A Maldição do Lobo Vermelho - Capítulo 01 - Entre tons de vermelho





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- Capítulo 01 - Entre tons de vermelho
Caído aos pés de um grande jacarandá, aquela figura era uma mancha carmesim em meio a negra floresta. Os longos cabelos possuíam um tom de vermelho cobre que se misturavam perfeitamente às vestes rubras. Todavia, o vermelho mais intenso era o escarlate, que fluía de seu corpo ao chão, unindo-os como uma rosa sangrenta que acabara de desabrochar.
O rosto estava pálido, mas a expressão era suave, como a de quem estivera apenas dormindo tranquilamente. Seu corpo era impressionantemente forte. A parte superior do tronco estava despida; mostrando vários ferimentos recentes, destacavam-se profundas feridas que partiam do ombro esquerdo, atravessando todo o peito até o abdômen, onde repousava a longa mão.
Do outro lado, sob a palma direita, estava uma larga e curva lâmina que banhada pelo luar brilhava de forma ameaçadora.
Aquela visão era assustadoramente atraente e trazia sentimentos ambíguos ao coração do garoto que a observava de longe, preenchendo-o com um misto de medo e fascínio. Mesmo com a aragem fria, o suor escorria incessantemente por seu corpo franzino. O sangue corria acelerado nas veias e no silêncio da noite, parecia que as fortes batidas podiam ser ouvidas a quilômetros de distância.
A mente permanecia completamente em alerta, mas contrariando o bom senso não se afastou, pelo contrário, as pernas o moviam lentamente na direção daquela figura cinabre. Estava cada vez mais difícil controlar a respiração e, com medo de produzir algum som mais alto, tapou boca e nariz com uma das mãos, enquanto apertava a outra contra o peito para abafar o ruidoso pulsar descompassado.
Cada passo o deixava mais próximo do perigo, mas também o permitia ver melhor o belo homem. A brisa gelada da floresta fazia com que aqueles cabelos vermelhos dançassem levemente no ar; os fios possuíam uma cor única mas que era muito familiar ao garoto e, apesar do receio, uma sensação urgente o impelia.
Ele não conseguia decidir se era o medo, mas sentia que estava sendo observado atentamente e por isso não era capaz de evitar se assustar com o mínimo som.
O vento ficou mais forte e um pequeno galho caiu de uma das árvores próximas, fazendo com que o menino saltasse e virasse para trás. Olhando ao redor, não viu nada além da escuridão da noite, mas antes que pudesse se endireitar, o medo o preencheu completamente fazendo com que cada pelo do corpo arrepiasse.
Uma respiração quente e pesada soprou seus negros cabelos em direção ao rosto. O vento aterrorizante vinha a centímetros das costas e, por mais tórrido que fosse, o pavor congelou instantaneamente todos os seus músculos. Após alguns segundos de torpor, sentiu que seria melhor encarar a morte de frente e então, forçou o corpo ainda rígido a virar.
No lugar em que antes repousava aquela figura humana, haviam duas fileiras de presas afiadas que se projetavam ameaçadoramente para frente e um par de olhos verdes vivos que brilhavam no meio de um emaranhado de pelos. Um gigantesco lobo vermelho o encarava. Aquela, com toda certeza, não era a mesma figura que outrora estava encostada no jacarandá, mas era assustadoramente maravilhosa da mesma forma.
Não havia como esconder, correr não parecia uma boa opção, jamais seria veloz o bastante. Também não existia a quem pedir socorro, logo, podia apenas esperar pela morte enquanto imaginava se aquele homem também havia sido vítima do gigantesco animal.
Era uma pena não ter tido tempo de chegar mais perto… aqueles cabelos eram tão longos e vermelhos, tão parecidos com os de sua mãe. Ele realmente desejava ter tido a chance de tocá-los. Nesse momento, um pensamento veio à mente: “Aquele homem… ele ainda podia estar vivo”.
O garoto tinha certeza que o lobo apareceu no mesmo lugar em que aquela pessoa estava antes, mas mesmo tendo olhado de relance, não percebeu sinais de que a fera o havia devorado.
Com certeza, o ruivo ouviu o lobo chegando e conseguiu se esconder. Mas com tão pouco tempo e com ferimentos tão graves, é certo que não teria ido muito longe. Se esse fosse o caso, não havia mais salvação para si, mas ainda existia a possibilidade de distrair o grande animal, dando tempo para que o outro fugisse. Essa era uma boa opção. Talvez um deles pudesse escapar do destino certo.
Sem pensar em mais nada, virou-se novamente e correu o mais rápido que pode para dentro da floresta enquanto gritava:
— Fuja! Corra para longe! Eu prometo que irei distraí-lo!
Nesse instante o lobo saltou sobre o jovem, aterrizando pesadamente em sua frente. A fera possuía um olhar afiado, mas as presas estavam recolhidas.
Era o fim, e havia chegado mais rápido do que imaginara. Ele sabia que não seria possível escapar, mas esperava dar mais tempo de vantagem ao outro homem. Ciente do fracasso, juntou toda a coragem que conseguiu e, pegando um galho que estava caído ao lado, ameaçou:
— Você é muito rápido! Mas não vai me devorar tão facilmente! Não sem lutar.
Quebrando o silêncio, a voz grave como um trovão soou sobre a cabeça do pequeno:
— Com quem você estava falando? Quem mais ousou vir ao meu encontro?
Aquilo com certeza era inusitado e o garoto demorou um tempo até entender que a voz vinha mesmo do animal à frente.
— Você fala? Você consegue falar?
— Sim! E se você consegue me entender, responda! Onde está o outro com quem estava falando? Diga-me! Quem era e como me encontraram?
As palavras vinham como rajadas de vento. Os olhos da criatura estavam ainda mais ferozes e a grande boca estava alarmantemente perto da cabeça do menino. Mesmo assim ele se manteve firme e respondeu:
— Eu não sei quem era. Eu apenas o encontrei caído ao pé do jacarandá, enquanto estava caçando um coelho. Eu também não estava te procurando, quem em sã consciência procuraria uma besta maléfica como você?
O animal pareceu desconfiado e retrucou:
— Então quer dizer que você não o conhecia, mas arriscou sua vida para dar-lhe tempo de fugir? Que grande mentira! Me diga a verdade filhote de humano!
Ignorando completamente o galho que estava apontado em sua direção, impulsionou a cabeça à frente acertando o peito do garoto.
— Minha paciência é limitada, não abuse pequeno. Com quem você estava falando?
Caído no chão e com um grande focinho o pressionando, o menino tomou conhecimento de toda a sua pequenez. Obviamente, o coração estava repleto de medo, mas os olhos se recusavam a desviar daquele par de íris brilhantes que estavam tão próximos.
Quebrando o domínio quase hipnótico que sentia, forçosamente abaixou a cabeça e lamentou:
— Eu realmente não o conhecia e sinto muito por não poder encontrá-lo em outra ocasião.
O animal inquiriu:
— E porque você deseja rever alguém que nem mesmo conhece?
— Eu… eu gostaria muito de ter tocado em seus cabelos… — soou a voz fraca do garoto.
A fera estava confusa e disse de forma sarcástica:
— “Tocar em seus cabelos”? Não me parece um bom motivo para arriscar a vida.
Com os olhos marejados a criança falou:
— Você não entenderia, eu daria qualquer coisa para poder tocá-los. Eles tinham a mesma cor dos cabelos de minha mãe… — com um grande suspiro continuou — antes dela partir, todas as noites eu os penteava enquanto me contava histórias de dormir… eu realmente sinto falta …
Lágrimas escorriam pelo frágil e pálido rosto que era emoldurado por negros cabelos desgrenhados. Uma figura penosamente patética, patética ao ponto de não ser capaz de inventar tal história. Levando isso em consideração, o lobo afastou o focinho e vagarosamente caminhou rumo à escuridão.
O menino permaneceu imovel, sentado no chão gelado, aparentemente perdido em lembranças. Um sentimento estranho pesou sobre o coração do animal que virou e caminhou novamente na direção da triste figura.
Refletindo por um momento, decidiu que não faria mal desperdiçar alguns segundos com esse capricho infantil. Assim, esticando o grande pescoço à frente, suspirou antes de dizer:
— Se era isso que você tanto desejava…
O garoto ergueu a cabeça mostrando os caminhos que as lágrimas haviam contornado nas bochechas descoradas. Com um olhar confuso, não parecia entender o que o lobo havia falado.
Percebendo a dúvida, o animal repetiu com um tom cansado:
— Toque-os. Esse era o seu desejo, certo? Mas seja breve, antes que eu mude de ideia.
O menino estava hesitante, não por medo, mas havia uma sensação estranha. Era como se não fosse digno naquele momento, as mãos estavam sujas e não havia como limpá-las, já que as roupas estavam ainda em pior estado.
Esse não parecia com o alvo de seus desejos, o pelo rubro tinha a mesma cor, mas não eram os cabelos daquele homem. De qualquer forma, o coração batia acelerado e a mente estava em branco.
Vacilante, levou os dedos na direção dos pelos fartos do animal. Eles eram extremamente macios e longos o suficiente para que suas mãos fossem completamente capturadas em meio aos tufos. Perdido em memórias, acariciou suavemente o pescoço do lobo por um tempo que parecia longo, mas também poderia ter passado em apenas um instante.
Um som de dor saiu da garganta do animal, tirando o pequeno abruptamente de seus devaneios. O corpo do lobo estava ficando cada vez mais próximo até que caiu pesadamente sobre o colo do menino, que enfim, tomou conhecimento das mãos e roupas ensopadas de sangue. Não tinha percebido antes, mas o animal também estava gravemente ferido.
Com um grande esforço, conseguiu desvencilhar-se da fera, correndo loucamente para dentro da escuridão da floresta.
O animal soltou um longo suspiro e fechou os olhos. Parecia que sua hora havia chegado e iria morrer sozinho. Não que a solidão fosse uma desconhecida, mas sempre imaginara que haveria alguém no final.
Cerca de meia hora se passou e barulhos de passos apressados puderam ser ouvidos chegando ao longe. A criatura estava exausta e só tinha forças para mostrar as grandes presas ao invasor, que parou de imediato. Forçosamente abriu os olhos e ao reconhecer o intruso murmurou:
— O que está fazendo aqui? Por que você voltou?
Ofegante pela corrida e o peso extra, obedientemente o menino respondeu:
— Você está muito ferido, eu trouxe um pouco de água e algumas ataduras.
Realmente, haviam alguns trapos rasgados em seu ombro esquerdo e escorria um fio de água do balde rachado que já tinha molhado boa parte da calça remendada do outro lado.
Retomando o fôlego continuou:
— Eu posso me aproximar?
O lobo guardou as presas e não respondeu.
Entendendo a permissão, agachou ao lado de onde podia ver profundas feridas. Aquela cena era perturbadora, a carne estava cortada em várias camadas e o sangue fluía incessantemente, tornando o ar férreo, difícil de respirar. Fora isso, o chão estava pegajoso, formando um pequeno pantano sangrento abaixo dos pés.
A noite avançava e o vento frio fazia com que todos os ossos do pequeno tremessem. Mas isso não o impediu de, cuidadosamente, encharcar um bocado de trapos, torcer e deitá-los nas feridas mais graves do animal. Assim que os panos ficavam empapados pelo sangue ele os retirava e os devolvia ao recipiente. Após esfregar e limpar, reiniciava o processo. Passado um curto período de tempo, levantou e se apressou em direção a floresta.
— Por que você está fazendo isso? — interrompeu o lobo.
Arqueando a sobrancelha direita e balançando rapidamente a cabeça o menino respondeu como se a pergunta fosse totalmente descabida:
— Você está muito ferido, não poderia fazer por si só. Agora não se esforce, eu voltarei o mais rápido possível.
Cerca de meia hora depois voltou como prometido, trazendo consigo, água e panos limpos.
Sentando ao lado do animal, voltou ao trabalho com as ataduras. Esse processo de idas e vindas se repetiu incontáveis vezes, até que o dia começasse a mostrar os primeiros raios de sol. Porém, nesta última, o menino não voltou tão rapidamente.
Com o passar das horas o intenso brilho do astro rei aquecia a não mais silenciosa floresta e o lobo acreditou que finalmente o pequeno houvesse desistido. Os grilos cantavam e um pequeno coelho saltou assustado com o movimento brusco do mato à frente.
O arbusto foi ultrapassado com dificuldade e a figura conhecida caminhou animadamente em direção ao animal. Desta vez, trazia dois baldes aparentemente pesados nas mãos.
Curioso com o atraso repentino provocou:
— Você demorou, achei que outro houvesse tomado meu lugar e o devorado.
O menino franziu a testa e estendendo as vasilhas retrucou:
— Como pode ver, não foi este o caso. Você deve estar com sede e fome então trouxe um pouco de água limpa e algumas frutas… eu… eu acredito que você coma carne, mas não consegui capturar nenhum coelho, então… tente se contentar com isso.
Era esse o motivo da vinda tardia. O garoto passou toda a manhã tentando capturar o pequeno animal, mas no fim, admitiu o fracasso e gastou mais um bom tempo colhendo frutas.
Aquilo realmente soava engraçado, é claro que comia carne, mas não faria mal comer outra coisa. Assim, com a ponta do focinho, derrubou o balde e envolveu uma gorda goiaba com a língua:
— Hmm está bem madura. Parabéns!
O rosto cansado e infantil se iluminou, o trabalho não tinha sido em vão. Sentando ao lado do grande animal o observou acabar de mastigar mais uma fruta.
Talvez por estarem maduras ou por não comer a dias, o lobo não sabia ao certo, mas aquelas, sem sombra de dúvidas, eram as melhores goiabas que já havia comido na vida.
Grato, sorveu um demorado gole de água antes de dizer:
— Obrigado pela gentileza, agora eu preciso descansar e você também deveria. Se seu rosto ficar um tom mais pálido as outras pessoas acharão que você é um espírito que assombra essa floresta.
O tom era descontraído, porém mostrava um fio de preocupação, mas o garoto não percebeu e respondeu de forma emburrada:
— Parece que você está bem melhor, talvez já possa se virar sozinho. Além do que, você não precisa se preocupar, ninguém mais anda por essa floresta além de mim. Adeus.
Irritado, levantou e virou para sair, mas o animal o interrompeu:
— Oh, você é um pouco sentimental, não? Eu estava apenas brincando. Espere filhote de humano!
Cerrando os punhos o pequeno bufou:
— Você nem mesmo se importou em perguntar o meu nome, porque eu deveria continuar te ajudando?
— Ah! Realmente sentimental! Hahaha. — O lobo soltou uma alta gargalhada que fez seus ferimentos doerem.
Endireitando a postura, o garoto correu em direção à saída da floresta. Enquanto acelerava, pensava o quanto tinha sido tolo. A menos de um dia atrás o lobo havia tentado devorá-lo, porque então estava esperando que o animal agisse de forma diferente agora? A criatura nem mesmo havia pedido ajuda.
“Seu burro, o que há de errado com você?”.
Esses pensamentos o incomodaram durante toda a noite, até que o cansaço finalmente venceu. Foi um sono conturbado, cheio de pesadelos com a mãe, presas afiadas e longos cabelos vermelhos.
No dia seguinte, emburrado por não ter dormido bem, levantou um pouco mais tarde do que o habitual. Por algum tempo, procurou pelos baldes que eram tão úteis, principalmente pela manhã, mas não os encontrou. Essa era uma casa humilde e muito pequena, feita de madeira e de chão batido, com apenas um cômodo e sem muitos objetos, seria impossível perdê-los ali.
Vasculhando por todos os lugares sem sucesso, lembrou que no dia anterior havia saído correndo da floresta, esquecendo completamente de trazer de volta os vasilhames que levara consigo. Isso o deprimiu por um longo tempo, mas não havia outra alternativa, seria necessário buscá-los de qualquer forma.
Antes de entrar na floresta parou, respirou fundo e caminhou firmemente até o grande jacarandá. Chegando ao local, pode ver que o lobo ainda estava dormindo, então, silenciosamente, agachou e pegou os baldes. Ele estava muito perto daquele longo pescoço e a vontade de tocá-lo era realmente irresistível.
Colocando um dos recipientes novamente no chão, estendeu uma das mãos em direção ao animal, mas, antes que tocasse percebeu que um par de olhos verdes o encaravam fixamente.
— Eu… eu só vim buscar os baldes — disse o garoto após dar um salto para trás — Já estou indo, desculpe acordá-lo.
Apanhando o objeto, virou para sair, mas uma longa e felpuda cauda obstruiu o caminho. Rapidamente, tentou desviar para passar pela abertura que ainda existia, mas tão logo se moveu o rabo do animal estendeu-se e fechou completamente o caminho. Ele estava preso em um pequeno círculo macio.
— Eu pedi desculpas por acordá-lo, você ainda pretende me devorar? — a voz saiu em um tom irritado.
Enroscando um pouco mais a cauda comprida, o lobo trouxe o “prisioneiro” para mais perto e com a voz preguiçosa murmurou:
— Não, eu só desejo que me escute. Ontem você não me deixou terminar.
— Se é este o caso, fale logo! Eu preciso me apressar, tenho muitas coisas para fazer em casa e… — Um som embaraçoso soou de seu estômago interrompendo a frase.
Com uma timidez fingida o animal retrucou zombeteiro:
— Oh! Você ainda não comeu? Não me diga que a vontade de me ver foi tão grande que o impediu de desperdiçar tempo tomando o desjejum?
O garoto corou instantaneamente e com uma mistura de raiva e vergonha gaguejou:
— N-não seja ridículo! E-eu só vim buscar meus baldes! Agora me deixe ir!
Após se esforçar para passar por debaixo da barreira felpuda, pegou os pertences e marchou para fora da floresta enquanto o lobo o observava com um sorriso debochado. Por algum motivo, era muito satisfatório perturbar aquele moleque. Como seu estado era deplorável, não seria possível sair dessa floresta tão cedo, assim, decidiu estender a diversão mais um pouco.
Ele estava prestes a chamar o garoto quando notou que os dois não estavam mais sozinhos.
Publicado por:
- GSK
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Escrevendo, desenhando, editando e fazendo mais algumas artes por ai.
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