Gângsteres Não Choram (Degustação) - PRÓLOGO
O alvorecer me agracia com seus raios solares que infiltram-se pelas frestas das janelas gradeadas, a banhar-me, aquecer-me, silenciosamente anunciando meu milésimo nonagésimo quinto dia atrás das grades do Centro de Detenção de Incheon, penitenciária sul-coreana.
A liberdade é como um amor que não nos prestamos a cultivar: damos valor apenas quando perdemos. Aqui, encontro-me aprisionado numa cruel e dilacerante realidade não somente por tê-la perdido…
mas como o meu amor também.
Há três anos cubro meu corpo com os mesmos trapos surrados, engulo da mesma comida insípida e sob o mesmo piso fedorento me recolho para descanso. Meu dia a dia corre tão mecânico e devagar quanto os ponteiros de um relógio enferrujado. Tenho o horário de levantar, comer, banhar e deitar severamente controlados.
Sinto-me como Sísifo, condenado pelos deuses a carregar uma pedra até o topo da mais alta montanha, então, lá de cima, assisti-la rolar para a superfície e ter de subi-la outra vez. E de novo, de novo, de novo… Por toda a eternidade.
Até mesmo meu próprio nome, Lee Yejun, abdiquei. Guardas, carcereiros, cozinheiros e detentos de outros blocos se referem a mim pela combinação numérica estampada em meu uniforme monocromático: 1586.
Na cela, encontro-me preguiçosamente estirado pelo canto que chamo de meu. Deito no piso com uma mão atrás da cabeça e cruzo as pernas como quem não quer nada, vez ou outra baforando o cigarro preso nos dígitos.
Tal como o tabaco, o consumo de narcóticos e pornografia ferem gravemente o regulamento institucional e resultam em meses de acréscimo na penalidade. Ainda assim, o tráfico dentro do sistema prisional é implacável e alastra-se com a mesma velocidade que um fósforo aceso engole a gasolina.
Maços de cigarro, cerveja gelada, anabolizantes, LSD e bolo de chocolate. Existem diversas maneiras de conseguir algum recreamento dentro da prisão. Desde troca de favores à territórios no pátio, dinheiro, kai bai bo, guerra de braço e…
boquete.
Eu não tenho nada a oferecer além da disposição para arroxear os joelhos e uma garganta profunda.
Compartilho uma cela minúscula com três sujeitos: Canibal, Molotov e Cuzão. Apelidamos o último desta maneira pois ele fora um dos visitantes da penitenciária que introduziram drogas no próprio corpo e, após o procedimento de revista corporal no aparelho de escaneamento, acabaram sendo enxotados cela adentro. Cuzão foi detido com microcelulares, mini carregadores, buchas de maconha e vinte gramas de cocaína alojadas no reto, material mais que suficiente para torná-lo alvo de piadinhas que o atormentarão até o último dia de pena. Muito caçoamos dele. Brincamos sobre seu ânus ser um buraco negro hiperdimensional que a qualquer momento pode nos engolir para uma realidade alternativa, ou que poderíamos encontrar refúgio lá dentro caso o vírus Z explodisse e precisássemos de proteção contra o apocalipse zumbi.
Nesta manhã em especial, nossa cela parece tão cheia quanto uma festa de universitários bêbados. Não reclamo, claro. Prefiro a agitação ao silêncio pois ele já não me agrada como antes, não é amigo meu, o silêncio é a chave mestra que destranca a porta de entrada para memórias indesejadas — e meus pensamentos são nocivos como veneno injetado na corrente sanguínea. Me matam paulatinamente.
A animação logo cedo se justifica: temos carne nova e é costume nosso celebrar com euforia a chegada de novos companheiros de cela. Se a recepção é amistosa ou não, depende do grau dos crimes pelos quais o canalha em questão havia sido condenado.
Toda vez que recebemos um novato, através da mesma portinhola onde os agentes penitenciários nos passam o alimento, somos presenteados com uma cópia modificada da ficha criminal do dito cujo para checar com que tipo de pessoa estamos lidando. Caso o detento seja pedófilo ou agressor de mulheres, nós amarramos uma fronha em sua cabeça e impiedosamente o linchamos até que quebre algumas costelas.
Indiferentes à vida do criminoso, os carcereiros compactuam silenciosamente com o pandemônio até que o “felizardo” acabe completamente moído e sanguinolento, mais morto que vivo, como se tivesse sido esmagado por um rolo compressor. Só então apartam a pancadaria para socorrê-lo, teatralmente alarmados.
Se o recém-chegado tivesse cometido infrações de pequena e média proporção como furtos, homicídio culposo, venda ou posse de drogas, nos reuníamos em círculo para compartilharmos nossas péssimas escolhas de vida. Eu particularmente optava por me afastar da recepção amigável. Era mais divertido chutar-lhes a boca do estômago até que vomitasse um bocado de sangue misturado à última refeição que tiveram fora do xadrez. Logo ao serem enxotados para suas devidas celas, os presos de primeira viagem geralmente sofrem ataques claustrofóbicos, choram, juram suas inocências aos quatro ventos ou arquitetam planos mirabolantes na vã tentativa de dar no pé. O detento recém- chegado, por sua vez, demonstra calmaria e amigabilidade incomuns. Não me dá sossego pois tagarela com os outros feito conhecido de longa data.
Estão conversando sobre episódios marcantes da vida, piadas, filhos, drogas e seios fartos.
— E você, uh? Por que está aqui? — o novato me dirige a palavra, em bom tom para que sua pergunta não se dissipe pelo ar. Em vão.
Eu o ignoro totalmente.
Afastado dos demais, cerro as pálpebras e me finjo de surdo e invisível. Tenho zero interesse em dar ouvidos à história dele, tampouco compartilhar as estradas por onde trilhei.
De repente, a dor de uma pancada forte na cabeça me desperta de súbito do cochilo. Resmungo com o impacto no corpo e, desnorteado, sento-me no chão. Ao meu lado, a arma utilizada para executar o crime: um sapato velho.
— YAH! — esbravejo para o quarteto, explicitamente alterado. — Quem foi o arrombado?
Silêncio. Nem um pio.
Fito os detentos com os orbes incandescentes de raiva, eles me devolvem olhares arteiros e risonhos.
— Vou perguntar pela última vez: QUEM foi? — elevo o tom vocal.
Após largos instantes de silêncio absoluto, me coloco de pé na fúria do impulso e empunho o sapato. Avanço um passo à frente, de braço flexionado como quem está prestes a esmagar uma barata, ameaçando arremessá-lo em quem quer que seja o culpado. De nariz empinado, Canibal se levanta como quem não teme uma sapatada na cara e cessa os passos à minha frente. Vejo de perto como é miúdo e seco, de faces cansadas, cobertas com rugas que o tempo entalhou nele. Os sessenta e poucos anos refletem nos chumacinhos de cabelos grisalhos que circundam sua careca. Um velhote.
— Fui eu que atirei o sapato, vai fazer o quê? Hein? — Canibal desembainha um olhar cortante e me enfrenta cara a cara.
Incapaz de machucar o velhinho decrépito, abaixo a mão que sustenta o sapato gasto, me dando por vencido.
Ou quase.
Revelando meus requintes de maldade, atravesso a cela rumo à parede do canto onde ele dorme e torno furiosamente a arrancar, rasgar, picotar todos os recortes de revistas com mulheres nuas explicitamente abertas coladas ali. Toda noite antes do descanso, Canibal se prostra diante de sua atriz pornô predileta e estala dois beijinhos na face de papel para então, dormir.
Profundamente aterrorizado, o velho lunático despenca de joelhos como se sua família inteira tivesse sido aniquilada diante de seus olhos.
— M-Mistress do Desejo Ardente… — ele choraminga infantilmente. Em seu semblante, sobrancelhas unidas, lábios trêmulos e pupilas dilatadas.
Completamente ensandecido e fora de si, Canibal abre um berreiro digno de protagonista de novela mexicana. As lágrimas jorram com a violência das cargas de água do Niágara.
— Seu… Seu MONSTRO! — Cuzão me xinga e corre a acalentá-lo, massageando as costas do senhor com o carinho de mãe aflita.
— Esse cretino que começou! — me defendo apontando para Canibal.
Os detentos me olham como se eu tivesse esmagado crânios de cachorrinhos fofos ou substituído bolas de futebol por bebês recém-nascidos, e de repente me sinto a mais abominável de todas as criaturas. Ninguém mexe com o canibal caduco.
— Aigoo, estamos aqui há anos, sei o cheiro do peido de cada um de vocês e esse bunda-mole não tem coragem de abrir a boca! — o velhote queixa-se.
Estou tão aborrecido que não reprimo uma revirada de olhos.
— É isso que vocês querem? Uma história? — questiono, as mãos plantadas na cintura insinuam minha indignação.
— Desembucha aí, cara! — os prisioneiros incentivam em uníssono. Bufo como um touro encurralado.
Sentamo-nos todos como se estivéssemos ao redor de uma fogueira. Deito meu olhar sobre os detentos um por um, perscrutando-os até localizar a carne nova. E lá está ele, colocando-me no foco de seus olhinhos de coruja.
O novato possui maçãs do rosto escandalosamente acentuadas, queixo anguloso, orbes narcolépticos em cima de olheiras arroxeadas que se destacam pela pele pálida. Tivera os cabelos raspados como todos os prisioneiros e aparenta pouco menos de trinta anos vividos.
Ao deter sob minha figura os olhinhos curiosos dos meus parceiros de cela, não vejo outra opção a não ser narrar com vigor e convicção uma história qualquer para que engulam a farsa. Pigarreei contra o punho, prefaciando meu discurso.
— Nasci em Kakyungri, uma vila pequena e muito tradicional — inicio com oralidade expressiva no timbre lúdico. — Meu pai, líder do vilarejo, nunca aceitou o fato de seu único filho ser homossexual e… Bom, convencido de que eu estava possuído por espíritos malignos, todas as noites me obrigava a visitar o templo da nossa xamã para realizar o que eles chamavam de “cerimônias de reversão da lascívia demoníaca”.
Gesticulo com teatralidade, exprimindo através das mãos imagens que se solidificam no imaginário alheio. Prossigo, supostamente aflito:
— Lá eu era forçado a ter relações sexuais com a xamã a fim de libertar minha carne da tentação homossexual. Usávamos trajes pesados e exuberantes de antigas dinastias, ambos com amuletos de papel colados no rosto como Jiang Shis. Os rituais sinistros seguiram-se por longos cinco anos até que…
— Como você… — o novato balbucia.
— Shh! Não me interrompa, caralho — corto imediatamente, com secura na fala. Trago o ar e limpo a garganta, retomando a história de onde parei:
— Acompanhado de fósforos e gasolina, invadi o templo durante a madrugada, decidido a colocar um fim nisso tudo. A sangue frio cravei uma caneta no pescoço da xamã e sem pensar duas vezes ateei fogo naquele maldito lugar. Não conseguiram deter o incêndio a tempo. As chamas do templo consumiram a vila até não restar nada além de cinzas e cadáveres para todo o lado. Fim — encerro, com timbre morno e melancólico. Sem sinal de arrependimento.
Finalizado o meu discurso, nunca vi olhos mais perplexos. Controlo minha vontade de rir a custo.
— Puta que pariu… — Molotov desvia os olhos aterrados para longe.
Digerindo os absurdos que ouviram, calados, o silêncio que varre a cela denuncia quão barulhentas estão as mentes dos homens à minha frente.
— Perguntas? — indago, fitando-os.
— A xamã era gostosa? — Canibal quebra o gelo, com um sorriso atrevido brilhando no rosto.
De repente quis matá-lo.
— Parecia uma ameixa seca de quinhentos anos — replico, rabugento.
— Panela velha é que faz comida boa, xará — Cuzão me dá uma cotovelada amigável.
— Então essa é a história da sua cicatriz? — o novato arrisca perguntar, sinalizando para a cicatriz em alto-relevo cravada em um dos meus pulsos. Tentativa de suicídio.
— Ah, isso? — ri nasalado, fitando minha pele rasgada. — É — omiti.
— Inacreditável… — o novato murmura, cabisbaixo. “Inacreditável”. A palavra faz cócegas em minha garganta.
Crispo os lábios com força na tentativa de engolir a risada e manter a expressão séria, no entanto, uma gargalhada sonora explode da minha boca em urros irreprimíveis, deixando os prisioneiros com um grande ponto de interrogação em cima de suas carecas. Ri tão prolongada e escandalosamente que sinto doer a barriga. Jogo meu corpo para trás, deitando ali mesmo até findar o acesso de risos. Puxo o ar para recuperar o fôlego perdido e, com um sorriso de orelha a orelha, disparo:
— Claro que é “inacreditável”. É tudo mentira.
— DESGRAÇADO! — Canibal esbraveja e joga-se sobre mim como se eu fosse um colchão de molas. Me estrangula sem a intenção de me asfixiar, chacoalhando meu corpo dos pés à cabeça. — Sua sobremesa será minha pelo resto da vida!
— Mama minha pica, seu otário! — rebato, divertido.
Três da tarde.
Trinta minutos após o almoço, milhares de presos marcham em fila indiana rumo ao lugar mais agradável e fresco da penitenciária: o pátio. Sob céu aberto, os detentos de pavilhões e alas distintas misturam-se para exercerem atividades de redução da pena ou apenas descontrair.
O pátio é ladeado por um longo muro de rachaduras compostas pelo tempo, arame farpado no topo e equipamentos de academia espalhados por toda a extensão. Nós, os prisioneiros, somos observados pelos policiais penais fortemente armados que cercam a alta torre de vigia.
Sentado no chão próximo à arquibancada de concreto, meus olhos metediços registram cada movimento dos prisioneiros que se exercitam numa elétrica partida de basquete à minha frente. Suas grandes mãos quicam a bola alaranjada, lançam à cesta, fazem passes entre si e esquivam-se da marcação.
O estalo da bola ricocheteando contra o chão engole o silêncio autodestrutivo que devasta minha mente perturbada, calando as antigas discussões e ecos ensurdecedores das armas automáticas que há três anos me tiram o sono.
Enquanto assisto o jogo, me satisfaço com a sensação do cigarro enrolado pelos lábios e chego a queimar cerca de dois maços diários em meu suicídio lento. Tragando e expirando, inclino a cabeça para trás e a nuvem de veneno adquire novas formas, rodopiando com elegância até desaparecer completamente pelo ar. Juro que consigo ver rostos conhecidos na fumaça.
— Como se chama? — Ouço alguém perguntar.
Me desvencilho dos devaneios e instantaneamente reconheço o dono da voz que me puxa de volta para a realidade: o novato. De soslaio, assisto ele abusar da intimidade que não temos. Acomoda-se ao meu lado e me fita com um largo sorriso que exala simpatia.
— Vai ver se eu tô lá na esquina — respondo com o azedume de um velho rabugento, sem ânimo ou vontade alguma de jogar conversa fora. De pálpebras baixas, olhos desinteressados e braços apoiados nos joelhos, todo o meu corpo traduz: sua presença radiante não me agrada.
— É um nome muito longo… — o novato constata simplista, meio debochado, com divertimento reluzindo fosforicamente no tom vocal. — Vou te chamar de Esquina, tá belê?
Em uma medida desesperada de conquistar minha atenção, o maldito toma meu cigarro dos lábios e se põe de pé.
Antes que eu possa rugir ou xingar toda a sorte de palavrões que tenho conhecimento, ele cordialmente para bem diante dos meus olhos. Exibe o cigarrinho na frente do corpo e então, envolto pela impressionante desenvoltura de um ilusionista, com uma manobra hábil da mão livre o pequeno cilindro ganha a forma de um delicioso muffin. Um passe de mágica surpreendente.
Como uma criança que vê fogo pela primeira vez e deseja tocá-lo, meus olhinhos fascinados triplicam de tamanho.
— Como você… — inicio em um fio de voz, com os grandes olhos puxados sintonizados aos dele.
— Os caras lá de dentro me chamam de “Mímico” — ele ri, curvando-se teatralmente como um circense que presta reverência no fim do espetáculo. Então se recompõe.
“Babaca”, penso.
— Prefiro o pedaço de câncer cilíndrico — declaro indiferente, evitando demonstrar meu encanto por aquele truque bobo. — Devolva.
Estendo a mão aberta, em vão. Ele simplesmente enterra o filtro do cigarro aceso no topo do bolinho, atribuindo-lhe o aspecto de uma vela de aniversário. Ergue o bolinho na altura do meu rosto para enfatizar as palavras:
— Vai, faz um pedido! — ele exclama como se tentasse levantar meu astral. Eu não preciso disso.
— Quero que pare de encher meu saco — lanço sem pensar, bufando.
Ergo-me, bato a poeira do uniforme e meus pés me guiam para qualquer lugar onde Mímico não esteja presente. Mas ele vem logo atrás. Me segue como um vira-lata faminto e carente de afagos, aborrecendo-me três vezes mais.
— Molotov disse que é seu aniversário, mas parece que não está no clima para festejar… — Mímico comenta com desânimo.
Cesso meus passos, pensativo.
Como se eu tivesse encontrado a letra decisiva para a resolução de um jogo de palavras cruzadas, tudo fez sentido e eu finalmente pude entender a origem de sua insistência em minha companhia. No baralho da vida essa cartada eu já conheço bem. Sempre estranhe afeto demais, pois o interesse e as segundas intenções geralmente são veladas por grande simpatia. Todos esperam algo em troca…
E nada é de graça dentro da prisão.
Contraí o maxilar, sentindo a fúria inflamar no peito. Palavras não bastam, ele tinha de sentir na pele que eu não era mais aquele sujeito medroso e fragilizado de três anos atrás, recém-chegado no xilindró, um coelho lançado aos lobos. Ninguém tira proveito de mim.
Giro os calcanhares e de cara a cara com Mímico agarro-lhe o colarinho, arremessando-o sem nenhuma delicadeza contra a parede mais próxima. O baque oco do corpo em contato com o concreto fere meus tímpanos, entre seus gemidos doloridos, piso firme até ele.
Aponto o indicador e o cara se encolhe todo, como uma tartaruguinha acuada dentro do casco.
— Me deixa em paz, valeu?! — rosno, os olhos apertados de raiva presos aos dele. — Se tá querendo arranjar uma foda fala com aquele cara ali ó, o Marmita. Não sou depósito de porra de ninguém.
Aponto para o Marmita, um sujeito casca-grossa com adoráveis sinaizinhos salpicados pela face sardenta. Acompanhado de sua gangue, distante de nós, ele contornava com fita adesiva a extremidade reta de um pedaço de vidro pontiagudo e assim produzia uma empunhadura para sua faca improvisada. Não quero imaginar as intenções dele com aquilo.
— O melhor lugar pra trepar é na biblioteca, ninguém vai lá, é mais fácil todos esses vagabundos usarem as páginas dos livros pra limpar a bunda ou enrolar um baseado — acrescento, afastando-me.
Contrariando minhas expectativas, Mímico simplesmente varre a poeira dos braços com dois tapinhas e então, pigarreando, recompõe a postura.
— Sou aroace — Mímico afirma, munido de toda a simplicidade e transparência de quem saúda o próximo com um “bom dia”.
Giro os calcanhares e o vejo cruzar os braços acima do peito, denotando que aquilo se trata de assunto sério.
— Dá pra traduzir? Não falo árabe — brinco, deixando escapar uma risadinha nasalada. — Assexual arromântico — ele explica pacientemente — Não tenho a menor vontade de me relacionar amorosamente e também não sinto atração sexual, na verdade… Bom, não tô afim de trepar com você.
Quê?
Franzo o cenho, boquiaberto, tão perplexo que minha mandíbula quase atinge o chão. Um turbilhão de perguntas inunda minha mente. A todo momento o ser humano busca satisfazer seus desejos plenamente, que tipo de pessoa não gosta de sexo? Só podia ser um lelé da cuca ou alienígena.
— Você…? — sinalizo um círculo com os dedos enquanto chacoalho a mão, uma maneira nada discreta de perguntar sobre masturbação.
— Meu pau funciona, se é o que cê tá querendo saber — ele não se dá ao luxo de esconder seu aborrecimento e rola os olhos.
Maquiavélico, aceito sua revelação como um desafio.
— Sabe o que eu acho? — inicio, meu sorriso atrevido se estende silenciosamente.
O tempo encarcerado não me enferrujou, muito pelo contrário — para alguém de três décadas vividas eu estou ótimo. Minha pele continua macia feito pêssego, meus lábios carnudos são naturalmente róseos e, devido aos exercícios no pátio, meu físico está mais lapidado do que nunca.
Ardiloso como a serpente de Gênesis que apela para Eva comer do fruto proibido, com os olhos embriagados de sedução fixos aos dele, elimino cada centímetro de distância que nos afasta.
Estamos tão próximos que posso notar furos pequeninos em ambas bochechas dele, entre o queixo e lábio e outro na sobrancelha também. Presumi serem de piercings que os oficiais o obrigaram a remover em nome do protocolo de segurança da penitenciária.
Espalmo a destra no concreto, encurralando-o na parede com o braço esticado ao lado de seu corpo. Mímico se retrai, limpa a garganta e retesa a postura, de ombros tensionados, parece desconfortável como um nerdzinho virgem perdido num prostíbulo.
Viajo os lábios até o pé do ouvido dele, abandonando ali as seguintes palavras:
— Que você ainda não conheceu a pessoa certa — aveludo o tom de voz, soprando meu hálito quente contra a região sensível do pescoço branquinho à minha frente.
Adoraria fazer as honras.
Sem um pingo de decência deslizo a mão pela lateral das coxas dele, massageando sua intimidade com as pontas dos dedos atrevidos. Então Mímico agarra meu pulso com força e, ao tirar minha mão de seu pau, tive a certeza de que senti minha alma abandonar o corpo, atingir o inferno e retornar.
Quando me dou conta estou deitado no chão, contorcendo-me dos pés à cabeça feito uma minhoca, virando de um lado para o outro em posição fetal choramingando a dor equivalente à de mil e um partos simultâneos: uma joelhada no saco. Impiedosa e certeira. Inevitavelmente atrai a atenção dos outros presos, que olham para nós como se fossemos casos psiquiátricos severos e irreversíveis. Mas pouco importa o que pensam. Nenhuma outra preocupação sobressai meu desejo incomensurável de decapitar o Mímico.
Fuzilo o desgraçado com o olhar. Ele está em pé enquanto eu me recupero do golpe baixo pelo chão, olhando-me lá de cima com um sorriso diabólico, fazendo-me sentir tão pequeno quanto uma formiguinha. Aposto que está se divertindo com a situação.
— Cretino! Eu vou MATAR VOCÊ! — esbravejo entredentes, como um cão espumando de raiva.
— Então você curte homem, né? — Mímico pergunta, simplista.
— Eu juro por Deus que vou beber o seu sangue e fazer um casaco com a sua maldita pele! — a dor lancinante declina meu raciocínio por completo, minha mente não consegue produzir nada além de uma lista interminável de ofensas, ameaças de morte e barulho.
Mímico bufa.
— Qual sua orientação sexual, caralho? É tão difícil de responder? — ele se alterou.
— Gay, né, porra!
— Você é homossexual porque ainda não conheceu a mulher certa? Ou porque sofreu algum tipo de trauma na infância? Hein? Então cala a boca, seu bosta.
Faço do silêncio a minha resposta.
Ainda que me sinta dilacerado nas partes baixas, sento-me, apoio os joelhos no peito e os abraço. De repente sinto que sou o mais merda dos merdas, pois finalmente compreendo: a assexualidade trata-se de uma orientação sexual tão válida quanto a minha.
Apreensivo, arrasto timidamente as pupilas para o Mímico que, de cima, atrás dos braços cruzados, me fita com olhos agudos e judiciais. Está zangado e não se dá o luxo de fingir o contrário.
Instantaneamente, sou tomado pela impressão de que a falta de reconhecimento e visibilidade sobre a assexualidade, em uma sociedade extremamente carnal como a nossa, contribui para a consolidação da visão errônea dos assexuais como doentes. Exatamente do jeito que eu o vi.
Lembro-me dos tempos que passei na companhia de Wonshik, o soberbo e homofóbico Han Wonshik, onde minha garganta secava de tanto explicar-lhe que existem quase oito bilhões de pessoas no mundo inteiro e que nem todas elas são heterossexuais ou cisgênero.
Pessoas inflexíveis como o Líder Han, que não sabem, não querem saber ou ignoram conhecimentos novos com indiferença e antipatia, arrancam a capacidade das minorias de se verem como parte da sociedade, excluindo-as, matando-as indiretamente. Não quero ser como ele. Han Wonshik foi a pessoa mais infeliz que já conheci.
— Foi mal aí, pisei na bola. Não vai acontecer outra vez — me desculpo baixinho, tropeçando no próprio ego.
— Quê?! — ele resmunga como um velhinho surdo e senta-se ao meu lado, copiando minha postura.
Emito um muxoxo de desaprovação ao constatar que meu pedido de desculpas não tinha sido ouvido. Não pediria perdão duas vezes.
— Por que cê tá aqui mesmo? — altero a rota do assunto, fitando-o nos olhos.
— Eu te conto se você me contar o seu motivo — ele propõe, sorrindo arteiro com todos os dentes.
Sua habilidade de conseguir me tirar do sério sem qualquer esforço é inacreditável.
— Isso não faz sentido, você é idiota? Eu simplesmente posso perguntar pro Cuzão qual foi a cagada que você fez. Não é como se eu estivesse interessado — protesto.
— Sabe… — Mímico inicia, imerso em devaneios, esticando as pernas preguiçosamente — Eles me disseram que quando você chegou, não conversava com ninguém, só… chorava e chorava. Chorava tanto que tiveram que te desacordar na porrada para que pudessem dormir em paz.
Limpo a garganta.
— S-seus dois neurônios acreditaram nessa baboseira? — balbucio enquanto rio de escárnio, falhando ao tentar desmenti-lo. Gostaria de deletar essa memória.
— E que depois disso você nunca mais derramou uma lágrima sequer. Eu quero saber o motivo — ele afirma com curiosidade e convicção.
Bufo.
— Por que tá tão interessado? Não, digo, por que eu contaria minha vida pro maluco que me deu uma joelhada na mala?! — indago afoito, sentando em posição de pernas de índio.
— O que você tem a perder?
Sua pergunta me convida à reflexão, deixando-me de boca entreaberta, sobrancelhas arqueadas e orbes pensativos. Não tinha nada a perder, nada a ganhar a não ser… a possibilidade de anestesiar a dor avassaladora que punge meu peito todas as noites.
Eu perdi tudo. Adentrei a penitenciária derrotado, levando comigo nada além das roupas no corpo e minha história gravada no coração — ela é pesada demais para eu carregar sozinho. Angústia compartilhada é angústia amenizada e talvez seja disso que eu esteja precisando. Matar a angústia antes que ela me mate.
— Estou esperando ele me resgatar já faz três anos… — assopro as palavras quase aos sussurros, contrito e sem sinal de esperança. Minha cabeça dói com a possibilidade de ele ter morrido ou encontrado alguém melhor que eu.
— “Ele” quem? — Mímico arrisca perguntar e, hesitante, toca meu ombro com a mão amiga.
Meus pulmões cansados puxam o ar com força, suspirando profundamente. Então cerro as pálpebras, permitindo-me desvelar as profundezas da minha alma em busca das memórias que ainda sangram como feridas abertas.
Vinte e cinco de maio.
Publicado por:

- Juna
- JUNA — Juliana Pedroso —, é formada em Boys' Love, casada com a psicologia, assexual birromântica e pensadora da teoria queer nas horas vagas. Está sempre antenada no instagram @junaescritora e é fã de roupinhas fofas, quem vê nem imagina que a-m-a enredos complexos e personagens ferrados da cabeça.
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