A Maldição do Lobo Vermelho - Capítulo 09 - Cicatrizes da alma





— Ah, você acordou — disse Kardia em um tom desinteressado — Seja um bom garoto e não se mexa, sim?
— Onde ele está? — perguntou o menino após se levantar com muito esforço — Quem é você? O que aconteceu? Ai!
— Eu mandei ficar quieto, filhote! — O comandante repreendia enquanto esfregava um bocado de ervas na cabeça da criança. — Que parte do “não se mexa” você não entendeu?
Tímidos raios de sol penetravam pelos pequenos buracos espalhados pelo forro do casebre, desenhando algumas porções de cones de luz por todo o lugar.
O garoto se empenhava em olhar ao redor, procurando aquele que o salvara, mas o homem à frente tapava boa parte de sua visão.
— Mas… onde el…
— Pelos céus! — interrompeu o irritado comandante — Não me diga que a pancada na cabeça afetou sua audição?
— Não é isso, eu só quero saber ond…
— …Ele está ali atrás. — Kardia fez um gesto com a mão, indicando um canto a suas costas. — Nã, nã, nã, nã, não! Não ouse importunar. Ele ainda não acordou.
Forçando o menino a permanecer deitado, o homem continuou:
— Ílios precisa descansar e você também deveria. Suas lesões não são tão graves, mas o estado geral de seu corpo ainda inspira cuidados. — levantando e olhando para o companheiro deitado ele advertiu — Eu irei buscar um pouco de água fresca, não saia daí ou eu arrancarei sua cabeça, entendeu?!
Arregalando os olhos o menino acenou positivamente.
— Muito bem! Bom garoto.
Alguns minutos se passaram desde que Kardia atravessou o limiar esburacado da pequena casa e o menino não podia mais se segurar. Apertando as ervas que estavam grudadas à testa, a criança se levantou com cuidado, a fim de não derrubar o arranjo feito pelo homem mal humorado.
Andando sorrateiramente até a porta, ele deu uma boa olhada do lado de fora:
— “Seja um bom garoto”, quem ele pensa que eu sou? Um cachorro?
Sem nenhum sinal do comandante, o pequeno se esgueirou até a forragem que servia de cama para o ruivo. Equilibrando o medicamento com uma das mãos, ajoelhou ao lado do belo homem que permanecia em sono profundo.
Seu rosto estava tão pálido quanto da primeira vez em que se encontraram, mas, ao invés de uma expressão pacífica, a face exibia sinais de extrema angústia.
Com os olhos bem apertados e as sobrancelhas franzidas, o homem balbuciava palavras desconexas enquanto amassava as pontas de um comprido xale negro que cobria seu corpo:
— Não… não foi minha culpa… eu… eu não quero mais… não me deixe aqui, por favor…
A cada palavra, sua voz ficava mais engasgada, como se estivesse no limite e não fosse mais possível segurar o peso dessas lembranças.
— Ílios? — sussurrou o garoto, testando o nome que havia ouvido a pouco.
O líder dos lobos estremeceu e grossas lágrimas rolaram dos olhos ainda fechados:
— Por favor! Não… não me deixe aqui! Eu… eu imploro, não quero mais ficar sozinho.
Aflito, o garoto se aproximou daquele rosto em sofrimento. Esquecendo das ervas na testa, acariciou levemente as bochechas descoradas com ambas as mãos:
— Não se preocupe, eu estou aqui! Você não está mais sozinho.
Como água sobre o fogo, as feições de Ílios suavizaram e sem prévio aviso, os braços fortes do guerreiro contornaram os ombros do jovem, puxando-o para si e o envolvendo em um abraço apertado.
— Í-Ílios — gaguejou o menino, assustado com a atitude inesperada.
Alguns segundos, ou talvez minutos se passaram antes do líder dos lobos sussurrar:
— É uma promessa?
Com o coração acelerado, o garoto respondeu:
— Sim, é uma promessa.
A brisa suave do amanhecer nunca pareceu tão aconchegante. A estranha sensação de completude preenchia o cômodo simples e até mesmo as rachaduras e frestas da moradia cooperavam com esse sentimento bucólico.
— Não deixarei que saia correndo novamente. — afrouxando o aperto a fim de encarar o rosto corado do garoto, Ílios continuou em tom quase solene — Agora responda a minha pergunta: Qual o seu nome?
Um contentamento retumbante fez com que o jovem sorrisse antes de dizer:
— Meu nome é Fengári!
— “Fengári”… “Fengári”… — O líder dos lobos repetia o nome enquanto ria levemente.
— O-o que tem de errado com meu nome? — Intrigado, o jovem franziu as sobrancelhas enquanto encarava o rosto descontraído à frente.
— Nada, nada! É só que…
— “Só que” o que?
Ílios parecia se divertir com a curiosidade estampada no rosto do garoto e não pode evitar provocá-lo.
— É só que… — olhando fixamente nos olhos brilhantes a sua frente, o homem fez uma cara deslavada antes de continuar — Fengári parece um nome muito imponente para um garoto tão pequeno e desconfiado como você… hahahaha.
— O-o que? O QUE? — Se esforçando para libertar-se do aperto do homem, o jovem se contorcia nervoso. — Como ousa?
Apertando ainda mais o menino em seus braços, Ílios atiçou:
— Ah! Quase me esqueci, sentimental também! HAHAHAHAHAHA.
— Ora seu miserável! Me solte agora!!
Com as bochechas vermelhas e com o sangue fervendo, Fengári se debatia enquanto cuspia inúmeras ofensas e juras de morte. Mas, quanto mais o menino se enfurecia, mais o outro ria e o apertava.
— Ai! Calma… para um garoto mirrado você até que é bem forte! Hahahahahahhaahha.
— Seu desgraçado! Eu devia ter te deixado morrer!!
Parado do lado de fora do casebre, Kardia observava silenciosamente as altas gargalhadas de seu mestre. Realmente, fazia muito tempo desde que o vira tão despreocupado. Sem querer, um pensamento confuso ecoou em sua cabeça:
“Será que alguma vez ele já tinha sorrido assim?”
Ílios assumiu muito cedo a responsabilidade de cuidar de um povo completamente destruído. Mesmo sendo apenas uma criança, Adamastos tratava o filho como um soldado, o treinando incansavelmente para que liderasse os Guarás após sua partida.
O antigo líder dos lobos sabia que fugir de Nychia era apenas o primeiro passo e que seria necessário um exército forte para libertar o restante do povo que permaneceu preso nas masmorras. Adamastos sabia também que as chances de seu ousado plano funcionar eram muito baixas e que, provavelmente, quem lideraria os Guarás à terras de paz não seria ele.
Assim, não houve espaço para viver a infância ou sorrir tão despreocupadamente. Mesmo sendo apenas uma criança, a vida de centenas de pessoas pesava sobre os pequenos ombros de Ílios.
“Não, acho que nunca o vi sorrir assim”.
Fagulhas do passado se acenderam em meio às risadas e as ameaças do presente, misturando o cenário atual com resquícios enevoados de memórias do comandante.
Gritos e pedidos de socorro eram abafados pelo som lancinante de ossos e carne sendo dilacerados.
Um amontoado de crianças sujas se encolhiam no fundo da cela fria e enlameada, enquanto os mais velhos lutavam para abrir as grades das inúmeras câmeras que aprisionavam os Guarás.
O cheiro de morte era sobrepujado apenas pelo odor da fumaça que preenchia os corredores pestilentos das masmorras de Nychia, tornando o ar ainda mais sufocante.
O fogo atiçado pela rebelião que acontecia logo acima, trazia um pouco de luz ao local claustrofóbico e indicava a direção da liberdade.
Em meio ao caos, a voz doce e infantil de Ílios ressoava em meus ouvidos:
— Kardia, não chore! Eu prometo que vou te proteger!
— Você promete mesmo? Eu estou com muito medo Lili. Minha mãe… ela… — Eu tentei ser forte, mas não consegui segurar minhas lágrimas.
Mesmo assim, Ílios foi forte, forte por nós dois, forte por todos nós.
Apertando o abraço que nos unia ele respondeu confiante:
— Prometo! Eu vou me tornar um guerreiro muito poderoso. Não! O mais poderoso de todos e irei proteger vocês! É uma promessa.
Todos tremiam de medo, mas a ingênua confiança de Ílios trouxe um pouco de alento aos nossos corações aflitos.
— Agora vamos lá! Se permanecermos encolhidos aqui ficaremos para trás! — Ílios estendeu sua mão enquanto sorria. — Meu pai está nos esperando, não podemos decepcioná-lo.
Erguendo a mão timidamente, entrelacei meus dedos aos dele:
— Mas Lili, eu estou com muito medo.
— Não se preocupe, Kardia, eu nunca soltarei sua mão.
Naquele dia, um pequeno número de rebeldes conseguiu escapar da escravidão e, no meio deles, estavam Ílios e eu. Foi naquele dia também que jurei, que independente do caminho que ele escolhesse, eu o seguiria.
Ele se recusou a largar a minha mão naquele momento e mesmo depois, mesmo quando eu quis desistir ele não a soltou. Se não fosse por ele, não estaria vivo. Ele não me abandonou nem mesmo depois daquele incidente…
Instintivamente, Kardia tocou o ponto elevado da garganta. Sentindo o contato da pele com a pele, seus olhos se arregalaram e bruscamente o comandante foi retirado daqueles devaneios.
Um sentimento complicado tomou conta do coração, enquanto os longos dedos tocavam a linha entalhada no pescoço. Avançando tortuosamente de orelha a orelha, ela serpenteava de maneira grosseira logo abaixo do pomo de Adão. Aquela cicatriz, dentre todas as que a vida lhe causou, era a que mais queria esquecer.
Ao contrário das várias marcas de guerra pelo corpo, que eram lembranças orgulhosas de lutas e combates, essa era a mancha que sinalizava sua fraqueza. A cicatriz, que lembrava do golpe que feriu muito mais que a carne, estraçalhou impiedosamente seu orgulho. Essa era a vergonha que o comandante se esforçava para esconder.
Com a voz engasgada e um mau humor pior do que o habitual, Kardia suspirou fundo antes de ultrapassar esbravejando o limiar da casa:
— Vocês são idiotas ou só estão me provocando?
Fengári se encolheu um pouco, lembrando da ameaça que o homem fez antes de sair. Já Ílios, acostumado com o temperamento ruim do amigo, não se abalou.
— Parece que já estão totalmente recuperados não é? — puxando com força o xale amassado do chão, o homem irritado continuou — Já podem se virar sem mim. Espero que moram lentamente e com muita dor.
Sacudindo a poeira do lenço, o comandante o enrolou rapidamente no pescoço enquanto caminhava novamente para fora da casa. Sentindo a proteção do acessório, suas feições se amenizaram um pouco, mas o humor já estava estragado.
— Não leve o que ele fala a sério. — Ílios acariciava gentilmente os cabelos revoltos do garoto assustado. — Kardia tem um péssimo temperamento, mas é uma ótima pessoa. Além do mais, se não fosse por ele, provavelmente estaríamos mortos, não é?
Com um sorriso gentil, o ruivo ajeitou as ervas, que, a essa altura, estavam espalhadas por todo cabelo de Fengári.
Se libertando do abraço embaraçoso o garoto resmungou:
— Acho que sim. De qualquer forma… me desculpe e… obrigado.
— Hum? — Ílios encarava intrigado o jovem que se esforçava para esconder o rosto. — Do que está falando?
— Bem… você me salvou e acabou se metendo em confusão por minha culpa. Além disso, você estava dormindo e eu acabei te acordando… eu devia ter ouvido o rabugento e não ter te importunado…
— Ah! Que bobagem! — O líder dos lobos puxou novamente o garoto para perto de si. — Você não sabe o bem que me fez!
Recostado no ombro esquerdo de Ílios, o garoto finalmente se deu conta do quão graves eram aqueles ferimentos, e que seu rompante anterior, poderia ter causado sérias consequências ao guerreiro.
— Você não… deveria ficar fazendo isso — a voz de Fengári estava baixa e um pouco desconcertada — suas lesões vão acabar abrindo se continuar se esforçando.
Com um tom mais sério, mas mantendo um leve sorriso no rosto, o líder dos lobos se ajeitou na cama improvisada. Puxando o garoto para acomodá-lo melhor entre seu ombro e peito esquerdo, Ílios cruzou suas mãos por trás da própria cabeça.
Com um apoio mais alto e confortável, o grande guerreiro passou alguns minutos contemplando o jogo de luzes que entrava pelo teto esburacado antes de responder:
— Você realmente não faz ideia…
O coração de Fengári estava acelerado. Ele queria muito dizer “então me conte”, mas sentia que esse não era o momento. O guerreiro parecia perdido nos próprios pensamentos, mas não parecia em sofrimento. Talvez fosse melhor que ele não perguntasse, talvez fosse melhor apenas aproveitar o silêncio.
Balançando no alto de uma árvore próxima, o negro xale absorveu a gota solitária que escapou daqueles tristes olhos azuis.
Aparentemente, algumas cicatrizes doem para sempre.
Publicado por:
- GSK
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Escrevendo, desenhando, editando e fazendo mais algumas artes por ai.
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