A Maldição do Lobo Vermelho - Capítulo 26 - Ovo, mel e resina
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As bandagens improvisadas não cumpriam bem o seu papel e os segundos que arrastavam a poça de sangue sobre o piso, também coloriam a escuridão da paliçada com os primeiros raios de sol. O rosto do pequeno perdia a cor na mesma velocidade que a angústia inundava os pensamentos de Ílios, não havia mais tempo para tentar se acalmar, precisava urgente de uma outra opção.
A brisa fria ondulava as águas enquanto atiçava o odor férreo do ambiente, sobrepujando os outros cheiros estranhos que sussurravam pelo ar. Compenetrado com a situação, o lobo só percebeu que não estavam mais a sós quando um estalo seco ecoou de uma das tábuas soltas da ponte de madeira. É claro, o que está ruim sempre pode piorar, mas talvez um inimigo inesperado fosse a solução que precisava no momento.
Sem pensar duas vezes, atravessou a porta destruída a tempo de ver a silhueta pequena se esgueirar até onde Dásos respirava ofegante. As mãos trêmulas se forçaram a encontrar o ferimento entre os tufos de pelos enquanto os olhos atentos vasculhavam os escombros ao redor. O medo estampava o rosto da mulher, mas a resignação impelia os movimentos apressados.
Ela sabia que o tempo estava correndo contra o seu sonho e que se o lobo morresse, não teria uma nova chance de atravessar o rio controlado por Netuno. Existia também a possibilidade do homem de antes não cumprir sua palavra e apenas matá-la depois que o antídoto fosse entregue, mas entre o risco e a recompensa, estava decidida a assumir as consequências. Ao menos era o que pensava enquanto remexia nos bolsos da calça, mas o rosnado baixo que esquentou as costas a fez questionar suas decisões.
— Se afaste… devagar…
O lobo sussurrou as palavras como se estivesse contendo o ataque, mas o tom agressivo deixava claro a impaciência. A mulher levantou as mãos em sinal de rendição e deu alguns passos vacilantes para longe do animal caído. Não era sua intenção provocar o outro, mas precisava mostrar a que veio, então respirou fundo antes de gaguejar:
— E-eu… não vim machucá-lo… n-nós fizemos um acordo, lembra?
Ílios observou atento enquanto ela tirava um pequeno frasco de dentro do bolso, o vidro transparente não tinha nem mesmo o tamanho de uma maçã e também não estava cheio. Na verdade, o líquido esbranquiçado desenhava uma linha ondulada um pouco abaixo da metade e desmembrava os raios dourados do sol em uma infinidade de cores sobre o chão.
Recolhendo as presas, Ílios disse no tom mais suave que conseguiu:
— Certo, faça! Se esse não for o antídoto, saiba que seu fim será lento e doloroso, mas se o remédio funcionar tenho mais um favor a pedir e então ouvirei o que tem a dizer.
Um calafrio subiu pelas costas da mulher, não havia necessidade de ameaças, ela não teria vindo de mãos vazias para início de conversa. Todavia, entendia a desconfiança do outro e apenas se esforçou para não demonstrar o pavor que estava sentindo.
— Tu-tudo bem, vou me aproximar d-dele de novo, tá bom?
— Sim, seja rápida, não temos muito tempo.
Uma onda de alívio percorreu as pernas moles, renovando um pouco da energia que foi sugada com a intimidação, mesmo assim, estava longe de se considerar a salvo. A situação do animal a frente não era boa e ainda que não tivesse a coragem de olhar para trás, sabia que a voz rouca não pertencia a um humano. Se o antídoto não funcionasse, ou se a besta pensasse que o líquido não era o remédio verdadeiro, sua vida chegaria ao fim antes mesmo que pudesse provar o contrário.
De qualquer forma, não havia muito mais a fazer, agora que chegou a esse ponto precisava ir até o fim. Ajoelhada sobre as tábuas barulhentas, derramou todo o conteúdo do frasco sobre a pequena ferida enquanto rezava aos céus pela cura do animal. Ílios observava apreensivo, mas para o bem ou para o mau, Dásos não esboçou nenhuma reação. “Se esse não for antídoto, pelo menos outra forma de veneno não deve ser”, o lobo pensou.
A mulher tremeu quando a fera se aproximou. A respiração quente exalava a centímetros do seu pescoço, contaminando o ar com um cheiro doce de sangue. Precisava pensar em alguma coisa, qualquer desculpa que lhe desse mais tempo até que o antídoto começasse a fazer efeito ou não teria uma nova chance.
— E-eu juro que esse é m-mesmo o remédio… Se… você me der mais algum tempo… tenho certeza que… que ele vai acordar… e… Por favor… não me mate…
As súplicas escorreram pela face junto com as lágrimas, mas não foram o suficiente para impedir que o lobo a arrastasse pela gola da camisa. Ela tentou se agarrar aos tacos desgastados da ponte enquanto se debatia, mas os esforços de se libertar só arranharam as mãos e as pernas, morreria em alguma toca escura assim como nas histórias que ouvia enquanto era criança.
Talvez fosse a hora de preparar o espírito e pedir perdão aos céus por toda a sorte de pecados que cometeu durante a vida. Não que fosse um exemplo de ser humano, mas ela também não se achava uma pessoa digna de ter uma morte tão horrível assim, talvez, alguma bondade oculta em seu passado a concedesse ao menos um fim rápido.
Os pensamentos tumultuados inibiram a percepção e a mulher só se deu conta que o lobo havia soltado sua roupa quando ouviu o gigantesco animal que estava parado logo à frente.
— Se apresse e arrume as bandagens. Me diga o que precisa para estancar o ferimento do garoto e eu trarei até você.
— O… o que você…
Ela virou para o lado e um calafrio percorreu toda a espinha. A criança deitada no chão não tinha cor e as ataduras mal feitas estavam encharcadas de sangue. Não precisava perguntar para saber o que causou os ferimentos do ombro mas era difícil entender o porquê do lobo querer salvar o menino. Entretanto, se isso lhe garantisse mais tempo, não via problema algum em ajudar.
— Moira. Você pode me chamar assim. Traga novos panos e de preferência limpos. Também vou precisar de água e, pelos deuses, adoraria ter linhas e agulha, mas acredito que não vai achar esse tipo de coisa nessa confusão. Teremos de nos virar com alguns ovos, mel e diluente para tinta.
— Diluente? — o lobo repetiu perplexo.
— Isso! Uma espécie de resina, você deve encontrar na casa azulada, mais próxima a ponte. São vidrinhos pequenos, com um líquido meio transparente e mal cheiroso. Ovos e mel também não serão difíceis de achar, bom… ovos inteiros talvez…
— Certo! — Ílios respondeu antes de correr para fora.
As patas pesadas fizeram o chão tremer e o som abafado reverberou pelos telhados que ainda estavam de pé. A tristeza e o desespero tinham nublado os grandes olhos verdes, mesmo assim, permaneciam inconfundíveis, esse era o homem com quem havia conversado antes. Sendo assim, essa criança talvez fosse uma dessas feras e isso explicaria o porquê do lobo querer salvá-la, mas não o motivo dela estar nesse estado.
— O que aconteceu com você? — Moira perguntou enquanto desamarrava os panos molhados — Foi ele quem fez isso?
Fengari gemeu quando ela afastou as mangas de sua blusa, o tecido grosso estava emaranhado entre a pele machucada e o sangue coagulado, formando uma espécie de crosta que impediu o líquido vital de se esvair totalmente. As duas lacerações maiores não pareciam ter atingido nenhuma artéria e o sangramento mais vívido estava concentrado sobre o ombro e braço, apesar de parte do pescoço e tórax estarem machucados.
Mesmo que oferecesse os primeiros socorros, não tinha o material necessário para garantir o mínimo de chances ao garoto. Um ferimento grave assim precisaria ser limpo, suturado e desinfectado corretamente ou ele teria sorte se morresse antes das infecções tomarem conta do corpo.
— Se ele fosse levado até o castelos… talvez… — Moira balançou a cabeça afastando os pensamentos. — Não… eu não vou voltar para lá e também não tenho nada haver com isso.
— Castelo? — a voz grave do lobo ecoou pelo cômodo.
— A-a… não é nada… estava apenas pensando alto… — engoliu seco.
— Pegue, trouxe o que pediu. Qual a situação do garoto?
Ela recolheu a trouxa de pano que embrulhava os demais itens e se apressou em preparar o emplasto. Não queria dar falsas esperanças, mas também não podia apenas dizer que as chances do pequeno sobreviver estavam próximas a zero.
— Preciso de água para lavar o machucado — falou sem olhar para o animal.
— Estou indo buscar… — Ílios sussurrou — Por favor… não mora…
As palavras carregadas de sentimentos apertaram o coração e algumas lembranças dolorosas dançaram em frente aos olhos da mulher.
— Maldição… Eu sou mesmo uma idiota sentimental — suspirou — Não ouse morrer agora moleque, você e aquelas bestas não fazem ideia do quanto vão ficar me devendo.
O lobo passou pelo limiar carregando uma jarra de barro. Mesmo trincada, ainda comportava o líquido sem vazar e serviu ao seu propósito durante o tempo em que Moira cuidou dos ferimentos de Fengari.
— Eu fiz o meu melhor, mas não vai ser o suficiente. Precisamos levá-lo até o castelo de Netuno para suturar e desinfectar isso aqui.
Moira terminou de amarrar as bandagens e secar o suor que descia sobre a testa do garoto. Tinha ficado claro em sua voz o quanto essa proposta a desagradava, mas também estava expressa a urgência da situação. Entretanto, Dásos ainda estava dormindo e eles não podiam contar com a mesma compreensão de todos os outros habitantes do povoado. Deixá-lo sozinho cercado de inimigos em potencial não era uma opção.
— Quanto tempo ele consegue esperar? — Ílios acariciou o rosto de Fengari com a ponta do focinho.
— Bem… eu não faço ideia… mas nesse tipo de situação cada segundo conta. Eu sei que você está preocupado com o outro lobo… mas… não há mais nada que possamos fazer por ele a não ser esperar… já o garoto…
Ela secou novamente o suor que minava na testa do pequeno, o sangramento havia parado mas seu rosto estava muito pálido e as sobrancelhas franzidas indicavam o sofrimento. Ílios apertou o maxilar pesando as consequências de todas as opções, o risco era alto em todas elas mas não podia apenas sentar e esperar que um milagre acontecesse.
— Eu tenho uma ideia… — Moira falou séria — Você confia em mim?
O lobo estreitou os olhos, tentando escanear as intenções da mulher:
— Não, mas estou em dívida com você. Diga o que tem em mente.
— Isso foi realmente cruel. De qualquer forma, é bom que saiba que me deve, não pretendo deixar passar. Tem uma mulher no castelo chamada Nice, ela poderia ajudar, mas tem um problema…
— Estou ouvindo.
— Primeiro, Netuno não vai abrir mão dela tão facilmente, de todas as esposas daquele maldito ela é com toda certeza a preferida.
— Eu posso ser bem convincente — o lobo rosnou.
— C-claro… mas não é só isso, o castelo fica escondido dentro da floresta e sem um guia não tem como encontrá-lo. Se eu for com você voltamos para o problema de deixar o lobo sozinho…
— Está resolvido. — Ílios se levantou e caminhou até a porta. — Essa “Nice”, você tem alguma coisa com o cheiro dela ou pode me dizer como reconhecê-la?
— Não… nada. Mas ela é uma mulher muito bonita, tem os cabelos e os olhos negros como a noite e a pele escura como a de Netuno. Ela sempre está perto do patio interno, onde ficam os aposentos do maldito… Ah… e ela usa um colar com uma grande pedra azul.
— Hm… — O lobo balançou a cabeça. — Cuide deles, por favor.
— Mas… como você vai chegar lá? Não ouviu a parte que eu disse que sem um guia…
Ele a interrompeu:
— Fique tranquila, um lobo nunca se perde em uma trilha marcada por outro lobo.
— O… o que você quer dizer?
— Mantenha os dois a salvo e eu voltarei para pagar minha dívida.
— Tudo bem… só… não demore, eu não gosto de esperar — ela sorriu — Ah! Quando você encontrar com ela, diga que a Moira sente saudades.
O grande animal acenou com a cabeça e partiu depois de dar uma última olhada no menino desacordado. Antes de atravessar a ponte, parou ao lado de Dásos e conferiu sua respiração, agora muito mais leve. Quem olhasse de longe, poderia achar que o lobo estava apenas dormindo tranquilo e isso era um bom sinal.
— Acorde logo, meu amigo, você precisa estar preparado para cumprir aquela velha promessa — Ílios sussurrou.
O silêncio guiou os passos do líder até a mata fechada, onde desapareceu envolto pela escuridão. Estava ciente que esse dia chegaria e pronto para o que estava por vir, mas antes de cumprir sua parte no acordo, iria resgatar Kardia e salvar Fengari, nem que para isso precisasse devorar cada ser vivo que atravessasse seu caminho.
Publicado por:
- GSK
-
Escrevendo, desenhando, editando e fazendo mais algumas artes por ai.
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