sangue e quando estão em bando esse desejo costuma ficar mais evidente. Basta um pouco e eles mostram sua verdadeira face. Vendo a excitação crescente ao seu redor, a criança reuniu forças e tentou se recompor para fugir.
— Oh! Você é resistente, afinal! Eu lhe dei um bom chute mas você já está pronto para correr — o homem de preto falava pausadamente enquanto andava na direção do menino — Vocês viram, não viram? Como uma criança normal poderia ter recebido um golpe desses e já estar de pé? Com certeza há algo de errado com o moleque.
— Sim, é verdade!
— Vejam a cara de ele! Parece pronto para atacar!
— Ele tentou fugir! Se isso não é admitir a culpa eu não sei mais o que poderia ser.
— Com certeza ele é o larápio. Ele merece uma lição!
Aquelas pessoas estavam gritando, clamando por “justiça”. Os mais afoitos já estavam até mesmo empunhando porretes.
O homem de preto sorria enquanto levantava a criança pelos cabelos.
Segurando o braço que o erguera, o garoto gritou:
— Me solte! Eu não fiz nada!
— Soltar? Por que eu faria isso?
O homem o trouxe até bem perto de sua boca e sussurrou em seus ouvidos:
— A diversão está apenas começando.
O garoto não sabia como essa situação havia começado, mas estava bem claro em como ela terminaria. Com a adrenalina tomando conta do corpo aproveitou a proximidade do algoz e, com um impulso repentino, mordeu o nariz daquele que o segurava.
Diante da dor lancinante, o homem arremessou a criança para longe enquanto gritava e apertava o rosto ensanguentado:
— Peguem esse demônio!!! Não o deixem fugir!!!
A multidão ficou atônita com a cena, perdendo assim, alguns segundos antes de reagirem às ordens.
Essa era a vantagem que o menino precisava e não iria desperdiçá-la. Assim, sem nem ao menos pensar, correu como se a vida dependesse disso rumo à floresta. É certo que sua segurança realmente dependia de quão rápido seria nesse momento. Se tivesse sucesso em alcançar as entranhas da floresta ninguém o pegaria.
Não havia nenhuma outra pessoa nesse mundo que conhecesse melhor este lugar. Cada árvore, buraco ou trilha estava marcada na memória. Para cada um, havia uma história; algumas boas, outras nem tanto. Além do que, a muito tempo essa região tinha fama de ser assombrada por demônios, por isso, até mesmo os caçadores evitavam subir a montanha e se embrenhar na mata densa.
Entendendo a intenção do jovem, o homem cuspiu um bocado de sangue e gritou novamente:
— O que vocês estão esperando? Se ele entrar na mata não conseguiremos pegá-lo! MOVAM-SE!
As pessoas que já estavam com porretes nas mãos foram as primeiras a atender o chamado, seguidas por outras que iam catando pedaços de pau ou objetos pontiagudos pelo caminho.
Apesar de pequeno, o garoto era bem rápido e despistou com certa facilidade aqueles que não conheciam bem a região. Abrindo uma boa distância de seus perseguidores, subiu em uma grande árvore e se escondeu. Esse era um ótimo lugar, era possível descansar e também observar o avanço daquele maldito bando de abutres sem que fosse visto.
Não demorou muito e ouviu o barulho dos homens que procuravam por pegadas ou rastros que indicassem a direção do fugitivo. Apesar de ter corrido desesperadamente, ele tomou cuidado e saiu da trilha que já estava batida no chão, o que confundiu os perseguidores.
— Vejam! — gritou um dos homens — Tem um trilha bem aqui!!
— Deixe-me ver! — falou outro — Sim, e com certeza foi usada recentemente. Como ninguém vem a esse lugar, só pode ser a trilha usada por aquela peste. Vamos segui-la, ela nos levará até o “covil” desse demoniozinho.
— Sim!
— Ele não perde por esperar.
— Esse delinquente já nos fez perder tempo demais… quando eu o pegar…
O bando rumou montanha acima.
Tudo parecia estar indo bem, porém, um sentimento incomodava o garoto. Havia algo errado. Realmente, essa era uma trilha que havia usado a pouco tempo, mas ela não levava ao seu “covil”, na verdade, ela levava…
— Ao lobo! — as palavras saíram engasgadas.
O coração ficou acelerado e uma onda de pânico assumiu o controle de sua mente. Por mais que o animal parecesse melhor, quando o viu pela manhã, seus ferimentos não poderiam estar curados com tão pouco tempo.
Ele não poderia se defender, tão pouco fugir. O suor rolava frio pela testa enquanto descia pelos galhos da árvore. Se alguma coisa acontecesse a criatura seria sua culpa. Com o peito apertado, não conseguia raciocinar direito.
“O que devo fazer?”
Os homens estavam avançando na trilha e se continuassem assim, não demorariam a chegar ao local em que o lobo estava.
“Se eles o virem…”
Pensamentos desordenados ecoavam por sua cabeça enquanto corria rumo ao bando enfurecido. Eles estavam muito próximos do grande jacarandá, não havia mais tempo.
Enchendo o pulmão de ar e o coração de coragem gritou:
— Seus idiotas! Não sabem nem mesmo seguir rastros frescos? Os caçadores acabaram sendo perseguidos pela presa.
Os homens enfurecidos se voltaram para o jovem que correu novamente morro abaixo. Porém, o que não esperava, era que as pessoas que o perseguiam eram apenas a parte mais avançada do bando. Ele não tinha visto os retardatários, que, a essa altura, o haviam alcançado. Cercado por ambos os lados, estava encurralado.
A situação estava complicada. O grupo que acabara de chegar era bem maior. Não era uma boa ideia correr para baixo, talvez, se fosse rápido, poderia passar pelos espaços deixados entre os homens do grupo menor e subir a montanha.
Não, isso os levaria direto ao animal morimbundo.
Ele sabia que o caminho da esquerda os levaria a um precipício, já o da direita, seguia direto para a sua casa. Ele poderia tentar os despistar, mas seria problemático se o bando encontrasse a trilha certa até a “toca”.
Não havia mais tempo, então decidiu arriscar e correr para a direita.
O grande bando raivosos o seguia de perto, gritando e xingando:
— Pare de correr moleque! Se você se render agora pegaremos leve!
— Isso, pare aí mesmo e nós não arrancaremos suas pernas!
É claro que não pararia, não pararia por nada nesse mundo, mas de uma hora para outra ele parou. Sentindo uma dor aguda na barriga o pequeno tombou no chão. Um grande porrete o havia acertado bem no estômago e todo ar do corpo parecia ter escapado. Rolando de um lado para o outro tentou se levantar, mas outro golpe veio de cima, acertando sua cabeça.
“O que está acontecendo?”
Ele havia desviado o olhar apenas alguns segundos para conferir a retaguarda, mas esse foi o tempo necessário para que um dos perseguidores, que estava escondido mais a frente, o surpreendesse com um golpe certeiro.
Esse homem estava vestido de preto e seu rosto era uma bagunça coberta de sangue. Sua voz estava um pouco rouca quando sussurrou:
— Eu te encontrei!
O menino tentou se levantar, mas a cabeça estava girando e não conseguia enxergar direito. Os ouvidos zumbiam e o sangue escorria pela testa, boca e nariz. Ele sabia que se cedesse agora estaria morto, então reuniu toda a força que conseguiu para ficar de pé.
— Ah!!!!!!!!!!!!! — exclamou o homem ensanguentado — Bravo! realmente não é uma criança comum! Vejam! Eu estava certo! Nem mesmo um homem adulto conseguiria se manter de pé depois desses golpes. Ele é mesmo filho daquela vadia demoníaca.
— CALE A BOCA! — gritou o menino.
— Calar a boca? Eu estou errado? Sua mãe era uma meretriz que saiu do próprio inferno para seduzir os homens dessa terra. Ela veio para trazer a destruição e…
— EU MANDEI CALAR A BOCA!!!
Em um impulso violento, o garoto correu em direção ao homem que não reagiu a tempo. Os dois caíram no chão e o jovem desferiu vários socos furiosos no adversário.
Seu corpo estava completamente dolorido, lágrimas estavam misturadas ao sangue e o ar não havia voltado completamente aos pulmões, mas nada disso importava. Ele so queria descontar toda a ira naquele maldito que estava insultando sua mãe.
Mas a multidão não ficou apenas observando e várias pessoas se juntaram para conter o menino.
Um novo e poderoso golpe atingiu o estômago já sensível, o fazendo querer vomitar. As pernas cederam diante de seu próprio peso e ele caiu novamente. Ajoelhado, não conseguia parar de tossir. Sua mente estava ficando confusa e a visão turva.
— Coloquem esse merdinha de pé — grunhiu uma voz conhecida.
Era aquele maldito.
Os capangas obedeceram e suspenderam o menino, que ficou fracamente apoiado sobre os membros inferiores.
— Você é bom de luta não é? Eu gostei. Mas agora que começamos a nos divertir você não está pensando em desistir, não é? — Mesmo com o rosto completamente desfigurado, o homem ria compulsivamente enquanto se aproximava. — Eu vou dar um jeito em você e quando eu acabar nem mesmo a sua mamãezinha irá te reconhecer. Aliás, você a encontrará logo, logo hahahaha.
“Mãe, será que eu finalmente vou te encontrar? Eu realmente sinto sua falta. Eu…”
Publicado por:
- GSK
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Escrevendo, desenhando, editando e fazendo mais algumas artes por ai.
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