A Maldição do Lobo Vermelho - Capítulo 28 - A oitava casa
— Seus atos estão mais subversivos a cada dia, “Urutau”.
A ênfase cínica dada ao nome explicitava a insatisfação. Apesar de concordar com o desfecho do caso, Netuno não estava feliz em ter que lidar com as consequências das ações impulsivas dos anciãos.
— Ah! Você estava me esperando? — a entidade debochou.
— Não seja cretino.
A névoa esbranquiçada rodopiou pelo ar antes de descer e tomar a forma da ave:
— Subversivo, você diz… mas veja bem… estou apenas adicionando um pouco de peso à balança para que permaneça em equilíbrio. — Gesticulou indicando o movimento. — Quem está burlando as regras não sou eu.
De braços cruzados, Netuno observava a grande confusão de tinta e sangue que a sala oval havia se tornado. Com exceção daquela figura, que permanecia imaculada, todo o restante havia sucumbido dentro do caotico rio negro que transbordava pelos corredores do castelo. Até mesmo a abóbada e o lustre estavam manchados pelo líquido grosso que descia pelas paredes, sem mencionar o rastro que serpenteava pelas pilastras, tingindo o jardim até o pátio interno com o piche.
— Vocês realmente se merecem. — Estalou a língua. — Dois velhos sádicos que não sabem a hora de parar.
A ave gargalhou enquanto dava voltas ao redor do boto:
— “Subversivo, velho e sádico”. Você nos conhece muito bem! Mas entenda… ao contrário de seu pai, minha melhor peça ainda está no jogo e… — Flutuou até o homem caído. — Finalmente chegou à oitava casa.
Netuno revirou os olhos, não era a primeira vez que ouvia essas bravatas e já sabia o rumo que a conversa teria a partir dali. Descruzando os braços, caminhou até a o ruivo que permanecia inconsciente sobre os destroços da estátua de mármore. O rosto pálido, emoldurado por longos cabelos vermelhos, estava belo como sempre e, se não fosse o grande burraco no peito, poderia jurar que estava apenas dormindo.
— Devo admitir que você fez uma ótima escolha. Ele é impressionante… mas continuar o tratando como um peão pode ser perigoso a partir de agora — o boto sentenciou.
As ameaças do irmão ainda ecoavam em seus ouvidos. Ele sabia que, mesmo sendo deuses poderosos, a ira de Tellus não era algo que os velhos tiranos poderiam negligenciar. Se esses joguinhos sujos continuassem, uma nova grande guerra iria eclodir e todos os lados sairiam perdendo. Como se zombasse das preocupações alheias, o Urutau riu, deslizando até o boto.
— Ah, você está certo, mas… ele não é mais meu peão, de qualquer forma — a ave murmurou com malícia.
— Se você diz… — suspirou — falando nisso, foi você quem abriu a gaiola? Eu levei um susto desgraçado quando o encontrei mais cedo.
— Porque? Ele te ameaçou? — riu enquanto voava para o lado de Kardia — Você bem que mereceu! Onde já se viu… até parece que não sabe o quanto seu irmão é obsessivo… Aliás… você tem sorte de estar vivo.
Netuno passou os dedos sobre o corte recente no pescoço.
— Ah! Eu sei…
Mesmo que o encontro não tenha sido amigável, foi mais pacífico do que imaginava. O grande general do Exército Celeste era conhecido por atacar primeiro e fazer perguntas depois, então, sair com apenas um arranhão após de ter mexido com seu bem mais precioso era mesmo algo surpreendente. De todo modo, rever aquela armadura prateada o lembrou do terror dos velhos tempos e do quanto o metal cintilante ornava com o vermelho.
Quando indicou o caminho para Kardia, sabia que o ruivo acabaria encontrando a galeria oval, mas não imaginava que as coisas se desdobrariam dessa forma. Na verdade, sua intenção era apenas atiçar a curiosidade do comandante, para que ele ficasse mais tempo no castelo, já que não estava disposto a abrir mão daquela aura agressiva que inflamava seus instintos. Não contava, porém, que a simples presença do lobo fosse atrair a sombra de Theos e despertar seu general.
Lendo seus pensamentos, o Urutau balançou a cabeça fingindo descontentamento e com a mais cínica das vozes disse:
— Parece que você começou uma guerra, meu jovem.
“Guerra…”. A mente do boto voou para o momento em que reencontrou o irmão:
“Os sintomas do envenenamento ainda não haviam passado completamente e por isso demorou a notar os distúrbios que ondulavam a energia no castelo. Entretanto, era impossível não notar a aura assassina que serpenteava pelas paredes, cobiçando os passos enérgicos do lobo.
— Pitanguinha… — sussurrou.
Como tinha imaginado, o tirano estava mesmo à procura do ruivo, só não conseguia entender como ele o havia encontrado estando dentro da barreira. De qualquer modo, não teve muito tempo para pensar, atravessando o pátio interno, correu pelos corredores silenciosos até que uma energia poderosa lhe impediu de prosseguir.
As pupilas dilataram e os ouvidos zumbiram antes que as pernas colapsassem. A garganta seca queimava em brava enquanto a sensação de extremo desespero afundava o coração em um precipício abissal. Até o sangue parecia ter congelado ao ser tocado pela escuridão sem fim.
— Maldição — Netuno praguejou — não pode ser… como ele escapou?
Mesmo que quisesse, as pernas se recusavam a tirá-lo do chão, muito menos estavam dispostas a levá-lo até o comandante. Tudo o que pôde fazer, foi aceitar a aflição e esperar pelo tempo que pareceu durar uma eternidade, até que o domínio aterrador do irmão se dissipasse por completo. Assim que os joelhos ficaram firmes o suficiente, cambaleou sobre as poças negras até a galeria, mas já era tarde demais.
— Tenha bons sonhos — a voz que misturava o feminino e o masculino disse carinhosa.
A armadura prateada rangeu na altura dos cotovelos enquanto o elmo pousava de forma delicada sobre a testa de Kardia. Mesmo que a máscara de guerra cobrisse todo o rosto, não pode evitar demonstrar a afeição que sentia através do metal.
O corpo inerte ainda pendia sobre os braços reluzentes quando o boto se aproximou e, naquele momento, as palavras sumiram de sua boca. Depois de tantos anos pintando e misturando cores, não tinha conseguido alcançar o tom de vermelho que o fascinava, entretanto, agora estava ali, bem na sua frente. Com os olhos arregalados, certificou-se de capturar cada detalhe da cena, para que pudesse eternizá-la posteriormente.
A couraça de metal que vestia o General Celeste, refletia os cabelos ruivos, ao passo que as penas douradas que adornavam os espaldares, elmo e as proteções das pernas cobiçavam as nuances dessa mistura. O xale do comandante e o estandarte negro da Harpia tremulavam juntos, finalizando a harmonia do quadro.
— Eu não esperava te encontrar tão cedo, muito menos aqui, meu irmão. — Netuno fez uma pequena reverência.
— Eu dormi por muitos anos, mas parece que algumas coisas não mudaram… Para onde mais eu deveria ir, sabendo que meu amado estava vestido com trajes de casamento?
A voz mista soava calma, mas era evidente as notas de repúdio no final de cada frase.
— V-veja bem… — gaguejou — é só que… as coisas acabaram acontecendo e… eu achei que você estava preso…
O boto tentou, mas antes que pudesse terminar a explicação, os olhos escarlate brilharam pela fresta do elmo e um um vento quente soprou sua trança, quebrando a pedra rosada que atava o final do cabelo. Netuno estremeceu ao sentir o líquido quente escorrer pelo pescoço, estava claro que o irmão não lhe daria uma segunda chance.
— Preso, não é? Bem… você não está totalmente errado, mas… não vejo como isso lhe dá o direito de forçá-lo a fazer algo contra sua própria vontade.
Netuno engoliu seco, dentre todos os seus despudores, esse era o único que não podia chegar aos ouvidos do irmão e pelo visto, ele já estava ciente de tudo. Se tivesse o mínimo de bom senso, teria se afastado assim que viu o ruivo atravessar o rio pela primeira vez, mas como Nice sempre dizia, “ele não pensava com a cabeça certa”.
Se não fosse trágico riria da ousadia da esposa, mas na atual circunstância, só podia admitir que ela estava certa e que a luxúria que guiou sua vida também tinha sido a responsável por destruí-la.
— Ah… Nice… eu sinto sua falta — sussurrou.
A armadura rangeu novamente, avançando devagar na direção do anfitrião do castelo. Os passos firmes mal tocavam o chão e, mesmo assim, repeliam as poças pigmentadas para longe do caminho. Suas mãos permaneciam ocupadas segurando o ruivo, mas a aura assassina que emanava já era o suficiente para coibir qualquer movimento do oponente.
Parando a alguns centímetros do boto, inclinou a cabeça para que pudesse encará-lo nos olhos:
— Você não pode tomar à força, um coração que não se dobrou nem mesmo a vontade dos deuses, Netuno.
— E-eu peço desculpas, irmão. Não queria tocar no que te pertence…
— Kardia não pertence a mim, nem a aqueles velhos malditos! — rosnou.
O domínio profundo inundou a sala com um pavor mais escuro do que a tinta que escorria pelo chão. A sensação sufocante engoliu todas as cores e parecia querer tragar até a mínima fagulha acesa dentro da alma
— Ele não é um objeto, tampouco uma posse. — Completou. — Sei que estive ausente por muito tempo, mas as coisas irão mudar a partir de agora.
O boto se esforçou para que as palavras atravessassem a garganta apertada:
— C-claro… eu entendo… me perdoe…
— Eu vou deixar passar dessa vez, Netuno, mas não haverá uma próxima, entendeu?
— Sim… per-feitamente, irmão.
— Ótimo. Preciso lidar com outros assuntos então vou deixá-lo aos seus cuidados.
O metal rugiu quando o general agachou sobre um dos joelhos e estendeu os braços, aninhando o ruivo em meio aos escombros.
— Mas… — o boto mediu as palavras — o corpo dele já está…
— Isso não é importante, aquela ave maldita vai cuidar disso. Apenas fique aqui e não deixe que mais ninguém além do Urutau entre na sala. Fui claro?
— S-sim, general Tellus! — se empertigou.
— Esse nome e essa patente não significam mais nada para mim. Eu os abandonei a muito tempo.
Os olhos escarlate brilharam ameaçadores e Netuno não pôde evitar se encolher, mas nenhum movimento hostil partiu das juntas metálicas que caminharam lentamente em direção à saída.
— Você vai encontrar nosso pai? — o boto disse aflito.
Se esse fosse o caso, uma nova guerra estaria prestes a começar e desta vez, nem Sollis nem Selene estariam aqui para interferir.
— Não agora — a voz respondeu risonha — você não deve entrar no ninho de uma serpente de forma tão despreocupada e também, ele já recebeu meu aviso. Mas esteja preparado… porque a rainha voltou para o jogo.”
— Respondendo sua pergunta… — O Urutau interrompeu os devaneios de Netuno, trazendo-o de volta ao presente. — Não fui eu quem abriu a gaiola, na verdade, ela nunca esteve trancada.
— O que você quer dizer?
Pelo que sabia, depois de vencer a última batalha, Theos arrancou as asas do primogênito e o prendeu dentro de uma gaiola de ouro dentro dos domínios do sonho. “Se ele não estava preso de verdade, apenas uma coisa poderia tê-lo mantido como refém”, o boto concluiu.
Esfregando o pequeno corte no pescoço falou em tom sério:
— Me diga, Urutau… Isso tudo, desde o começo… fazia parte do seu plano?
A ave riu de forma cínica:
— Bem… se eu te dissesse que o bater de asas de uma pequena borboleta, poderia desencadear uma sequência de eventos imprevisíveis a ponto de iniciar um grande tornado, você acreditaria?
— O que isso tem a ver com a pergunta? — O boto ergueu uma sobrancelha.
— Ah… é uma pena que você não seja tão esperto quanto essa criança… — debochou acariciando os cabelos de Kardia.
— Mas o quê??
— De qualquer forma — interrompeu — é melhor você ir agora, não é muito educado deixar seu convidado esperando e eu preciso terminar com isso aqui.
— “Convidado”? Mas de que convid…
Gritos ecoaram além das muralhas do castelo e os sons de passos aflitos preencheram os corredores. Netuno encarou a ave, que apenas deu de ombros, fingindo inocência enquanto acariciava a testa de Kardia. Pelo adiantar da hora, tinha uma boa ideia de quem estaria causando o tumulto.
— Bem… se me der licença, então… — Caminhou até a porta. — Preciso cuidar de um cãozinho mal criado. Mas não pense que terminamos essa conversa!
— Tchauzinho! — A ave abanou a manga comprida. — E quanto a você, minha criança, está na hora de acordar e reivindicar sua nova posição.
Publicado por:
- GSK
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