A Década Depois Da Primavera - Capítulo 17
Simplesmente vivi no meu próprio mundo, pus o véu da ignorância longe, esquecido.
Quando soube desse emprego, pensei que seria uma boa chance. Porém, a pessoa que conheci era amarga, séria e autoritária. Então, ela ordenou que eu vigiasse seu parceiro. Parceiro? Pensei. Até então, eu só conhecia e via casais heterossexuais, isso me causou estranheza. Desconhecia outras orientações sexuais.
Foi então que decidi sair da minha zona de conforto. De forma receosa, mas sair. Quem conheci a seguir foi Oscar. Ele era um jovem magro, doente e deprimido. Para ele, o amor era como uma escravidão. Diante de uma submissão tão completa, tive dificuldade em ajudá-lo. Dentro de mim, despertou um sentimento que eu nunca havia conhecido. Era um sentimento que não enxergava cor, raça, gênero, e muito menos status social. À medida que eu o conhecia melhor, descobri que ele tinha uma doença. Aos poucos, ele se tornou meu amigo. E eu aprendi a amar sem preconceitos ou regras.
Compartilhar do dia a dia dele me deixou abalada, ociosa, amuada, enfurecida… todo dia aprendia uma emoção nova. Sua convivência com o Sr. Dominic era de brigas ou silêncio total, como que uma guerra fria. Essas cenas se desencadeavam e se acalmavam rapidamente, como ondas.
Sua interação com Dom era estranha e penosa. Oscar suportava o insuportável pelo seu marido, um sentimento interminável e cansativo.
Quando voltei da minha folga, estranhei a austera ausência dele. A ligação de Dominic me fez fraquejar, Oscar estava no hospital.
Assim que amanheceu, já estava ao lado dele. Não consegui ficar tranquila até estar perto dele. Pobre menino, cuidadosamente o cobri com o cobertor. Afaguei seus cabelos. Ainda não tinha acordado. Fiquei contente que ambos estavam bem, principalmente sua criança.
Depois de encerrar a ligação da empresa, o Sr. Dominic ponderou por um momento antes de ligar para a polícia. Observava-o atentamente. Se não houvesse um vínculo entre eles, ele não estaria aqui. Significava que os sentimentos de Oscar haviam chegado até ele. Deveria ficar contente? Não sei dizer.
— Policial Marcos, por favor, me ajude com uma coisa. — Fiquei um pouco surpresa pois Dominic normalmente não pedia ajuda a outras pessoas.
— O que é?
— Algo aconteceu com meu parceiro. Ele está no hospital agora.
— O que aconteceu com ele?
— Alguns homens o cercaram em um beco ontem à noite. Eles bateram nele e quase… — Fez uma pausa antes de continuar: — Por favor, ajude-me a subjugá-los.
— Não pensei que os envolvidos fossem vocês! A investigação se tornou pública, todos estão sob prisão preventiva, pegos em flagrante.
— Eu os quero sem direito a fiança ou jure de defesa — sua voz era imaculada.
— Tudo bem, eu entendo. Nesse caso, vou pedir a alguns policiais para irem ao hospital registrar o depoimento do seu parceiro depois que acordar.
— Não acho que seja possível. Ele pode estar emocionalmente instável agora. Relembrar o ocorrido não vai ser fácil.
— Então onde aconteceu o incidente? Que horas eram? Mesmo que já saiba desses detalhes, eu tenho que perguntar. Todos devem prestar depoimento.
— Foi no Bloco 8 depois das 19h. Ainda deve haver alguns vestígios.
—Tudo bem, entendi. — Estava explícito que Dominic queria encerrar a ligação, embora o policial Marcos perguntasse curiosamente: — Sobre seu parceiro, como… estão os ferimentos?
Ele ficou quieto por um tempo enquanto se encostava na parede.
— Ele… ainda não acordou… foi apenas um ferimento atrás da nuca e alguns arranhões. — Depois que encerrou a ligação, respirou fundo várias vezes enquanto se encostava na parede.
Ficamos calados, podia ver com clarividência sua preocupação.
— Luciana, cuide dele. Estou de saída.
Perguntei se voltaria, não falou nada. Me olhou por um longo tempo enquanto parecia pensar em algo, até que negou. Seus olhos profundos pareciam extremamente charmosos e exaustos. Não dormiu a noite inteira.
No momento em que chegou à entrada não consegui me conter e o abordei. As palavras vieram como o vento, livre, casta e impossível de conter.
— Obrigado por cuidar dele.
Antes de sair, ele acenou com a cabeça e disse “Até logo”. Vale salientar que ele não sabia, não imaginava a realidade de Oscar, nem os médicos ousavam revelar.
Depois de uma hora e meia, Oscar abriu seus olhos. Uma onda de alívio e gratidão me atingiu. Ele parecia extremamente desconfortável com as sobrancelhas franzidas. Ainda assim, não falou nada.
Olhei para o copo d’água e perguntei se queria, Oscar assentiu com a cabeça.
Ajudei-o a sentar-se ao lado da cama. Fui buscar um copo limpo e o enchi de água, levando-o à boca dele. Oscar bebeu a água em pequenos goles, não duvidaria que estivesse seca e áspera. Foi então que sua expressão relaxou, ele olhava para mim com os olhos entreabertos.
— Onde ele está? Por quanto tempo dormi? — sua voz era árida e seca, embora fosse misturada com um leve humor.
Carinhosamente, enxuguei as gotas de água restantes perto de sua boca. Seus lábios se esticaram em um minúsculo sorriso enquanto ele ficou quieto. Quando comecei a amá-lo? Não sei. Mas meu coração amava-o e muito.
— Ele já foi. Mas ficou com você a noite inteira. Não se preocupe, você dormiu por apenas algumas horas.
Sabia qual era sua maior preocupação depois da criança, queria saber se Dominic descobriu sua doença. Disse-lhe que não. A preocupação fez sua cabeça começar a doer. Ele sabia que a parte de trás tinha sido costurada. A dor da ferida não cicatrizada o fez suar. Ele levantou-se, mesmo eu tendo-o proibido. Seu corpo estava todo dolorido.
Acelerei meus passos atrás dele, e entramos no banheiro.
Viu um enorme espelho de vidro ao lado com o canto dos olhos e parou de andar. Oscar se aproximou do espelho de vidro para dar uma olhada em si mesmo e não conseguiu mais sorrir. Seu sorriso morreu. Ele viu seu rosto pálido e abatido naquele espelho. O espelho de vidro refletivo à sua frente permitia que visse toda a metade superior de seu corpo. Ele lentamente virou o pescoço para ver que havia uma série de chupões verde-arroxeados do pescoço até a clavícula, e também vestígios de marcas de mordidas.
Tocou as marcas em seu próprio pescoço e deslizou o dedo até a clavícula. A julgar por isso, provavelmente havia mais em seu peitoral e abdômen. Não suportei continuar olhando para ele assim, torturando-se.
— Não disse para você ficar na cama e descansar? Vamos, querido. — Estava parada atrás dele.
Soltou um simples grunhido e virou a cabeça para me olhar. Sua expressão não parecia boa, seu olhar sem foco.
Logo virou a cabeça novamente e não disse mais nada, permaneceu calado.
— Não olhe mais para isso. Vamos voltar. — Abaixei meu tom. Peguei em sua mão e o levei de volta para a cama. Oscar seguiu obedientemente. Ele olhava para os pés enquanto caminhava atrás de mim.
— Ajude-me a comprar um cachecol — disse levemente. Concordei que sim. — Isso no meu corpo… me deixa enojado — falou com a cabeça ainda baixa. Parei de andar no mesmo instante.
— São essas pessoas que são nojentas, não você.
— Quero tomar banho, meu corpo está sujo. — Era evidente o seu desgosto enquanto dizia a palavra ‘sujo’. — Quero tomar banho — disse novamente. Falei que seus arranhões no corpo não estavam cicatrizados. Ia doer. — Eu quero tomar banho. — O clima entre nós ficou tenso. Via que ele estava ficando cada vez mais irritado, decidi ficar calada. — Por que você não me deixa tomar banho? Você não percebe que estou sujo?! Não sente nojo só de olhar para as marcas no meu corpo?! — falou alto, manteve seus olhos em mim e apontou para o próprio corpo. — Você os viu, certo?! Você viu cada marca no meu corpo, certo?! Tia, você sabe que estou sujo! — esbravejou alto, sua expressão poderia ter tudo, menos uma lágrima. Isso tocou fundo meu coração.
O silêncio discretamente preencheu o ar, Zhang e a enfermeira surgiram na entrada olhando preocupadamente para o pálido e agitado Oscar. Abracei-o na frente delas, dei-lhe um pouco desse amor, quente e maternal dentro de mim. Coloquei sua cabeça no meu pescoço e compartilhamos o que quer que ele sentisse naquele momento.
— Tudo bem, se você quer tomar banho, então tome banho. Você pode tomar banho o quanto quiser — disse gentilmente em seu ouvido, maternalmente. — Mas você não pode deixar a água entrar no ferimento da sua cabeça. Vou te ajudar com o shampoo, tudo bem?
— Tia, realmente estou extremamente sujo e nojento. As lembranças daquele chão lamacento… aquele homem… ele… — O momento podia lembrar uma noite fria e escura, mas sentia que o sol ia nascer novamente para Oscar. Dias melhores vinham, há passos pequenos, contudo, viriam. Porque o menor dos passos é melhor que nenhum. — Eu quero vomitar… a recordação sobre o que aconteceu e essas marcas… não consigo esquecer, não importa o quanto eu tente. Meu corpo foi violado e isso dói como o inferno.
Zhang se juntou a ele, cuidadosamente colocou o braço em volta de Oscar.
— Desculpe não estar lá para ajudá-lo. — Ela acariciou sua mão, falou baixinho após um período de silêncio.
— Não tinha como você saber. Pelo menos ainda estou vivo, e aqueles homens não conseguiram o que queriam. — O aperto de Oscar estava tremendo enquanto dizia isso.
Senti meu coração apertar, beijei brevemente o cabelo de Oscar. Sentia que, parado entre meus braços com um olhar cheio de dor, não estava meu chefe, mas sim, o meu filho. Troquei meu título de amiga por aquele, adotei-o. Mesmo que fosse filho de uma outra mãe.
— Me desculpe — falou Zhang. Oscar balançou a cabeça.
— Zhang, eu não devia ter saído naquele dia. Fui eu que não te ouvi, você sugeriu que eu fosse outro dia. Foi minha culpa, não deveria ter saído.
— Não… Você jamais teve culpa. Você foi vítima deles, nunca se culpe. — Zhang continuou honestamente e de coração: — Eu prometo, não haverá uma próxima vez, vou te proteger, não vou deixar você se machucar mais. — Zhang abraçou-o com força.
Confesso que ao conhecer essa mulher do oriente, estranhei sua personalidade. Mas agora, tão perto dela, compreendi que a julguei precipitadamente. Essa mulher estrangeira era uma boa pessoa, um verdadeiro alento para Oscar. Assim era Zhang
Ambos, Zhang e eu, sentimos que cada frase dita por Oscar era um lembrete de nossa ausência naquela noite. Era uma pena que os “E ses” não importassem neste mundo. Os erros do passado não podiam ser mudados. Nós só poderíamos fazer o possível para compensar isso no futuro.
— Não se preocupe, ficarei ao seu lado e não irei a lugar nenhum. Eu sempre estarei com você no futuro — jurei.
Betagem: Arabella
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