A Noite Em Questão - VIII
BERLIAC
O cheiro forte e ardido subiu ao meu olfato no momento em que me inclinei, quis vomitar, podia ver a água escurecida e barrenta, fedia a sangue, a carne podre também, não havia ninguém lá que pudesse testemunhar o que eu estava prestes a fazer, verifiquei mais uma vez, me abaixei, de joelhos estava sobre o solo, estendi a mão para uma poça de lama escurecida, não foi preciso muito esforço para sentir o metal frio, puxei-o para fora, era um relógio de bolso, o vidro estava quebrado, e a lama sangrenta havia penetrado pelos furos, consumindo os ponteiros e afogando as horas, já não parecia funcionar, porém, era de fato um importante achado, sabia que aquele não era o relógio de Jerome Knight, o morto teve seu corpo retirado junto com seu relógio de pulso, era de marca alemã, assim como o meu, logo me dei conta de que alguém havia estado aqui, alguém que portava um relógio de bolso de marca estrangeira, na borda em meio os detalhes de prata estavam gravadas as iniciais; A.H Lewandowski.
Relógios de bolso e nomes complexos, parecia saber exatamente quem procurar diante daquela situação, nenhum de nós precisava ser um gênio para saber que os Polacos eram sorrateiros, estava falando sobre um vampiro, um vampiro diante de uma cena de crime sangrenta, de fato uma grande ironia, sacudi o relógio para deixar o liquido sair, o que não funcionou muito bem, olhei para o céu cinzento ao meu redor, logo o relógio iria soar demarcando o meio dia, sabia disso sem ao menos precisar verificar o meu celular ou o meu relógio de pulso, uma semana após o corpo de outro alfa dominante ser encontrado o sol se foi, era como se o céu compreendesse exatamente aquela situação, logo os dias foram ficando cada vez mais silenciosos.
Nu diante do espelho olho para a cicatriz quase transparente que marca minha face, já não me lembro da dor, restaram apenas as lembranças, debaixo do chuveiro sinto a água escorrendo sobre meu corpo, primeiro alcança meus cabelos, desce até a ponta dos pés, é quente, faz com que a minha pele fique macia, eu sempre me perco, nestes momentos de solidão vou adentrando cada espaço em minha mente, os ocupo com cada mínimo detalhe, cada sensação, cada cheiro, cada visão, o aroma da água perfumada, quente e florido, o som da mesma escorrendo pela minha pele, quase deixando suas gotas adentrarem meus ouvidos, fecho os olhos e abraço esse momento, a medida que me concentro vou aos poucos me esquecendo do mundo ao meu redor, tudo começa a se desfocar, fecho os meus olhos, relaxo, logo eu me perco.
Às vezes sinto que não sou o único dono do meu corpo, quero ser bom, mais do que tudo, porém algo dentro de mim me impede, é quase como um ardor entalado na garganta, sobe para a ponta da língua, uma aversão descomunal a tudo e a todos, faço e falo coisas ruins, em sua maioria eu penso, são pensamentos hediondos, eles sempre vem até mim, me atingem como um enxame de abelhas agressivas, penso de forma tão intensa que pareço entrar dentro da minha mente, começo a discutir comigo mesmo, sentindo aquele calor por todo o corpo, em meio a essas fantasias eu me deparo com o sacrilégio, pecados que permeiam a minha mente, temo sonhar com coisas irreais, coisas que me assustem e me façam confundir a realidade da fantasia, que me façam acordar suando ou gritando, em meio a estes apagões o desespero e a agonia tomam conta do meu ser, às vezes me comporto de modo incorreto, eu sei que é errado, porém é mais forte do que eu, não devo desejar que as pessoas sejam punidas, não devo desejar que aqueles que me desagradem queimem, não devo pensar em coisas ruins, acho que sempre tive esse problema.
Na primeira infância eu era uma criança calma, diferente de quando bebê, meu pai, Kenai, me dizia que ainda com poucos dias de nascido eu era turbulento, não chorava e nem gritava, dizia que eu gostava de tudo, sorria muito, espontaneamente, gostava de abraços apertados e se por um acaso me pegasse em seus braços eu iria tentar pegar no seu nariz, enfiar a mão dentro da sua boca, tocar seus cabelos negros, tudo isso em meio a um sorriso espontâneo, era uma criança muito alegre, a medida que ia crescendo eu ia ficando cada vez mais calmo, porém aquela chama dentro de mim ainda estava acesa, sou diferente dos outros, de todos os outros alfas dominantes que conheci, devo essa individualidade ao meu pai, devo muito a ele, meu pai ômega, o meu pai alfa, Senhor Berliac, ele era calmo, porém não se comparava a Kenai, este era e até hoje é algo inexplicável, um sentimento, Heinrich Berliac dizia; “Ele vem como um furacão de borboletas azuis, simplesmente surreal.” Eu ouvia, guardava tudo na minha cabeça.
Kenai se aproximava de mim todas as manhãs, vinha com os braços estendidos e aos poucos ia se ajoelhando até chegar ao meu tamanho, me envolvia em um abraço e dizia; “O que foi coraçãozinho dos outros?” Essas memórias permanecem de forma estranha ,é como algo que você simplesmente não consegue esquecer, como o seu nome. “Coraçãozinho dos outros.” Nunca entendi este apelido, era algo do Kenai, no fundo não sabíamos nem dez por cento sobre ele, sobre a sua mente misteriosa, ás vezes eu me negava a acreditar que talvez Kenai tivesse vindo a ser uma criança como eu, que ele tivesse sido um bebê, que ele tivesse ao menos estado dentro da barriga de alguém, Kenai sempre esteve lá e na minha perspectiva de criança ele era o centro de todo o mundo.
Lembro do meu pai, gentil, bondoso, leal, por conta disso há em mim o martírio, não quero ser o mais forte nem o mais belo, quero ser como ele, quero ser um sentimento, quero ser bom, porém nunca é o suficiente, quando eu penso em coisas ruins começo a buscar em minha mente as boas memórias, os apelidos carinhosos, os olhos escuros de Kenai e os olhos cinzentos de Heinrich, as nossas visitas a praia, correndo das ondas e montando castelinhos de areia, das tardes ensolaradas tomando sorvete na varanda da nossa casa de campo, das noites frias e chuvosas, tempestuosas com raios e trovões que tremiam as janelas, lembro de dormimos todos os quatro juntos, na cama, debaixo da coberta, ouvindo o som da chuva, olhava para o meu pai alfa, para meu irmão, todos nós olhávamos para Kenai, ele era o nosso sol de todas as manhãs, era também a chama acesa de uma vela que nunca se apaga em meio a escuridão.
Eu sempre tive medo, era sobre os sonhos e pensamentos ruins a medida que eu ia crescendo, eu estava contornando isso, tentava bloquear esses pensamentos sobre o meu medo de crescer, medo de mudanças, eu havia conseguido, porém depois que conheci aquele ômega eu me perdi.
Odon não veio a mim como um furação, parecia mais uma dor de cabeça, uma lembrança apagada, da primeira vez que o vi senti de imediato que ele seria um problema, ao seu redor padecia uma aura escura e sombria, era um silêncio que machucava, algo em seus olhos me fazia pensar que a qualquer momento ele iria me atacar, não sabia ao certo como, afinal, este era o mal velado, o medo invisível, algo que você não enxerga até ser tarde demais, se eu fechar os olhos e me concentrar tudo vem á tona, os sonhos de fato eram diferentes de tudo que eu já havia experimentado, não eram como uma visão borrada, nem como sons distantes, parecia ser tão real, haviam cheiros, havia o tato, havia a visão ampla e clara, havia as vozes, havia a sensação de adentrar a água, a sensação de se queimar em meio a uma fogueira, era tudo tão pessoal, no fim estes sonhos eram mais assustadores do que os pesadelos que eu tinha, mais assustadores do que o peso dos pensamentos ruins, do que os desejos infelizes, era medo, o medo da forma mais descarada, eu tinha medo daquele ômega pois ele despertara em mim sentimentos e sensações que eu nunca havia experimentado antes.
Mesmo assim eu me sentia mal, me sentia mal sobre aquela noite, depois do ocorrido tive pensamentos ruins tive os piores pensamentos que já havia tido em toda a minha vida, nesses surtos dizia que ele era um pecador, um demônio, a personificação do mal, mas no fim eu temia sentir a verdade, que ele era apenas um garoto, um garoto que estava assustado, pois eu confundia os meus sentimentos e medos e afetava os outros, eu chorei, chorei ao lembrar de seu rosto, seus olhos se enchendo e lágrimas e brilhando em meio a escuridão, ele tentou se soltar, eu o segurei e em meio ao clímax da minha situação eu me olhei para os seus lábios e me perdi completamente, quando me dei conta estava beijando-o, o apertava contra mim, comecei segurando sua face, depois sua cintura, não queria solta-lo por nada, mesmo que em mim aja a vergonha de admitir, era a primeira vez que eu beijava alguém.
Após o banho eu me sentei sobre a beirada da cama pensativo, olhava para a janela, lá fora me deparava com o céu cinzento, suspirei, havia algo de estranho em meio a toda aquela situação, o relógio de bolso de um vampiro na cena de crime que ninguém havia presenciado, afinal, só haviam duas pessoas na área externa naquela noite, eu e aquele ômega, somente nós dois, isso era algo que somente nós poderíamos saber, afinal já era tarde, quando nos separamos eu caí, lembro de ter ficado tonto e depois ter voltado ao quarto, mas foi de madrugada quando o corpo foi encontrado.
Pego o meu celular, imediatamente ligo para Yoon Ba-ram; “Achei algo que possa te interessar.” Digo. “Me encontre na cafeteria ao meio dia.”
Eu deveria ter ficado lá, se ao menos tivesse visto aquele ômega mais uma vez poderia ter a certeza, mas fui informado de que Jerome morreu por volta das dez horas, o corpo sangrou até às uma da manhã, ele estava longe, muito longe, o que me fazia pensar; “Como ele foi parar dentro do poço?” Jerome Knight era grande e alto, não poderia ter caído, ele foi para fora e não voltou, no momento em que eu me via ocupado nos fundos do restaurante com o ômega ele deveria estar sendo atacado, sangrou bastante, o seu coração deve ter sido arrancado antes que ele fosse jogado no poço, procurei pelo órgão, sem sucesso, mas em compensação achei algo que pode provar a teoria de Yoon Ba-ram, o objeto pessoal de um vampiro, ao mesmo tempo que desfalca as minhas próprias teorias baseadas em meu instinto, o ômega estava comigo quando ocorreu o assassinato, estávamos longe do poço e do hotel em questão, ele não poderia tê-lo feito, neste momento sinto meu coração palpitando, se não depositava minhas suspeitas naquele peculiar ser em quem mais poderia? Os vampiros não me agradavam porém eu não consigo acreditar que fariam isso, é muito incomum, até mesmo para sua natureza mórbida e vulgar, são sugadores de sangue, porém eles não comem membros e não destroçam pessoas.
Walker Siohban e Jerome Knight não foram atacados por animal algum, foi um de nós, alguém neste hotel, creio que o assassino ainda está aqui ele pode ser qualquer um, os dois mortos se encaixam em um padrão incomum, ricos, alfas dominante, não foi por um acaso, algo de muito ruim está acontecendo neste hotel, estive cego, enquanto julgava aquele ômega estranho não percebi as coisas ao meu redor, me sinto um tolo por não enxergar a verdade, por que mais alguém mataria dois homens de forma tão violenta? É algo pessoal, não como um simples assassinato, desonrou os corpos, deixando Siohban sobre a colina como um espantalho e jogando Knight em um poço, era cruel, de maneira peculiar, mas algo me chamou a atenção, Walker teve a sua mandíbula arrancada, eu me lembro da cena que vi naquela manhã repleta de névoas na colina, Jerome, pobre Jerome, o assassino tirou de seu peito o coração, estes membros em específico me viram a questão; A voz e a alma, tirou deles seus bens mais preciosos, sumiu com eles, desapareceu.
Um arrepio toma conta de meu coração, se eu estivesse certo, se este assassino fosse alguém movido por causa pessoais muitos iriam morrer, não estavam seguros, nem mesmo eu estava seguro, se havia tido coragem e força para matar dois alfas dominantes e inteligência o suficiente para sumir sem deixar rastros claros e visíveis esse assassino misterioso com certeza iria por um fim em todos aqueles que pudessem cruzar seu caminho, inclusive eu.
Algo mais vem em minha mente, eu me lembro da colina, me lembro de quando encontrei aquele corpo, aquele ômega, o ômega cujo apenas a menção do nome me falsa arrepios, ele estava lá, lembro quando se aproximou em silêncio sem querer ninguém o notasse, lembro que ele olhou bem para o corpo, diferente de todos ali ele não gritou, muito menos sentiu vontade de chorar, ele olhou bem para a cena, olhou bem para todo aquele sangue, estava parado, paralisado, não falou nada, não esboçou nenhuma reação, era um sentimento estranho que eu já havia sentido muitas vezes por isso consegui me espelhar nele, olhou para o corpo como se soubesse de algo, algo que não pudesse contar para mais ninguém, sinto-me confuso sobre minha própria moral, sobre a minha própria sanidade, sinto que não tenho certeza de mais nada.
Publicado por:
- Ambroise Houd
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