A Maldição do Lobo Vermelho - Capítulo 25 - A rainha de mármore
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Mesmo que não acreditasse completamente nas boas intenções do boto, Kardia ouviu atento as instruções antes de se trocar. A mansão era como um labirinto e sem Nice como guia, seria difícil não se perder pelos corredores. Agora que tinha voltado a pensar sobre isso, não pode deixar de perguntar:
— Sobre o que são todos aqueles quadros?
Netuno o encarou por um momento e depois balançou a cabeça rindo:
— Você gostou de algo neles?
— Não é muito inteligente responder uma pergunta com outra. Se não quer falar tudo bem. Já estou indo.
O comandante terminou de amarrar a haladia e caminhou em direção a porta, passando pelo boto que continuava sentado no chão do pátio.
— São apenas algumas recordações de família… — Netuno resmungou — meu pai tem o péssimo hábito de corromper as histórias ao longo do tempo, então… eu as registro como realmente aconteceram…
— Parece um jogo cansativo… — respondeu sem emoção.
— De fato… mas digamos que eu odeio ser um peão nas mãos do destino… principalmente quando as peças mais interessantes estão fora do tabuleiro.
Mirrado ergueu uma sobrancelha analisando as metáforas sem sentido, os olhos cor de rosa estavam maliciosos como sempre, mas uma expressão rancorosa contorcia os lábios grossos. Era uma visão inesperada e de certa forma prazerosa, mas infelizmente não tinha tempo para perder cutucando as feridas do pervertido.
Girando a maçaneta olhou pela pequena fresta que iluminava o corredor, mas antes que passasse pela porta, Netuno o chamou com um último pedido:
— Kardia! Tem certeza que não quer ficar? Assim que sair dos meus domínios eu não poderei te proteger…
Ele suspirou e atravessou o limiar sem responder, tinha perdido tempo demais com toda aquela baboseira. A essa hora, Nice já devia ter encontrado Ílios e contado o que aconteceu na mansão. Se esse fosse o caso, era possível que o ruivo aparecesse a qualquer momento derrubando o portão principal.
Mesmo que, meticuloso com seus planos, a personalidade explosiva que herdou do pai ficava cada dia mais evidente. Talvez porque o líder estivesse se aproximando da idade em que os lobos adquirem por completo sua força e instinto, mas os rompantes frequentes estavam se tornando uma dor de cabeça para o comandante.
“É melhor eu me apressar…”, entretanto, o pensamento e os passos foram interrompidos pela estranha silhueta branca que assombrava o cômodo de paredes escuras. Ele havia seguido as instruções do boto e correu por alguns corredores vazios até encontrar uma grande estátua de mármore que decorava a sala oval. A forma humana ostentava uma coroa cheia de detalhes mas não tinha um rosto esculpido abaixo dela.
Na mão direita, uma espada de guarda cruzada ameaçava a sequência de quadros pendurados na parede oposta e, na esquerda, uma peça de xadrez sucumbia solitária entre os dedos. Diferente das demais galerias pelas quais passou, as molduras em ouro envelhecido não tinham flores ou brasões, além disso, apenas um pequeno lustre desenhava mais sombras do que iluminava o ambiente.
Talvez fosse a sensação lúgubre que a decoração exalava, mas até o cheiro da sala perturbava os sentidos. Por causa do banquete, essa ala do castelo estava vazia, mas o comandante podia jurar que alguém o observava e por essa razão, se manteve em guarda enquanto seguia pela exposição sangrenta.
Mesmo que várias batalhas tenham sido expostas nos corredores centrais, aquela de longe, era a mais devastadora. Os cenários deslumbrantes que pairavam sobre as nuvens foram reduzidos a vidros estilhaçados, sangue e suor. Pela primeira vez, o sol e a luz pendiam em lados opostos e rios de lágrimas corriam abaixo do que sobrou do céu.
A cada novo quadro, as águas que dividiam as porções celestes das mundanas se tornavam mais turvas, como se os deuses estivessem se separando de sua criação preciosa. A natureza abominava a heresia cometida pelos mortais e castigava sem clemência a terra com toda sorte de catástrofes, enquanto os responsáveis pelo embate rasgavam os céus com espadas de fogo.
Ao que tudo indicava, essa era uma versão diferente e mais cruel da “Guerra dos deuses” que todos conheciam. Seguindo o curso da história, um painel em particular chamou sua atenção:
— De novo… — sussurrou.
Ao contrário da imponência refletida nas pinturas anteriores, aquela ave prateada, que continuava aparecendo em seu caminho, estava completamente manchada pela miséria. Suas asas arrancadas, se contorciam em uma pequena gaiola de ouro enquanto o corpo retalhado se esvaia em vermelho, apenas o olhar altivo permaneciam desafiando o carrasco de pedra.
À medida que se aproximava do painel, um aperto profundo incomodava o coração, era como se pudesse sentir a dor que aquele quadro emanava. Não apenas isso, o sofrimento e angústia que não conseguiram ser retratados com tinta estavam escorrendo como piche quente sobre a pele, queimando dos músculos até os ossos.
— O que está acontecendo? — murmurou tocando o rosto.
Lágrimas escapavam pelos olhos azuis enquanto o peito martelava de forma dolorosa. Queria sair dali, mas as pernas não se moviam, o corpo insistia em absorver aqueles sentimentos estranhos como se estivesse faminto por eles, como se precisasse desesperadamente entalhar na memória cada pequena nuance.
Não era a primeira vez que ficava cativo a um desejo tão forte, mas nas outras duas ocasiões, estava sob as amarras do ritual das memórias e era inevitável seguir os caminhos traçados pelo dono das lembranças. Agora, porém, essa vontade partia do próprio coração, de algum lugar escondido entre pilhas de pensamentos esquecidos e que o personagem alado parecia ter acesso.
Atordoado, não percebeu que estava sendo atraído pela pintura. Os dedos ainda úmidos, repousaram sobre as penas prateadas, manchando-as com os resquícios das gotas amargas que desciam pelas bochechas. Por mais que não estivesse procurando por nada específico, por um milésimo de segundo, sentiu que havia encontrado o tesouro que almejou por toda uma vida.
Era provável que a sala estivesse sob o domínio de algum encantamento, já que desde que pisou ali, suas ações e pensamentos ficaram completamente fora de controle. Tinha sido inocente em acreditar em Netuno e agora, era razoável imaginar que estivesse preso em alguma armadilha barata. De qualquer forma, não teve muito tempo para lamentar a decisão, no segundo seguinte, um sopro quente desfez o coque que prendia os cabelos e um estalo ecoou atrás de suas costas.
— Quem está aí? — Kardia se virou, erguendo a haladie.
Não havia mais ninguém, apenas a estátua sem rosto que o observava na sala vazia, entretanto, os instintos alertavam cada célula sobre o perigo iminente escondido no ar. Talvez por isso, pode reparar no pequeno detalhe.
— Está diferente… — constatou.
Abaixando a espada, caminhou cauteloso até a figura entalhada. A cada passo, uma nova rachadura riscava a rainha de mármore, era como se a peça de xadrez estivesse reagindo à sua presença. Não apenas ela, mas todo o cômodo parecia vivo, pulsando na mesma frequência dos batimentos acelerados de seu coração.
— Me encontra…
O sussurro fantasmagórico ecoou pelas paredes, fazendo os quadros vibrarem sob as molduras. Todos os pelos de Kardia se arrepiaram e um suor frio desceu sobre a testa, mesmo assim não recuou. Estava certo de que aquela voz melancólica pertencia ao ser que o ajudaria a desvendar esse mistério, ademais, o timbre que misturava o feminino e o masculino soava estranhamente convidativo.
— Me mostre como e eu irei até você… — ele respondeu confiante.
Uma segunda rajada brincou com as mechas ruivas, fazendo-as dançar sobre os ombros retesados. O hálito tórrido avermelhou as bochechas pálidas do comandante e deixou uma sensação ambígua nos lábios. Se o ar tivesse forma, poderia jurar que havia sido beijado e do mesmo jeito que isso o assustava também o atraia.
Os pés se moviam por conta própria enquanto as batidas do coração reverberavam pelas paredes. Estalos, rangidos e sussurros preenchiam o cômodo, embalando o tremular caótico do lustre. Formas animalescas rastejavam pelas sombras desenhadas no chão e até a estátua parecia se contorcer sobre a luz oscilante, mas nada tinha tanta importância quanto às fissuras que consumiam a rainha branca.
Pelo canto dos olhos, observou os quadros que tremeram de forma perigosa com o sussurro que ficou mais urgente:
— Me encontra…
— Deixa eu te encontrar! — Kardia completou como se respondesse a um código.
Na mesma hora que os dedos encostaram na peça de xadrez um rugido cortou o ar. O braço de pedra dobrou o cotovelo e a espada que antes ameaçava a parede desceu com força sobre o peito do comandante, que não teve tempo para reagir.
Ele piscou quando a lâmina de mármore atravessou a couraça que protegia as costas e antes que pudesse entender o que aconteceu sentiu um puxão rasgar as costelas. A figura sem rosto recolheu a arma com a mesma calma que atacou, não se importando com o sangue que a tingia de vermelho.
Um apito agudo feriu os tímpanos sensíveis, ele não sabia se vinha de seus neurônios ou de algum outro canto dentro daquela sala bagunçada, mas com toda certeza era um mau presságio. Kardia cambaleou para trás, segurando o peito aberto, não tinha nada que pudesse fazer a não ser rir da morte estúpida que o destino havia lhe reservado.
Após pelejar em tantas batalhas, iria perecer sob o fio de uma lâmina de pedra e tudo isso por causa de um pássaro que nunca viu antes, mas que continuava perseguindo seu caminho. Era engraçado e trágico ao mesmo tempo, nunca iria descobrir porque se deixou levar daquela forma e isso o estava chateando mais do que o próprio fato de estar morrendo.
Queria rir, mas as lágrimas escorriam rancorosas sobre a face sem cor. Só o que restava era a peça branca que pulsava aflita entre a palma direita e o buraco ensanguentado no peito. De certa forma era reconfortante, não estava sozinho no fim e por mais estranho que fosse, sentia que havia cumprido seu propósito.
Os joelhos cederam e o corpo caiu pesado sobre o chão, mas ele não sentiu o impacto, pelo contrário, era como se tivesse sido amparado por mãos gentis. A cabeça estava girando e os olhos perderam o foco. Não podia confiar na audição e o cheiro de sangue impregnava o olfato e o paladar. Apenas a sensação macia de estar sendo carregado permanecia instigando os sentidos.
Não estava completamente alheio à tormenta que se formava dentro do cômodo e apesar dos detalhes lhe fugirem a compreensão, era inevitável sentir o poder gigantesco que sacudia as paredes. Os quadros rangiam e se debatiam de forma selvagem, espumando tinta preta sobre as molduras ao passo que um sibilar conhecido rastejava pelo chão.
— Como você conseguiu escapar? — o tom venenoso preencheu a sala.
— Ah! É desse jeito que você me recebe depois de todo esse tempo? — o timbre misto debochou — Assim fico triste, papai…
O som oco de algo pesado se arrastando fez o piso vibrar e de relance, o comandante pode ver a estátua se jogar novamente em sua direção. Mesmo que quisesse não poderia se mover, também não tinha vontade de fazê-lo, a proteção calorosa que o envolvia afastava qualquer pensamento de medo ou combate. No fim, nunca se sentiu tão seguro quanto agora que estava morrendo.
A espada de pedra avançou sem hesitar, mas quem o segurava também não recuou. Talvez fosse sua imaginação, mas pode ouvir uma risada cínica ecoar nos ouvidos logo antes do rio de tinta atravessar as telas e engolir por completo a figura de marmore.
— Você não mudou nada, Theos, sempre mirando no meu coração… — a voz melancólica estava satisfeita — Desse jeito as coisas ficarão fáceis para mim.
Em um bote silencioso, as íris amarelas cintilaram cheias de ódio e duas presas afiadas brilharam a centímetros do rosto de Kardia. O cheiro rançoso embalava o veneno que escorria dos filetes pontiagudos enquanto a silhueta gigantesca serpenteava acima de sua cabeça.
“Esses olhos…”, pensou, mesmo que a visão estivesse turva era impossível não reconhecê-los. Todas as noites depois do acidente, eles rastejavam para dentro de sua cabeça, assombrando os sonhos e devorando o restante da sanidade que ainda possuía. Depois de todos esses anos, até o cheiro de ovo podre que impregnava as madrugadas em claro, continuava o mesmo.
Ainda que tivesse revisitado as memórias no ritual, não estava preparado para encontrá-lo pessoalmente. Na verdade, uma parte dele sempre preferiu acreditar nas pessoas que o chamavam de louco e atribuiam os acontecimentos daquela noite a uma condição hereditária. Era mais fácil colocar a culpa em algo que estava além do seu controle do que aceitar que foi enganado e que seu melhor amigo quase morreu por isso.
— Não tenha medo, ele não pode mais te tocar.
A voz que oscilava entre o masculino e o feminino ocupou a mente de Kardia, suprimindo a raiva e o medo que o atormentavam. Uma rajada de ar quente soprou seus cabelos e no mesmo instante, as ondas negras arrebataram a cobra. Ela guinchou em uma língua que o comandante desconhecia e quem o segurava respondeu tranquilo usando o mesmo dialeto.
Por mais que não entendesse, algumas palavras soavam familiares e uma curiosidade crescente agitou os sentidos. Em outra ocasião não deixaria passar, mas agora, não tinha forças para articular todas as perguntas que a mente acelerada formulava. Provavelmente, apenas a adrenalina o mantinha vivo a essa altura e o silêncio que esfriou o cômodo estava começando a diluir sua existência.
O ser que o amparava moveu os braços e, como se pudesse ler seus pensamentos, o apertou com mais força contra o corpo quente. Por um segundo, Kardia imaginou ter visto penas prateadas reluzirem sobre a cabeça, como se estivessem escondendo seu rosto da tempestade que pintava a sala de preto. “Será isso a morte?”, pensou, esticando a mão. “Não… é quente demais para ser algo como isso…”.
— Um anjo? — sussurrou para si mesmo.
— Não é a primeira vez que você me chama assim — a voz melancólica de antes disse contente.
Kardia forçou a visão, mas o rosto daquele ser estava embaçado pela luz tremida que vinha do teto. De qualquer maneira, não precisava vê-lo, apenas sentir o calor de seu corpo era o suficiente naquele momento em que o frio terminava de roubar sua consciência.
— Tenha bons sonhos, Kardia… ou devo dizer… meu coraç…
A voz sussurrada derreteu em suas orelhas e foi a última coisa que ouviu antes da lucidez se esvair na escuridão.
Publicado por:
- GSK
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Escrevendo, desenhando, editando e fazendo mais algumas artes por ai.
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