Sangue & Neve - Introdução-1919 e 1923
Capítulo Piloto
Francesco diFiore encabeçava todo o esquema de tráfico humano e exploração sexual do país. Inclusive com algumas filiais fora do país. Garantia que meninos e meninas de todo tipo de nacionalidade e idade chegassem aos mais variados bordéis ou sob a posse de algum(a) rico que desejasse. Normalmente jovens que jamais seriam procurados por suas famílias, em situação de vulnerabilidade.
diFiore era um homem forte, um tanto corpulento. Olhos e cabelos escuros com o nariz adunco. Fazia meses que seu grupo de mercenários voltou de algum lugar do norte, Ucrânia ou Rússia, com um carregamento.
Um garoto de beleza rara, quase albino com cabelos tão loiros que pareciam brancos, olhos turquesa como um mar límpido, devia ter quatorze anos. Garantiram que ninguém o procuraria, que não havia ninguém vivo que o conhecesse. Francesco via nele uma mina de ouro. Lhe deu o nome de Amadeo, aquele que é amado por Deus.
Mas toda sua esperança foi por água abaixo, pois o garoto, traumatizado da viagem e de não entender a língua, não cooperava. Era extremamente agressivo e forte, chegando a machucar qualquer um que se aproximasse. Preferia apanhar e não comer do que ceder. E com o tempo, achando que poderia domar a pequena ferinha, Francesco o manteve no porão de um de seus bordeis.
Mas 3 anos se passaram, e Francesco começava a entender que sua mina de ouro foi na verdade, um prejuízo.
Itália – Florença – Ano 1923
Aquele dia seria sua última tentativa de recuperar o dinheiro gasto com Amadeo. Não conseguiu vendê-lo para ninguém, e já estava passando da idade, com cerca de 17 ou 18 anos agora aparentemente. Seu último segurança teve que levar pontos na mão após uma mordida feroz e desde então sempre que precisam mover o garoto, iam em três fortes homens.
O Bordel de Michele era um de seus lugares de comércio. E a última chance de tentar se livrar de seu “problema“, se não conseguisse, o mataria.
Colocou uma grossa coleira negra no pescoço de pele alva, uma corrente presa a ela para que pudesse lhe puxar, as mãos do garoto foram algemadas e para tentar esconder que estava tão restringido, colocou-lhe uma camisa preta larga por cima, lhe cobrindo as mãos. Francesco o vendou com um tecido negro que se destacava entre os fios platinados.
Amadeo foi levado puxado pela coleira para dentro do lugar. Restringido e vendado, só conseguia ouvir. Vozes, risadas, cheiro de tabaco e notas de piano.
O piano era um som agradável no meio daquele inferno, tentou se concentrar naquilo enquanto Francesco o levava para perto de Michele.
– Michele, meu amigo! Olha só esse espécime que tenho aqui, seria uma joia rara no seu bordel, uma mina de ouro. Porém a criatura é selvagem não consegui domar, ele pode ferir os clientes, tem alguma ideia de uso para ele? Um leilão? Só preciso cobrir os gastos que tive. – Francesco como bom italiano, falava alto e gesticulando.
– Francesco, quanto tempo !!! – Disse Michele – Vejo que dessa vez trouxe um produto de alta qualidade – diz com um grande sorriso enquanto examinava o garoto de cima a baixo- eu o compraria, mas estou muito velho para conseguir domar mais um garoto selvagem, talvez leilão seja realmente a melhor opção, e se quiser podemos anunciá-lo durante a segunda pausa do pianista.
O pianista era Christopher Alles. Apesar de aquele não ser seu país de origem, o jovem Christopher já havia se acostumado com a vida agitada de Florença, afinal, aquele havia acabado por se tornar seu lar desde que migrara da cidade de Salzburg cerca três anos atrás. O pianista tinha os cabelos pretos e um ar sério apesar da pouca idade, 22 anos.
Chris passava as tardes fazendo o que sabia de melhor: tocar piano. O dom para a música era algo sempre manifestado pelo rapaz, seus ouvidos eram extremamente aguçados a ponto de possuir uma extrema facilidade em diferenciar as notas tocadas em qualquer instrumento, e foi esse talento em especial que acabou lhe rendendo uma vida relativamente boa apesar da crise socioeconômica que assolava aquele pais do mediterrâneo.
Antes de se mudar para Florença, o rapaz residiu em pelo menos três cidades daquele pais, sendo a última Turim, sobrevivendo de gorjetas que ganhava tocando piano em restaurantes frequentados pela elite local, e foi nessa ocasião que acabou por conhecer Giovanni Rossi, um homem de meia idade, que se encontrava em uma viagem de negócios, e que acabou por se apaixonar pelo talento de Christopher, o convidando para tocar em diversos eventos, reuniões e bailes, assim o jovem acabou se envolvendo, de forma indireta, com uma organização crescente naquela região: A máfia, e sempre que algum ”caporegime” precisava de alguém para cobrir algum evento era Christopher quem acabava sendo requisitado.
E naquela noite quente de verão, o rapaz tocaria naquele bordel localizado perto da região central.
– Buonasera, ragazzo! – Giovanni se aproxima, alto e de terno, por volta de 40 anos. Notoriamente alterado pela bebida, antes de dar um beijo melado na bochecha do pianista – Como estão suas mãos? Pronto para fazer jus ao talento que tem?
– Tenho certeza que todos aqui irão gostar do repertório que preparei.
– Esse é meu garoto! – Ele o puxa para perto antes de sussurrar em seu ouvido- vê aquele homem sentado com a loira de seios fartos em seu colo? Ele é Michele Greco, o dono desse lugar e de vários outros bordeis da cidade, se conseguir o impressionar quem sabe não ganha uma recompensa? Uma bela mulher para lhe aquecer apesar do calor que anda fazendo.
Apenas restou para Christopher rir junto ao homem, pois apesar de não achar a mínima graça, ele devia muito a Giovanni por tê-lo apresentado a tantas pessoas influentes. Assim que as risadas cessaram trocaram mais algumas palavras antes de Chris se dirigir ao piano para então se ajeitar e começar a tocar a trilha de fundo daquela noite regada a bebedeira, charutos e negociações.
Christopher havia perdido completamente a noção de quantas músicas já havia tocado, e assim que um dos funcionários do local tocou seu ombro apenas para lhe dizer para fazer uma pausa foi que o rapaz voltou a realidade finalizando a música que tocava para então estalar seus dedos antes de se levantar e voltar sua atenção para os aperitivos servidos pelos mordomos em bandejas de prata.
O rapaz vendado, como não entendia muito a língua, apenas uma palavra ou outra, frases simples, pelo tempo que ficou ouvindo e apanhando de Francesco e seus capangas, Amadeo tentava não focar nos homens falando. Focava na música, sentia que tinha algo artístico em sua própria alma, mas não lembrava o quê. A música lhe causava uma sensação sinestésica, quase podia sentir cheiro gostoso de tinta fresca enquanto ouvia. Mas então a música cessou. Voltou a ficar em alerta.
Chris teve seu foco bruscamente desviado assim que viu Amadeo junto de uma figura na qual ele conhecia apenas pela fama: Francesco. Nesse momento seus olhos azuis se mantinham arregalados e seu corpo paralisado, afinal, se encontrava completamente horrorizado pela forma na qual o outro se encontrava, acorrentado igual a um animal, e o que mais o preocupava era o fato de apenas ele parecer estar desconfortável com aquilo.
Não hesitou em se aproximar fingindo estar distraído com alguns quadros que estavam expostos na parede perto do local aonde os dois homens conversavam apenas para escutar as palavras que eram trocadas. Não precisava ser muito esperto para entender que aquele rapaz com certeza havia sido vítima de tráfico humano e de alguma forma isso mexia com os sentimentos de Chris a ponto de fazê-lo querer tomar uma atitude.
Chris usou esse momento para agir, e quase por impulso se aproximou dos dois homens com um sorriso falso em seus lábios.
– Boa noite senhores, gostaram do meu repertório? – Falou o pianista, se intrometendo na conversa de Michele e Francesco.
– Falando no diabo…- Michele ri de forma – foi fabuloso !! Giovanni fez bem em te recomendar…sabe, sou um grande apreciador da música e sei reconhecer um talento quando vejo, pode ter certeza que o chamarei sempre de agora em diante.
Christopher apenas sorri com os elogios do outro, era nítido pelo seu olhar que Michele havia realmente se encantado por seu talento e isso foi quase como um sinal verde para continuar a falar.
– Não pude deixar de notar sobre o que estavam falando –voltou seu olhar para Francesco- caso o senhor esteja interessado em vendê-lo, saiba que eu tenho interesse.
– Vejo que também possui bom gosto…Mas, será que o salário de um pianista seria o bastante para comprar essa espécime tão rara? –Diz Michele para Francesco – Escute ,meu jovem, pelo fato de ter me divertido essa noite eu estou disposto a dá-lo como presente, mas é claro… se Francesco concordar.
– Ele está com desconto, até por ter esse probleminha. Mas se Michele for dá-lo a você, é bom contratar outros homens quando o soltar. A menos que queira drogá-lo, eu não faço isso porque estraga o produto com o tempo, mas quando for seu… – O mafioso que segurava a guia de corrente ligada ao pescoço do platinado estendeu a mesma a Christopher como que entregando-o a ele – Então, Michele e eu acertarmos o valor!
Esperou o pianista segurar a corrente para se sentar ao lado de Michele e continuar com outro assunto.
Amadeo sentia a raiva querer lhe explodir pelo peito, a respiração totalmente ruidosa
Aquela não era a primeira vez que Christopher recebera um presente após impressionar algum velho rico com seu talento, porém aquilo era completamente diferente de receber um simples objeto ou gorjeta, estavam falando de um ser humano, e a ideia de ele ser o único aparentemente incomodado com aquilo fazia seu estômago revirar, porém sabia muito bem que o melhor a se fazer era vestir sua máscara social, sorrir e tratar aquele assunto com a maior naturalidade possível. Segurou a corrente pesada antes de agradecer Michele pelo presente peculiar.
– Se não for muito incomodo, poderia o deixar em algum quarto desse local? Daqui a alguns minutos precisarei voltar a tocar.
– Não se preocupe com isso, pedirei para algum de meus funcionários guarda-lo para você. – Concordou Michele.
Dito isso, o velho mafioso chamou um dos funcionários do bordel ordenando para que levassem Amadeo para uma sala que havia nos fundos do salão, e com isso Chris apenas agradeceu novamente antes de voltar a seu lugar na frente do piano.
Amadeo ainda não enxergava nada, apenas ouvia o burburinho da conversa dos homens. Ao notar que o estavam puxando novamente, concluiu que devia ter sido mais uma tentativa frustrada de Francesco o vender ou prostituir. Lhe tiraram a venda, mas o mantiveram com as correntes.
Pouco depois as notas de piano em meio a todo aquele caos começaram, mesmo de longe e um pouco abafado, ouvia o som, Amadeo recostou-se a porta, com a lateral do rosto grudada ali para ficar ouvindo, com os olhos fechados, imaginando qualquer coisa boa que tirasse sua mente dali ou do que poderia lhe ocorrer.
No salão, o pianista não hesitou em substituir as sonatas feitas por grandes compositores, pelas suas criações próprias, afinal, Chris possuía uma grande paixão por criar suas próprias músicas e sonhava em um dia ser reconhecido como um grande compositor, porém enquanto isso não acontecia apenas lhe restava tocar uma ou duas de suas autorais no meio das apresentações.
Francesco estava animado por se livrar de seu problema, ao mesmo tempo que curioso em como o jovem pianista iria se dar com o platinado.
– Michele, meu amigo, fique de olho nesse seu pianista, quero saber quando ele domar o rapazinho. Se ele o amansar ou mesmo cansar de brincar com ele, comprarei de volta, ainda não estou conformado com a perda do investimento em um produto tão bom.
O tempo passou sem grandes acontecimentos, e assim que olhou no relógio que havia perto do piano percebeu que a hora de ir embora já estava próxima, e por isso apenas finalizou a música na qual estava tocando (Chopin- Nocturne) antes de se levantar, agradecer, e ir ao encontro de Michele.
– Você foi magnifico, e acredite, sua música estava mais interessante do que qualquer par de seios desse lugar…bem, acredito que veio buscar seu presente não é mesmo? – Logo pediu para que um dos funcionários trouxessem o rapaz de volta- deveria ficar um pouco, beber conosco…
– A proposta é tentadora –sorri- mas eu estou exausto, talvez na próxima vez que nos encontrarmos eu aceite.
O funcionário voltou, trazendo o rapaz encoleirado e dando a corrente a Christopher que a segurou antes de se despedir do mafioso e se dirigir para a saído do recinto. Lá fora retirou seu sobretudo o colocando sobre os ombros do garoto, afinal, a essa hora os ventos que vinham traziam consigo uma brisa um tanto fria. O guiou até seu carro, comprado após muita economia, e tentou ajudar a se sentar no banco de trás antes de tomar seu lugar ao volante. O platinado praticamente rosnou para ele quando tentou lhe ajudar a entrar no carro, puxando o corpo para longe de seu toque, se sentando ali sozinho enquanto olhava ao redor. O olhar de Amadeo ficou fixo no pianista, como que calculando o melhor momento de o atacar.
Já Chris estava ansioso para chegar logo em casa e soltá-lo de suas amarras e por isso acelerou indo o mais rápido que podia. Apesar do olhar tão feroz dirigido a si, em nenhum momento Chris cedeu, bem pelo contrário, manteve sua expressão fechada e seus olhos felinos fixos aos do outro, entendia muito bem o motivo de estar agindo assim, afinal, estava obviamente machucado, com medo e confuso, sentimentos esses que o homem compreendia muito bem.
Publicado por:
minhas outras postagens:
COMENTÁRIOS
Sua Comunidade de Novels BL/GL Aberta para Autores e Tradutores!
AVISO: Novos cadastrados para leitores temporariamente fechados. Se vc for autor ou tradutor, clique aqui, que faremos seu cadastro manualmente.