Pecado Primordial - Pecado Venial
Ano de 3022,
Quinta Guerra Mundial –
Cidade de Clíos
A brisa fria que passava pelos becos pútridos era calma, porém em nada agradável, trazendo consigo o mau cheiro e os ruídos da noite, e em meio a um céu sem lua as estrelas brilhavam como milhares de olhos no céu, lutando para se mostrarem em meio às nuvens de fumaça que se formavam, fruto da poluição humana, e ali estava ele sozinho. Olhava para o céu enquanto sussurrava uma prece a alguém, qualquer um que o ouvisse. E então, de repente, já não estava mais só.
Olhos dourados, fundidos em gelo, frios como a neve, o encaravam, a escuridão fugia dele como óleo fugia da água, pele reluzente e translúcida como diamante, envolta de faíscas que deixavam o ar ionizado e pesado, como se uma tempestade estivesse prestes a cair. A garganta apertou e secou, todos os pelos se eriçando e então, um segundo depois, ali estava ele a sua frente, uma figura alta e lívida, belo como se a própria beleza houvesse tomado forma, pálido como a neve que caíra no dia anterior, cobrindo a terra com um manto branco, poderoso como arma nem uma feita pelo homem poderia ser. Sua mera presença no quarto escuro fazia parecer como se jamais houvesse existido real beleza no mundo, o aquecia não como os raios do sol, que machucavam a pele, mas com uma cálida sensação de conforto, como se tudo fosse ficar bem. Uma grande mão acariciou-lhe os cabelos queimando-lhe o couro cabeludo.
E então, o garoto acordou.
Aquele sonho já se repetira muitas e muitas vezes nas longas noites de Noah, como um disco quebrado, uma canção sem fim, uma maldição sussurrada, que lhe fazia acordar trêmulo e suando frio, porém sem se lembrar do que havia sonhado. Aquela vez não fora diferente, também acordara suado e trêmulo, mas diferente das tantas outras vezes que acordara abruptamente, assustado com algo do qual nem conseguia se lembrar, ele se lembrava nitidamente do que acabara de sonhar, um sonho tão vívido que ainda queimava por trás de suas pálpebras pesadas pelo sono, assim como as íris douradas como ouro que lhe encarava inexpressivamente como se pudesse estar tanto decidindo se iria lhe matar, como decidindo o que escolheria para comer.
Noah ergueu-se com dificuldade, arquejando pela garganta apertada, o suor frio pregando sua blusa nas costas como fita adesiva. O garoto não sonhava com aquele acontecido há anos, quase já esquecera daquela sensação ao ver aqueles olhos. Íris douradas. Como se todo o ouro do mundo tivesse sido derretido e derramado dentro delas. Olhou para as próprias mãos que tremiam, pelas fissuras da cortina os raios solares entravam deixando cicatrizes na parede e no chão, fazendo o garoto se lembrar das suas próprias, então segundos depois ouviu-se passos no corredor e então batidas na porta; um segundo depois um garoto colocava a cabeça para dentro do cômodo.
Os cabelos castanhos desgrenhados de Marios, seu melhor amigo, caíam por sobre a testa, seus olhos brilhavam mais que o da maioria dos jovens daquela idade, e seus lábios finos se curvaram em um sorriso gaiato enfatizando sua beleza exótica, quando ele entrou no quarto largando a mochila em uma cadeira e se aproximou jogando-se na cama e sentando ao seu lado.
— Que milagre você já estar acordado. O que foi, teve um pesadelo? — os olhos de Marios estudaram o rosto do amigo, o sorriso morrendo dos lábios.
— Não. Não exatamente, quer dizer, não foi bem um sonho, é mais como… uma recordação?!
— E isso é mau? Foi algo da sua… antiga vida? De quando você morava no… orfanato? — Noah ouvia a tensão na voz do amigo, como se ele estivesse escolhendo as palavras com cuidado. Não costumava falar sobre o passado, por isso nem mesmo Marios sabia os detalhes de sua antiga vida, tudo o que ele sabia era que o amigo já morara em um orfanato antes da família Schumacher lhe adotar, sabia que o amigo tinha ideia de que a vida naquele lugar não fora fácil, mas mesmo sobre as muitas cicatrizes que trazia em seu corpo, ele jamais perguntara sobre, e Noah era grato por aquilo.
— Sim! — sua voz saiu ríspida, então limpou a garganta desviando o olhar involuntariamente para seu braço esquerdo, onde uma cicatriz de queimadura, mais escura que a sua pele, jazia — Mas acho que não é bem uma lembrança… É mais como se fosse um sonho, eu não sei. Não consigo explicar o que é isso, talvez não passe de uma fantasia pueril criada pela cabeça atormentada de uma criança em desespero. — foi a vez do outro desviar o olhar e limpar a garganta.
— U-um sonho? Tipo, você sonhou com um sonho?
— Não…! quer dizer… sim…! Digo, não sei! Só, esqueça que eu falei alguma coisa. — se ergueu indo em direção ao banheiro — Afinal, cade o Dinger? Ele não vinha com você?
— Sim, mas ficou com raiva porque eu não fui pra casa com ele ontem, então como birra, não veio hoje comigo. — a voz saiu levemente aguda e a expressão no rosto do garoto parecia irritada. — Ele ainda age como uma criança.
— Sei… — resolveu não perguntar mais, aqueles dois andavam agindo estranho.
Já no banheiro o garoto encarou o reflexo no espelho e não pôde evitar olhar para a cicatriz que brilhava levemente com a pele delicada esticada demais sobre os músculos. Uma queimadura que surgira em seu braço, próxima ao ombro. Marcas de dedos grandes demais para ser de um humano normal. Noah no início tinha certeza do que vira, mas com o passar do tempo, e com a ausência de uma confirmação, não sabia mais dizer se o que vira fora de fato real ou apenas um delírio de sua cabeça causado pela fome. Ou mesmo se havia se passado em sonhos.
Sequer lembrava dos detalhes, o que só confirmava suas suspeitas de que era tudo fonte de sua imaginação, porém o sonho daquela manhã viera nítido como um tapa, como água limpando a poeira, tornando claro novamente detalhes que já não tinha mais, ao ponto de fazer sua antiga cicatriz, a qual já se convencera de que adquirira no antigo trabalho, tornar a doer. O garoto fechou os olhos tentando clarear a mente, mas o que piscou por trás de suas pálpebras foram íris douradas, queimando como uma foto sendo gravada no filme, nítidas como se vistas naquele momento, belas, ainda que frias, mansas, ainda que duras como um diamante, totalmente inflexíveis, e com certeza nada tolerantes.
O pensamento daqueles olhos o encarando fez os cabelos do garoto se erguerem do couro cabeludo. A voz grave e sussurrante do desconhecido ecoando em sua cabeça como um coro de muitas vozes insistentes: “Farei tudo o que eu puder para lhe ajudar… Eu prometo!” O coração do garoto pulsava em sua garganta. Mas parando para pensar, assim como o homem o prometera, aconteceu. Sua vida em apenas um semana mudara tão drasticamente, que ele quase não conseguira acompanhar.
De uma hora para a outra, Noah se via sendo adotado por uma das família da elite do Novo Mundo, seus pais o tratavam como a uma pedra preciosa e rara, tudo o que ele desejava, algumas horas depois, estava em suas mãos. A fome nunca mais fora uma realidade em sua vida e agora ele quase não se lembrava mais de como era ter o estômago roncando. Fora matriculado no melhor colégio, para ter a melhor educação. Na nova escola, fizera bons amigos e a amizade fora cultivada e blindada, e o acompanharia até a faculdade, sendo estes Marios Kannenberg e Dinger Bittencourt; era tudo perfeito em sua vida, exatamente do jeito que sonhara quando criança, deitado em sua cama, em um quarto escuro de um orfanato, nos becos da periferia da grande cidade de Clíos.
Mas mesmo sendo membro da elite, Noah jamais poderia apagar as cicatrizes presas em seu corpo, jamais poderia esquecer os maus tratos ou impedir seu subconsciente de repetir seus medos daqueles dias em sonhos horrendos, todas as noites, lhe obrigando a reviver cada um dos abusos sofridos, não por um, mas por todos naquele maldito lugar. Aquelas coisas faziam parte de quem era, e eram tão reais quanto o fato de não poder jamais esquecer a promessa sussurrada e os olhos dourados do promitente. Aquilo era tudo o que sua mente conseguira guardar dele, mas era o suficiente para seu coração ansiar vê-lo novamente e sua alma tornar-se agitada em seu ser.
Noah queria vê-lo novamente.
O jovem não sabia os motivos pelos quais sentia-se tão estranhamente ligado aquele homem de olhar atento e voz arrastada, e talvez simplesmente tivesse ligado o fato de sua vida ter mudado milagrosamente a afeição que desenvolvera por ele. Tudo do que tinha certeza era de que ele era alguém muito especial em seu coração. Simplesmente não conseguira se obrigar a esquecê-lo, e por um tempo até tentara dizer a si mesmo que tudo aquilo tinha sido fruto da sua imaginação, apenas uma forma desesperada de justificar as mudanças em sua vida, porém ainda lembrava-se nitidamente da sensação que tivera ao vê-lo parado em frente ao seu quarto, debaixo daquela piscina amarelada da luz de um poste público, mesmo que não lembrasse dele fisicamente, o que ele o fizera sentir jamais poderia ser apagado de seu corpo.
Aquela voz mansa e melódica deixara em seu corpo uma impressão única. Uma corrente de eletricidade tão unicamente pessoal se apossara dele que sempre que se lembrava, seus pelos se eriçavam, era tão inigualável à qualquer outra coisa que mesmo após anos, ainda poderia descrevê-la em detalhes, pois era o que parecia fazer seu sangue correr nas veias; sem falar na marca sobre suas costelas, algo que ele não tinha antes de seu encontro com aquele ser e que as vezes esquentava como se ácido corresse por ela.
Na época, Noah tinha apenas nove anos de idade, não passava de uma criança, órfã e pobre, não tinha voz nem mesmo no orfanato em que morava, por isso mantivera aquilo apenas para si. O garoto já sofria bullying o suficiente das outras crianças, não precisava dar-lhes mais motivos para implicarem com ele; já o chamavam de “estranho” e “anormal” por não gostar da maioria das coisas que os garotos de sua idade gostavam e por orar para seres sobrenaturais que, tecnicamente, não existiam.
Ele bem sabia que obviamente ninguém lhe acreditaria, por isso resolveu apenas manter o encontro em segredo; uma parte por motivos de segurança, mas outra, uma bem maior, por motivos egoístas, afinal não era tão bonzinho assim. No momento em que o homem confiara nele para lhe mostrar o que mostrara, Noah sentiu que ele o escolhera para ajudar, sentira-se extremamente especial pela primeira vez em sua vida; pela primeira vez alguém o percebia, alguém havia parado para dirigir-lhe a palavra ou gastava tempo o escutando sem lhe ridicularizar e maltratar, e aquilo entrou e se enraizou no coração da pequena criança que era.
Pela primeira vez, Noah sentiu-se importante ou diferenciado sem olhar para si mesmo como uma aberração, e então desejou algo egoistamente. O garoto desejou que aquele fosse o seu anjo, e disse a si mesmo que faria o que fosse preciso para tê-lo ao seu dispor. Para o desespero do garoto, porém, o anjo jamais tornara a voltar para o visitar.
***
Seis anos depois –
Cidade de Clíos
Os anos se passaram monótonos como sempre, a guerra avançava sem sinais de paz, e as mortes se aglomeravam nas mãos de pessoas corruptas, que se julgavam aptas a julgarem as outras. E assim também a pobreza nos becos das periferias. As luzes de Clíos brilhavam em toda a sua majestade, a beleza das paisagens, que encobria a podridão por baixo dos panos, resplandeciam como um caleidoscópio perfeito.
Já se passara seis longos anos desde que Noah tivera o seu encontro destinado com um certo Ser, tanto que, para o desespero do jovem, sua mente já começava a esquecer-se até mesmo da sensação que fora tê-lo por perto. E com o passar do tempo, e o amadurecimento, Noah sentia que aquele momento compartilhado ficava cada vez mais distante e inalcançável, quase inexistente.
Em seu ser, tudo havia passado rápido demais, e a sensação de que aquele acontecimento havia sido insuficiente só se agravava, porém, quando o jovem já começava a desacreditar que aquilo, de fato, acontecera e mesmo o que sonhara anos atrás já se apagara de sua memória, algo que mudaria sua vida novamente, como jamais antes, aconteceu.
O anjo retornou.
Assim como há seis anos, ele surgira de lugar nem um transcendendo o tempo e o espaço, sem se importar com as leis da física ou da realidade humana.
Enquanto Noah, já deitado esperando o sono chegar, encarava a janela aberta em busca de respostas — e mesmo sem admitir, nutrindo esperanças de vê-lo ali — algo piscou em seus olhos o cegando momentaneamente e então, um segundo depois, já não estava mais só. O ar tornou-se denso e pesado, o cheiro metálico de tempestade tornando tudo turvo. As sombras do quarto foram deturpadas se enchendo com uma luminosidade dourada, e uma brisa suave e quente passou pelo garoto, que suspirou sentindo-se tranquilo de repente.
Noah ergueu-se em um salto e sentou-se ereto encarando o recém chegado com grandes olhos azul-tiffany, sua pele se arrepiando e uma corrente de eletricidade lhe impedindo de baixar a guarda, o mantendo completamente atento e aceso, ligado como nunca. Sua mente se recusando a acreditar no que seus olhos viam. Porém tudo o que naquele momento não passava de memórias borradas de algo do qual o garoto não tinha certeza se acontecera, voltava a sua mente como tiros das armas dos homens, o fazendo engolir em seco o gosto amargo que se formou no final de sua garganta. Por algum motivo que Noah desconhecia, seus olhos embaçaram com lágrimas doloridas, que arderam como ácido ao escorrerem por suas bochechas rubras, marcando-as com fogo e uma pitada de ressentimento.
O anjo, por sua vez, não parecia em nada abalado ao vê-lo, na verdade, sua expressão continuava inabalável como o garoto se lembrava. Olhos duros e inflexíveis, embora amigáveis, infinitamente dourados e intensos como se dentro houvesse todo o universo e o brilho de mil galáxias. Noah, após ver aquelas íris fundidas em ouro novamente, teve a certeza de que não fora sua imaginação, que não era simples loucura de sua cabeça e que aquela não era a segunda vez que o via.
Parecia quase natural aquele olhar lhe encarando, lhe acompanhando… lhe observando. Sabia também que o anjo via muito além do que deixava transparecer, que sondava além da mente ou coração, mas que podia ver até mesmo sua alma e o que esta desejara por todos aqueles anos de silêncio. Aquele fato fez o garoto sentir-se invadido, exposto. Era algo que ele não queria que o anjo soubesse, pois aquilo podia afastá-lo.
Lentamente Noah ergueu-se. Ao tocar o chão, seus pés receberam uma corrente de eletricidade palpável e real e a marca abaixo de seu peito ardeu como se houvessem acabado de enfiar uma lâmina envenenada ali. Com vertigem ele cambaleou e precisou se segurar na cama para se equilibrar, tornando a erguer a cabeça rapidamente para se certificar de que o outro não havia desaparecido como antes, lhe abonando novamente.
Aparentemente, o anjo não sabia que o tempo era algo importante para os humanos, já que vivia além do tempo e espaço, pois sua realidade transcendia esses dois fatores, era sobrenatural, e por tanto, não existia de fato o tempo como se conhecia, em sua realidade. Ele, portanto, parecia não saber que tanto tempo já havia se passado, pois agia como se não houvessem se passado mais do que alguns minutos, quando na verdade, haviam sido seis longos anos a se passar, dolorosamente lentos.
O anjo, porém, não parecia ter mudado em nada. Continuava belo como nada que Noah pudesse comparar, de fato, como um ser sobrenatural, pois tal beleza jamais seria capaz de existir naquele mundo. Mesmo na penumbra, escorado na parede, ao lado da janela, com o corpo relaxado, o garoto podia notar que ele permanecia com a guarda alta, sem dar brechas para ser pego de surpresa.
Sua cabeça quase chegava a tocar o teto, três metros acima, e seu corpo, mesmo coberto quase completamente com o tecido delicado e leve de sua roupa, era esbelto e forte como uma máquina de guerra, Noah notou. O quão frágil era na frente daquele Ser era quase ridículo, sabia bem que se o irritasse, ele podia muito bem matá-lo apenas com uma mão em seu pescoço, se não, meramente com um olhar ou uma ordem. Aquele pensamento fez o garoto se arrepiar e sua boca secar.
Os cabelos brancos e sedosos dele pareciam emitir sua própria luminosidade no quarto escuro e esta refletia na parede lustrosa de mármore próxima, acendendo-a. Os estreitos e insondáveis olhos dourados contrastavam com a pele excessivamente pálida, tornando a aura misteriosa ao redor dele quase impossível de se ignorar. Era quase palpável a intensidade daqueles olhos e o infinito de mistério que se escondia por trás do ouro de suas pupilas e íris. Dessa vez, porém, não parecia tão ameaçador como da primeira, na verdade uma ternura inegável emanava de seus olhos, ele parecia quase sereno aos olhos de Noah, que não conseguia desviá-los dele. O garoto sentia a Verdadeira Paz ante a presença do anjo, mas também sentia… algo mais.
O anjo continuava graciosamente escorado na parede, próximo a janela, e o ar ao seu redor parecia completamente parado, como se ele o retardasse, como se não vivesse no tempo mortal e possuísse todo o Tempo do mundo, ou melhor, do universo — o que provavelmente era verdade, já que ele era um ser imortal. Teria toda a eternidade a seu dispor, talvez por esse motivo algo nele era tão diferente, tão calmo, tão tranquilo. Ousava dizer que, se pudesse descrever a paz e tranquilidade em um ser, este seria o anjo a sua frente.
Ele o olhava de cima com o ar imponente, ainda que terno, seus olhos, que nas lembranças do garoto eram ferozes, os olhos de um guerreiro, agora possuíam certa discrepância. Faiscavam de forma prepotente, ainda que branda, mas em nada confiáveis. Ele possuía uma inconfundível desconfiança ainda que por baixo desta, também houvesse uma curiosidade quase infantil. Noah percebeu, horrorizado, que, por sua mente se passara o terrível pensamento de que aquilo parecia quase sexy. Os olhos deste cravados aos seus, o impedindo de quebrar o contato visual.
Naquele momento, uma terrível pergunta se formou no fundo de sua mente: Se nada havia mudado, porque sentia que, ao mesmo tempo, tudo estava diferente? O que sentira seis anos atrás fora intenso como o que sentia naquele momento? Ali, parado o encarando cautelosamente alerta, Strauss já não parecia uma ameaça como antes, já não o assustava como antes e mesmo que ele soubesse que o anjo podia matá-lo com apenas uma ordem, o sentimento predominante em seu coração não era o medo. Mas ainda assim, o coração de Noah batia dolorosamente rápido se fazendo sentir na garganta e na ponta dos dedos, que tremiam.
Metade do rosto do anjo fora coberto pelas sombras que inundavam o quarto e ainda assim o garoto podia vê-lo bem, pois emitia uma fraca luz azulada, sentia sua pele esquentar ante a presença do ser sobrenatural e sabia que ele era verdadeiramente um anjo, pois de longe podia sentir de forma palpável e real seu poder faiscando perigosamente.
Sua presença estava mais forte que outrora se lembrava e ele quase podia sentir sua mente querendo colapsar ao tentar processar algo que não devia presenciar de forma tão nítida e visível; a realidade de dois mundos em um só. Engoliu em seco se recompondo e aproximou-se cauteloso, vendo a expressão inabalavelmente séria e inflexível do outro ao lhe encarar, e suas pernas quiseram vacilar.
— Olá, Noah. — sua voz soava como os ventos revoltos antes de uma tempestade, o anjo franziu o cenho — Você… está diferente.
— Sim, se você não notou, se passaram anos. Eu cresci! — a voz do garoto soou mais abalada do que desejara, o que o fez ruborizar — Já você, não mudou nada. Pelo menos, não mais do que o que eu me lembro, o que não é muito.
— Era para ser assim. Desde o início, você jamais devia ter me visto. — sua voz era arrastada e entonada, fazendo o garoto sentir a vibração no fundo da garganta.
— Uau! Então porque está aqui se se arrepende de ter me conhecido?! — sua voz se tornava cada vez mais irritada.
— Em momento algum eu disse que havia me arrependido… — pausa — Huh! Os humanos são sempre tão facilmente levados por suas emoções.
O anjo fez aquela observação mais para si mesmo do que qualquer outra coisa e então, sorriu, fazendo Noah esquecer-se momentaneamente sua irritação. Os cantos dos lábios de Strauss se curvaram levemente em um sorriso pequeno que não atingiu seus olhos e se foi tão rápido quanto surgira, mas não antes de Noah ver as covinhas em suas bochechas se aprofundarem e por seus olhos passar algo como um sutil e suave divertimento pessoal, tornando-os ainda mais belos e cintilantes.
Naquele momento Noah percebeu o que sua mente dizia para si mesma involuntariamente: Aquele anjo era inefavelmente lindo em sua sofisticada simplicidade. E talvez aquilo se devesse ao fato dele ser um verdadeiro anjo. Talvez todos os anjos fossem tão bonitos quanto, mas o garoto não saberia dizer, pois jamais vira outro que não fosse aquele a sua frente, e honestamente, para ele, apenas aquele já era o suficiente para provar a beleza de todos, fosse física ou não, sobrenatural ou natural, tudo o que sabia era que ele era indescritivelmente belo.
Noah de início não soubera o que fazer, mas após o sorriso do outro, parecia que todo o tempo esperado parecia ter, milagrosamente, desaparecido como se não houvessem sido mais que segundos irrelevantes, e então toda a espera parecia ter valido a pena. O garoto observou o ser desescorar-se da parede e sair das sombras com apenas dois longos passos; os olhos dourados nunca o deixando, segurando seu olhar como um ímã segura o ferro. Ele não quebrou o contato em nem um momento, sequer piscava, o que causou calafrios no jovem, que sentia suas defesas aos poucos sendo derrubadas, ou melhor, ultrapassadas, sem muito esforço.
— Você demorou! — falou por fim, com a voz rouca e baixa, quase embargada, cheia de ressentimento, e agradeceu por não ter achado mais nada para dizer, pois temia que se tivesse dito mais, choraria. O rosto do anjo já começava a embaçar entre as lágrimas pendentes.
— Sinto muito, — seu tom soou grave, mas verdadeiro, sem maldade alguma, o que não devia ser algo impressionante para um anjo, mas era para um garoto que vivia cercado de mentiras desde que se lembrava. — Eu, por muitas vezes, senti vontade de voltar. Talvez necessidade é o certo a dizer, mas não possuía motivos para retornar aos mundos abaixo. — ele se aproximou até não ter mais de trinta centímetros entre os dois corpos. Noah podia sentir o calor que emanava dele, seus olhos estavam fixos em seu peito, que subia e descia lentamente. Podia sentir o peso de seus olhar sobre si, lhe olhando de cima; sua voz estava baixa como um sussurro, mas ainda clara e audível, como se fosse diretamente à sua mente. Sua respiração chocando-se ao topo de sua cabeça — Vir a Eretz Inun’k não é algo comum para nós, os Melahins, nos presentes dias. Precisei me contentar em apenas observar de longe a tua vida e crescimento.
— Me observar…? — Noah falou antes de conseguir se parar, sentiu as bochechas esquentarem por algum motivo e ergueu os olhos fixando suas íris nas dele e se perdendo no dourado delas, que por um momento lhe tiraram o fôlego — Você? Me observou? Quando?
— Você duvida da palavra de um Melahim lê ‘Elyon*? — seus olhos eram tão sérios que só deixavam o garoto mais e mais nervoso e sua voz, ao falar outro idioma, parecera retumbar por cada osso de seu corpo, que por algum motivo, entendera perfeitamente o significado do que ele falara: “Anjo do Altíssimo” — Acha que deixaria você para trás após te fazer uma promessa? Uma promessa para um Melahim, principalmente um Saraf, é um ato sagrado, eu jamais a quebraria.
— Mas, por quê? Porque eu nunca te vi? Porque você nunca…?! Você podia ter me dado ao menos um sinal de que existia, que não tinha sido só… um sonho ou a fantasia de uma criança.
— Já disse, não podia, Noah. Mas eu estava contigo. Não te lembras de nada?
E de repente a mente do jovem fez um clic e várias imagens rápidas se passaram por sua cabeça. O dia após o tal “sonho”, o casal de elite que fora até aquele orfanato no subúrbio de Clíos, dentre tantos, e em meio a tantas crianças mais belas, escolhera a ele. Aos amigos que fizera, ao professor que o ajudara, ao senhor da loja de conveniência, ao estranho na rua, e a sensação de olhos lhe vigiando vinte e quatro horas por dia. Noah encarou o anjo incrédulo, parando para pensar, todos os momentos de contrato que o garoto tivera com aqueles estranhos, estes possuíam os mesmos olhos desfocados, ainda que lindos. Olhos cor de mel, belos e cintilantes que nada combinavam com seres humanos normais.
— Era você! Sempre foi você, não foi?! — o garoto sentia-se traído, mas o anjo apenas confirmou com um simples aceno de cabeça. — Você esteve me protegendo esse tempo todo? Como um anjo da guarda? Se estava tão perto, porque não me deixou vê-lo?
— Eu apenas olhei por você, Noah, aqueles não eram eu, apenas uma parte muito pequena da minha consciência. Não é como se existissem ainda os anjos da guarda. Os arcanjos são guerreiros agora, como sempre devia ter sido. Os humanos não merecem a proteção dos céus. Estude o caminho que Jesus percorreu e veja que os humanos não merecem paz, não merecem proteção… Não merecem nosso tempo, e o meu tão pouco. Sou um Saraf, um escolhido.— Noah não sabia o que Saraf queria dizer ou o quão importante aquilo era no mundo dos anjos, mas de repente se sentia estranhamente triste. Se aquilo era verdade, então não era assim tão especial como pensara ser. Tudo não passara de um ridículo acaso e o anjo só estava ali pela promessa que não lhe era permitido quebrar.
— Então, porque está aqui?
— Porque a oportunidade me surgiu. — o anjo respondeu imediatamente, franzindo as sobrancelhas confuso, como se a resposta fosse ridiculamente óbvia.
— Só por isso…!? Porque você teve uma oportunidade? Então não é necessariamente por mim, e sim porque voltar a terra parecia interessante, não?! Já que você disse que não tinha muitas oportunidades de vir até aqui.
— Sim! Devo confessar que me senti estranhamente confrontado com o fato de ter gostado, erroneamente, da superfície terrena. Por quê? — Strauss encarou o humano a frente com olhos cintilantes e inexpressivos como sempre, sem um pingo de flexibilidade; sérios e verdadeiros e Noah mais a vez se impressionou, até mesmo sua forma de falar era diferente, como as pessoas dos antigos séculos, da Terra passada, antes dos tempos terem mudado.
— Nada, esqueça o que eu disse. — o anjo franziu as belas sobrancelhas criando pequenas rugas entre elas. Noah ficara encantado e até desacreditado em quão belo ele era; até mesmo os fios de suas sobrancelhas eram brancos como papel.
— Porque você está irritado?
— Eu não estou!
— Sim, está! — o mais perturbador era que o anjo falava sério em todo o tempo, não havia nem uma pitada de ironia em sua voz ou expressão, o que era ainda mais agoniante.
— Não, não estou!
— Eu posso sentir o cheiro da sua irritação, sabia?!
O anjo falou aproximando-se lentamente do garoto, este desviou os olhos e não viu a mão do outro até esta pairar a centímetros de seu rosto. A fraca luz, azulada como Berilo, refletiu em sua pele e a proximidade queimou a pele de Noah fazendo seu corpo estremecer. O anjo se inclinou levemente para a frente com uma expressão genuína em seus olhos acratos, as sobrancelhas unidas mais uma vez, sua cabeça inclinando-se para um lado, seus olhos estudando-o como se fosse um código.
— Porque está mentindo para mim? — sua voz não soava acusadora, era ainda pior, soava magoada.
— N-não é nada, eu já disse.
— Noah…
— Afinal, qual o seu nome? Você nunca me disse. Na verdade, você se foi sem me deixar nada… Nem minhas lembranças.
— Meu nome é Strauss, Noah. — o nome pronunciado pareceu se amplificar e evitar pernas paredes, como se até o ar estivesse o reverenciando — E não fui eu quem tirou suas lembranças de você, é apenas que seu cérebro é mortal, não pode processar algo sobrenatural tão facilmente. É apenas natural que você se esqueça de mim. — naquele momento Noah percebeu algo na voz do ser que fez seu coração acelerar, e isto fora melancolia ao falar sobre o esquecimento.
— Então, se no fim eu me esqueceria de qualquer forma, porque está aqui? Você não podia simplesmente me deixar morrer com a dúvida? Não seria mais fácil?
— Então você quer um motivo melhor para eu estar aqui? Ou quer simplesmente esquecer tudo isso e voltar ao que era antes?! — o garoto sentiu o rosto esquentar novamente; afinal porque aquele ser mexia tanto com ele?
— Não é isso! — falou, sua voz subindo uma oitava — É só que… pela forma como você colocou, pareceu apenas que era uma obrigação, só porque você me prometeu, e eu não quero que se sinta preso a… um mortal. Ou como você gosta de dizer: um ser humano. — ao pronunciar as palavras “mortal” e “ser humano”, Noah fez soar como palavras torpes, ou melhor, uma abominação, assim como o anjo fazia sempre que se referia aos humanos, como se fossem uma praga.
— O que quer que eu diga? Não gosta de como me refiro a sua raça? — a proximidade começava a se tornar terrivelmente incômoda — O fato de eu ser um anjo, não significa nada para você? — silêncio — Noah, é verdade que voltei a Eretz Inun’k pois gostei desta mais do que posso admitir, e isso é uma vontade questionável à um anjo. Mas a minha vontade não está na Terra, no que vi, nos humanos ou em seus muitos deleites. Está única e somente em um humano em específico, e isto é refutável à um ser celeste em minha posição. Minha vontade de voltar, desde o princípio, foi por você está aqui. Se estivesses abaixo, no Sheol*, lá seria onde minha vontade estaria. E se fosse no Hades*, então lá estaria minha vontade. E ainda que tu estivesse além, entre os mundos, no Caos*, o Abismo Primordial, e de algum modo eu te houvesse conhecido lá, então lá eu estaria agora. Não desvirtue as minhas palavras. — com tudo aquilo jogado em sua cara como tiros, Noah não sabia sequer como encará-lo, então não era surpresa que também não soubesse o que dizer.
— E-eu não estou desacreditando de você…!
— Então — o anjo se inclinou para frente fazendo o garoto encostar-se à parede, colocou ambas as mãos na parede o aprisionando entre seu corpo e inspirou profundamente fazendo o ar ficar rarefeito por um momento, ao ponto de Noah sentir o cheiro metálico de eletricidade de seus cabelos. Ele cheirou a região entre sua orelha esquerda e pescoço lhe fazendo prender a respiração — Diga-me, porque ainda sinto raiva vindo de ti?
Noah quisera negar desde o princípio o que Strauss causava em seu ser, consciente e subconscientemente, mas chegara ao seu limite. Se segurara por anos, pensando estar delirando, tê-lo ali a sua frente, ao alcance das mãos, era demais, já não podia mais. Seu coração batia tão rápido que ele começava a senti-lo na ponta dos dedos. A proximidade do outro fazia sua respiração descompassar e sua cabeça estava ficando em branco, mas o anjo se afastou rápido demais, aparentemente, indiferente ao efeito que tinha sobre o humano a sua frente.
— O fato de você poder sentir minha irritação me deixa irritado. — Strauss deu um meio sorriso e ergueu as sobrancelhas aparentemente divertindo-se com a situação, mesmo que conseguisse se controlar bem.
— O que quer de mim como desculpa? — o encarou sério.
— Você me daria o que eu pedisse?
— Se estiver ao meu alcance, sim. — após pensar um pouco, Noah desistiu, o que queria não poderia ser seu jamais, e não podia dizer que o que queria era ele.
— Nada… pra dizer a verdade, não quero nada. — o anjo o encarou por um momento.
— Mas se eu lhe desse algo mesmo assim, como um presente, você guardaria segredo?
— C-claro! — falou o garoto com a garganta seca de ansiedade — Afinal, já pensam que eu sou estranho mesmo, ninguém acreditaria em mim mesmo que eu contasse.
— Talvez… — o anjo falou pensativo, parecia pensar se realmente devia fazer o que estava prestes a fazer, mas após uma pausa que pareceu uma eternidade ao garoto, finalmente lhe deu as costas e tornou a se aproximar da janela — Hoje é um dia especial, não é mesmo, Noah?
— Espera, como você…?
Noah não terminou sua pergunta, pois estava muito ocupado engasgando com a própria saliva ao ver o anjo tirar o sobretudo que repousava sobre os ombros e começar a desfazer os botões da blusa, despindo a parte de cima do corpo, deixando a pele pálida do abdômen a mostra. E naquele momento Noah entendeu uma coisa: ele era a própria personificação da perfeição, mesmo que procurasse, o garoto sabia que não conseguiria achar um único defeito para apontar.
Ele encarava boquiaberto e sem fala enquanto Strauss deixava cair suavemente sua roupa, que ao sair de seu corpo, parecia feita de fumaça, no chão. Noah observou enquanto o anjo fechava os olhos devagar, as sobrancelhas levemente unidas formando rugas entre si, e então com um sussurro que o fez mover os lábios, o ar se tornou ionizado e denso. O sussurro tornou-se um murmurar baixo e rápido, como uma prece entoada em outra língua. O garoto sentiu seu corpo pesado e então uma luz cegante o consumiu lhe obrigando a fechar os olhos.
Ao tornar a abri-los, Noah engoliu em seco a pouca saliva que lhe restava. Não sabia aonde estava, tudo ao seu redor era difuso e muito claro para ver, mesmo ele não passava de fumaça se esvaindo. Ergueu os olhos assustado e novamente perdeu o fôlego ao ver o anjo a sua frente. Os músculos de Strass se contraíam e suas veias nos bíceps e pescoço eram saltadas, a luz azulada que emanada de sua pele era quente como o sol de verão e seu semblante em nada se parecia com o rosto humano de momentos atrás. Aos poucos seu corpo também foi voltando ao normal e se solidificando.
Noah, com a respiração congelada nos pulmões, assistiu em uma espécie de transe horrível e aterradoramente belo, a pele das omoplatas ser ferida por pontas metálicas como se feitas de aço, afiadas como adagas, ou melhor, espadas, pois só cresciam. Mas por algum motivo, o garoto sabia que eram ossos, os mais fortes que existiam. E então, estes se agigantaram formado uma horrenda e ainda lindíssima carcaça de asas, e dos ossos, pequenas sombras cresceram às costas do anjo.
Em questão de segundos — segundos que pareceram horas — haviam duas enormes asas de penas imaculadamente brancas saindo das costas de Strauss. Elas se mantinham erguidas, mas eram tão grandes que as pontas roçavam o chão; os ossos metálicos entres elas lançavam uma estranha luminosidade, como se elas faiscassem. As penas eram quase tão brancas quanto a pele de Strauss e se misturavam a seus cabelos, que estavam mais longos, e a seus olhos, que não mais eram dourados e sim acessos como dois relâmpagos, ou dois sóis, três vezes mais brilhantes que o sol da Terra.
Mesmo seu rosto era difícil de encarar, e o garoto não saberia dizer se pela beleza transcendente ou simplesmente porque era forte demais a luminosidade que emanava de seu rosto. A plumagem de suas asas era fofa e longa formando camadas, enquanto fios dourados as ligavam delicadamente. Noah percebeu que as penas tinham uma espécie de brilho furta-cor tornando-as vez por outra douradas como se fosse apenas uma impressão das verdadeiras, e tremeluziam como uma visão mal projetada.
O garoto permanecia paralisado, completamente atônito olhando aquela cena quando o anjo tornou a direcionar aqueles olhos acessos como raios em sua direção e prendê-lo ao seu contato, o encarando como se pudesse ver seu passado, presente e futuro, como se nada pudesse passar por aqueles lampejos que faiscavam poder.
— Você está bem? — ele falou, mas aquela voz definitivamente não era uma voz humana, era como o soprar do vendo furioso de um furacão, arrancando árvores do chão, como se a água do mar formasse palavras ao quebrar de uma onda, era um som baixo e sussurrado, arrastado e imponente, que lhe causava tremores involuntários, fazendo os cabelos de sua nuca se eriçarem. Se um furacão pudesse falar, aquela seria sua voz.
— S-sim…
— Estás à passagem dos anos terrenos, desde o teu nascimento, não está?! Isto é algo importante para os humanos, correto?! Embora eu desconheça os motivos pelos quais a aproximação da morte física é comemorada com tamanho afinco por vós… — Noah franziu o cenho, já não sabia se ele estava tentando lhe parabenizar ou lhe deixar para baixo, e o pior de tudo era que, aparentemente, ele não fazia com maldade alguma, e sim de forma sincera, ao ponto da questão sobre o tempo e a morte humana ser deprimente, de repente, embora o garoto nunca houvesse pensado daquela forma antes — E então, o que achastes? É um presente digno o suficiente para tal data, ou deseja algo mais?
Noah ergueu uma sobrancelha ante a pergunta direta do anjo e se assustou quando ele fez menção de se aproximar. A presença dele por si só era forte o suficiente, mas com aquelas novas asas inclusas em seu visual, completamente a mostra, pairando sobre ambos, se tornava tão mais esmagadora que quase o obrigou a encolheu-se com a proximidade do ser.
— Eu te assusto, assim? — perguntou ao perceber que ele se encolhera pra longe — Estava errado em pensar que tu gostaria de vê-las…?
— N-não! Não é isso, elas são… Uau! Quer dizer… nem sei o que dizer, eu só… — Noah não estava exagerando, não conseguia e jamais acharia palavras para expressas o que estava a sua frente, pois era demais para sua compreensão humana, e pela primeira vez entendeu o porquê do anjo sempre se referir aos humanos como inferiores, seres ridículos na frente dos seres celestes, pois ante a mera sombra do que era a verdadeira forma do anjo, sua mente se recusava a processar — É lindo! — sentiu toda a sinceridade que havia reservado em sua vida se esvaírem ao dizer aquelas simples palavras, que saíram tão suaves e pesadas quando o Eu Te Amo naqueles dias hostis. Por algum motivo, o garoto sentia que fora a frase mais verdadeira que já ousara dizer na vida, e sentiu a força e o peso delas nas lágrimas mornas que escorreram.
— O que está fazendo? — o anjo encarava suas lágrimas com o cenho franzido — Então, de fato, não gostaste do presente que te ofereço…!?
— Não é isso, já disse! Só… é tão incrível, belo e surreal que não sei como agir ou o quê fazer. Não é sempre que os humanos ganham algo assim de presente, sabe? Como quer que eu reaja? Sinto que não mereço, que estou recebendo algo do qual sou indigno.
— De fato os humanos são indignos, por isso os anjos da guarda não mais exercem tal função, e os Virtudes deixaram de descer a terra para atender aos pedidos… — Noah se sentiu murchar como uma rosa que tem as pétalas arrancadas — Mas com você… eu não sei, Noah. Você é diferente, desperta instintos em mim que os anjos não deviam mais sentir por um humano. Eu sinto algo que quase beira ao… carinho. Afinidade. Por um humano, de tudo. Vive entende?
— Eu sinto muito, acabei te trazendo problemas ao te pedir algo de forma egoísta, não foi?
— Talvez, mas já é passado. E sabe o que mais me choca? — sua expressão suavizando tanto que Noah conseguiu vê-lo com clareza pela primeira vez desde que assumira aquela forma celeste ou o que quer que aquilo fosse — Eu não me sinto irado contigo. Principalmente quando adoto meu corpo humano, me sinto estranho, coisas que não sei explicar acontecem comigo quando estou na tua companhia.
— Você se sente estranho?! — Noah falou sarcástico — Olhe o que você faz com o meu corpo.
Noah aproximou-se lentamente, deixando claro que iria se aproximar dele, então o calor diminuiu e Strauss aos poucos foi mudando novamente, diminuindo de estatura para ficar mais humano, a luz praticamente se extinguiu e seu rosto tornou-se apenas perfeitamente belo como antes, e não, imensuravelmente belo e luminoso ao ponto de ser incompreensível e improcessável.
Ao chegar a sua frente, Noah ainda precisou olhar para cima para encará-lo; com certo receio ergueu a mão trêmula e segurou a dele. Para um corpo não humano, Strauss era muito quente, passava muito calor corporal e sua pele era suave como a de um recém-nascido. Ele fez menção de se soltar em um primeiro momento, mas então, lentamente foi relaxando e permitiu que o garoto erguesse sua mão e a levasse ao próprio peito. Ali, repousada, o anjo sentiu um tremor passar por seu corpo.
Dentro da caixa torácica, bombeando o sangue a toda velocidade, o coração de Noah batia com um som estrondoso, belo e transbordando vitalidade, emoções e sentimentos mesclados. O primeiro que atingiu o anjo foi a culpa, o segundo satisfação, felicidade… luxúria…? Ele não saberia dizer ao certo, mas o jovem estava uma bagunça por sua causa. Sem saber como ou porque, e totalmente surpreso consigo mesmo, o anjo se viu puxando o humano para junto de si, unindo dois corpo — humano e angelical — em um, o que jamais, nem em toda uma eternidade, poderia tornar a acontecer. Porém era mais forte que ele mesmo, e antes que pudesse se conter, seus braços rodearam o garoto, que parecia ainda menor e mais frágil dentro de seu abraço. Suas asas protegeu a ambos, se fechando sobre os dois corpos em um casulo aconchegante. Os dedos de Noah se agarrando na pele desnuda de suas costas lhe fazendo sentir estranhos arrepios no corpo.
Strauss teria ficado ali pela eternidade que lhe restava à frente, mas sentiu seu corpo tensionar, os músculos de seu abdômen se contraíram fortemente e sua pele tornou a esquentar arrancando um arfar de Noah. O zumbido em sua cabeça se tornou quase insuportável, lhe obrigando soltar-se do humano e afastar-se segurando a cabeça. Pingos dourados escorrendo, indo de encontro ao chão; horrorizado, o anjo percebeu estar… sangrando. Apenas por estar sendo contatado, provavelmente por outro anjo, talvez Mik’hail, seu corpo estava se desfazendo como o de um humano real, o que não devia acontecer na jamais, pois já fizera aquele contato sobrenatural com o irmão milhares de vezes antes, porque de repente seu corpo rejeitava a chamada de seus irmãos? Porque, por um momento, sentira-se fraco? Por que, por um momento, Strauss sentiu-se sair de sua forma divina por completo, abandonando sua virtude original. Com dificuldade se concentrou ignorando a dor e se virou para o garoto que parecia horrivelmente assustado.
— V-você… está bem?
— Eu estou! Não se preocupe, eu sou um anjo, lembra?
— S-sim… Acho que sim.
— Eu preciso ir, Noah. Acho que começam a sentir minha falta.
— Eu… — o garoto não queria admitir, mas se sentia extremamente triste ao perceber que à hora da despedida infelizmente havia chegado — Eu vou te ver de novo, não vou?! — o anjo, assim como da última vez, hesitou. Não sabia o porquê, mas o medo ainda corria em suas veias, tangível e real. Agora, ao invés de sentir-se superior, temia aquele humano, pois entendia que ele podia puxá-lo à desgraça, e o mais perigoso, ele se deixaria cair.
— Eu sinto muito não poder ficar mais um pouco. Embora tenha toda a eternidade… — deixou o restante da frase pairar no silêncio que se prolongou por um meio segundo antes de prosseguir, parecera irônico, se é que anjos sabiam ironizar, e com isso, Noah percebeu, fugiu da pergunta e não o respondeu — Bom, adeus!
— Strauss, espere…
Sentia seu coração na garganta percebendo a gravidade do que estava para sugerir e a dor da despedida como a dor de uma perda irreparável, sabendo que uma vez que dissesse adeus, viveria na insuficiência e incerteza de vê-lo um dia novamente com vida, já que o anjo, apesar de parecer saber sobre a condição humana e o tempo, não conseguia identificar de fato este passar. Então faria aquilo como uma garantia, se não conseguisse vê-lo novamente, pelo menos teria conseguido algo.
— Na verdade, existe sim algo que eu quero de presente.
— É mesmo? — o anjo franziu o cenho parecendo curioso.
— Sim! E eu sei que disse antes que não queria nada e fiz você me mostrar suas asas, o que provavelmente é algo proibido, mas…
— Diga o que você quer, Noah. — cortou seu falatório.
O garoto sabia muito bem que estava correndo perigo ao fazer aquilo, sabia também que corria o risco de afastar o anjo para sempre, sabia que era um erro tão ou mais grave que tirar uma vida injustamente, mas não pôde evitar, precisava daquilo, seu corpo e coração ansiavam por aquele contato. Se aproximou de Strass que estava de frente para a janela olhando desconfiado para o horizonte, já completamente vestido de novo, nitidamente pronto para partir, o que lhe arrancou um soluço involuntário.
O garoto, trêmulo e choroso, se pôs a frente do alto homem, perfeito em sua beleza surreal, exótica e inacessível, mais uma vez se impressionando em como conseguira a atenção daquele ser e porquê. Este lhe olhava pacientemente de cima, como um adulto olha para uma lastimável criança, e seus olhos pareciam dançar como labaredas. Aquilo fez acender um fogo no peito de Noah o incitando. Irritação, mágoa e algo mais rodopiava por suas veias fazendo sua têmpora esquerda pulsar.
Com convicção, inclinou-se na direção do anjo, segurando descuidadamente em seus antebraços para se equilibrar, e antes que o outro pudesse reagir ou pensar em como aquilo era terrivelmente errado, um pecado punível com o exílio, o garoto selou seus lábios aos do anjo.
Honestamente, Noah pensou que seria incinerado imediatamente, ou pelo menos afastado violentamente, talvez que sua alma seria separada de seu corpo, ou que sofreria para sempre na vida após a morte, por ter beijado um anjo. Ideias realmente pavorosas se passaram pela cabeça do garoto, embora todas fossem sufocadas pela voz da consciência que dizia que, ainda assim, valera a pena.
Para a sua surpresa, porém, nada daquilo que pensara, aconteceu. Na verdade, seus lábios, ainda unidos firmemente aos do anjo, ficaram apenas dormentes pela proximidade dos corpos. A maciez da boca de Strauss era tão agradável como a sua presença, e lhe trouxe uma imensa sensação de leveza e satisfação. A simplicidade do ato tinha gosto de quero mais, era como o prazer de ver a aurora no horizonte, ou o despedir do sol, até mesmo saber que não estava sozinho em um infinito universo, que a vida não era resumida ao vazio em que vivera por anos.
Mesmo sem querer, Noah, por puro instinto, fechou os olhos quando beijou o anjo e estes permaneceram fechados até o final do contato, que perdurou por alguns segundos. Quando se afastou abrindo-os novamente, suas pupilas estavam dilatadas, seus lábios úmidos e sua respiração pesada; ao tornar a olhá-lo, o anjo tinha os olhos bem abertos, seu cenho levemente franzido, a mandíbula tensa e uma expressão grave marcava seu semblante sempre calmo e até meio entediado.
Antes de sequer conseguir pensar em algo para dizer e se proteger da morte eminente, o anjo agarrou-lhe o pulso com punho de ferro lhe puxando para perto até seus corpos estarem a menos de dez centímetros. Com olhos faiscando ele lhe encarou, não seu rosto, mas seus olhos. Noah sabia que ele olhava só e somente para seus olhos, mais especificamente, para suas pupilas, a janela da alma humana. Naquele momento, ao se deixar levar pelo contato e permitir que ele lhe penetrasse os olhos com os seus, teve também acesso aos do anjo e dentro das pílulas douradas Noah pôde ver como que em uma visão, asas querendo desesperadamente se liberarem agitadas.
— O que você fez? — perguntou o anjo consumido por um sentimento horrivelmente estranho que fazia suas entranhas queimarem e sua santidade gritar de volta lhe alertando do perigo eminente. Ele não sabia explicar o que era, mas sabia que estava a beira de um precipício.
— E-Eu… Me desculpe, eu não pude evitar, eu só…
— O que você fez? — tornou a repetir, pois queria saber o que estava acontecendo com seu corpo — Me mostre.
— C-como?! — Noah não estava entendendo o que ele queria.
— Me-mostre! — falou, dessa vez pausadamente, para não haver mais perguntas.
Sem muita certeza do que Strauss queria, Noah cautelosamente tornou a se aproximar, mas dessa vez seus olhos permaneceram abertos e podiam ver os do anjo, atentos como um falcão selvagem. Logo, o segundo, simples e tímido, selar de lábios, se aprofundou e antes que perceber, estava novamente com os olhos fortemente fechados. Noah, não sabia se por instinto ou por desejo, encaminhou as mãos até as macias madeixas a sua frente entrelaçando os dedos aos fios brancos e sedosos que deslizavam por entre suas mãos nervosas, sentindo sua razão lhe deixar pouco a pouco.
Sua cintura foi envolvida por mãos grandes e gélidas, os corpos se uniram como puro magnetismo, a força de atração dos dois corpos era insana, errada e tenebrosa, porém, ainda bela, ordenada e compatível como o inferno e seus demônios. Arfares foram soltos ao ar, respirações cortadas e mãos atrapalhadas brigavam por algo que não sabiam enquanto dois corações e duas almas — se é que era possível à um anjo tal feito — uniam-se por uma eternidade.
O ar tornou-se pesado e os lábios de Noah ficaram dormentes e então o garoto sentiu as mãos de Strauss segurar-lhe pelos ombros e afastá-lo rápido embora gentilmente. Após um momento de constrangido silêncio, Noah percebeu que seus lábios ardiam como se tivessem lhe dado pequenos choques e sua língua latejava como se estivesse queimada, protestando o contato que tivera com o corpo do anjo, o lembrado das diferenças gritantes entre seus mundos. Strauss mais uma vez o encarou com aquela expressão grave e o silêncio pairou desconfortavelmente no ar, até que o anjo lhe lançou um olhar intrigado e mais uma vez franziu as sobrancelhas.
— O que foi isso? Isso que você fez?
— A-apenas… eu só…
— Não tenha medo de mim, Noah, eu posso sentir o cheiro em você e isso me decepciona. Não é esse sentimento que quero causar em ti.
— E-eu não posso evitar.
— Então, foi como uma benção? Ou foi sua despedida? Essa é a forma como os humanos se despedem?
Noah sentia-se atônito, mesmo que tivesse acabado de completar seus quinze anos e ainda não passasse de uma criança aos olhos dos adultos, já havia vivido o suficiente de uma vida para saber exatamente o que era um beijo e entendia muito bem o que aquilo significava para si mesmo e porque havia feito tal coisa.
Strauss, porém, estava em um nível muito elevado de inocência para entender o que aquilo era ou seu significado, o que lhe decepcionou, mas após uma rápida repensada, achou que, se o anjo soubesse, teria sido pulverizado antes mesmo de conseguir encostar em seus lábios.
— S-sim… — falou tentando conter a tristeza e decepção da voz — É isso mesmo, é a minha forma de dizer “volte logo”!
— Isso… foi estranho, devo admitir. — o anjo levou uma mão até os lábios e tocou-os com a ponta dos dedos parecendo confuso — Me fez sentir diferente de quando sou abençoado por Mik’hail.
— Mik’hail? — agora quem estava confuso era Noah. Afinal, quem era Mik’hail e como assim o fazia sentir diferente de quando este lhe abençoava? Anjos se beijavam entre si? Existiam anjos femininos?
— Sim, um de meus irmãos. Nós, os Melahins, só trocamos esse tipo de contato em casos de extremo perigo, onde concedemos uma benção aos mais jovens e mais fracos. Porém, o que tu me deste é diferente, pois jamais havia experimentado tal contato na boca e sim na testa, como símbolo de apreciação aos mais jovens e a despedida dos que não voltarão para o Reino.
— Aaah! — Noah sentia-se aliviado de repente por entender que aquela era a forma deles, talvez a única forma, de demonstrar afeto entre si. Seu coração de sentia leve novamente, afinal ninguém havia tocado seu anjo de forma tão íntima antes, apenas ele ousara fazê-lo — Mas quer saber de uma coisa? O meu é diferente Strauss. — o nome ressoou pelo quarto e Noah percebeu que era a primeira vez que o pronunciava em voz alta para que ele o ouvisse; aquilo lhe fez corar — Meu beijo quer dizer “Não demore tanto para voltar” e não “Boa sorte ou adeus”.
Strauss encarou o humano a sua frente com leveza e um carinho que não existia no momento em que chegara até aquele quarto. Sem perceber, o anjo se viu dando um meio sorriso espontâneo, algo que jamais fizera antes, em sua forma celeste.
Olhando bem dentro de seus olhos, Noah não podia dizer se ele sabia que seus motivos não eram assim tão inocentes e que acabara de lhe contar uma mentira, mas o olhar que ele lhe lançou foi penetrante o suficiente para lhe dar o benefício da dúvida.
— Bom, acho que é a minha vez de despedir-se de ti, não?! — Noah concordou com olhos marejados sentindo a aproximação da partida de seu anjo, que não era assim tão seu como gostaria — Bem, foi bom vê-lo novamente, Noah.
Os olhos do anjo cintilaram ao dizer o nome do humano, assim como sua língua aqueceu e queimou. Suas asas se agitavam cada vez mais demonstrando a agitação que se formava dentro de seu ser com a chegada da partida, uma longa partida. Sem pensar duas vezes o anjo inclinou-se para frente e tocou a testa de seu humano com sua própria testa, este fechou os olhos ante o contato quente e os olhos de Strauss acenderam como um relâmpago quando seu corpo liberou poder sobrenatural, liberando uma benção silenciosa sobre a vida do jovem, o impedindo de esquecê-lo desta vez.
Como o esperado, ao receber o poder em seu ser, o corpo frágil de Noah tombou, desacordado, e foi segurado prontamente pelo anjo, que lhe pôs em sua cama, já adormecido. E com isso o anjo pulou a janela desaparecendo nas sombras.
Ao acordar em um salto na manhã do outro dia, Noah se encontrava sozinho novamente em seu quadro, de novo apenas com lembranças e nem uma única prova de que aquilo havia realmente acontecido ou se fora apenas em sonhos. Com um soluço alto o garoto percebeu a doída verdade, de que mais uma vez havia sido deixando sozinho com um coração apertado e cheio de dúvidas sobre um futuro repleto de “talvez” e o passado confuso que vivera. Não sabia quando ou mesmo se o veria novamente. Aquela tinha sido a última vez ou apenas mais uma?
Com um milhão de perguntas sem respostas e lágrimas nos olhos, Noah mais uma vez foi obrigado a esperar, podendo apenas desejar que o “até mais”, se é que de fato ocorrera, não precisasse demorar mais seis anos para acontecer.
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