Pecado Primordial - O Primeiro Pecado
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Do doce do teus lábios,
Minha traição.
Da ternura dos teus olhos,
Meu erro.
Da calmaria da tua voz,
Meu castigo.
Do conforto dos teus braços,
Minha perdição.
Do nosso amor
Meu primeiro pecado!
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Ano de 3022, Quinta Guerra Mundial – Cidade de Clíos
O vento uivante das ruas escuras e precárias do mundo humano fustigava impiedosamente pelas janelas das pequenas casas, que lutavam para se manterem de pé. As luzes escassas nos postes vomitavam suas iluminações amareladas doentiomente deixando nítido o que o breu daquela noite sem sua lua tentava esconder: Os horrores da guerra, consequência da maldade humana, do egoísmo e da arrogância daquela raça impura.
Uma guerra que já durava muitos anos terrenos. Eles se matavam aos montes e diziam que era em prol da paz, a tão sonhada paz da qual apenas ouviam falar e diziam sentir saudades, mas como alcançariam esta tal paz se jamais haviam desfrutado dela realmente? Quanto sangue mais precisariam derramar até finalmente alcançarem a tão sonhada “paz”? Afinal, o que era a paz para eles? Acaso sabiam que o que desejavam jamais teriam? Acaso a culpa daquele caos na terra não era de seus próprios pecadores e sua própria ignorância sobre o valor incalculável de Shalom*?
Strauss bem sabia que não devia se permitir interessar por uma raça impura, por aqueles humanos cruéis. Sabia também que jamais poderia aproximar-se deles e muito menos entrar em contato; eles não mereciam, não eram dignos de verem os Melahins*, nem mesmo um relance, porém, ali parado debaixo de uma daquelas piscinas amarelas de luz, observando as estrelas de uma perspectiva nova, vendo-as de baixo, não pôde deixar de sentir-se curioso sobre aquela raça a qual todos falavam mal, mas ninguém, de fato, odiava.
Strauss jamais estivera ali antes, era um Melahim poderoso demais para ir até Eretz*, não podia correr o risco de contaminar-se como outros irmãos que já haviam caído em desgraça por um humano em tempos passados. Ou mesmo ser visto, mas naquele momento, perdido naquele lugar, sozinho em um mundo desconhecido, porém tão famoso entre os demônios e até mesmo entre seus próprios irmãos, nada o impediu de fazer o que lhe fora proibido, e talvez aquele fora seu primeiro pecado.
Observando com cautela ao seu redor podia ver o quanto seres tão pequenos e desprovidos de poderes podiam conseguir, e a destruição em massa que conseguiam fazer. Era tão deprimente que se pudesse, o anjo teria chorado, isto é, se soubesse como fazer.
Ele era um anjo da classe Saraf* da 1ª Tríade* e Primeira Ordem* do céu, composta pelos anjos mais próximos de Abba*, desempenhando suas funções diante de Yahweh*. Sua posição era da mais alta patente, elevada demais e de extrema importância para ir até um lugar conhecido como o lixo do universo, o submundo dos mundos; aquele lugar desprezível chamado Terra, ao qual sempre ouvira falar. Parque dos demônios e de suas cobaias. Ele e seus três* irmãos, os Serafs Ungidos de Yahweh, eram os mais velhos de todos os anjos, e considerados entidades superiores provenientes de infinita bondade.
Strauss sentia-se apreensivo naquele ambiente desconhecido, afinal nunca havia ido até a Eretz Inun’k*, pois tarefas simples como aquela não necessitavam de Melahins do alto escalão, porém, após receber ordens diretas para ir a uma convocação que chegara do próprio Sheol*, tivera que passar pela Terra para concluir tal travessia e na viagem de volta para o Paraíso, ao se entreter com algo sem importância, acabara por se perder dos demônios que lhe escoltavam de volta mostrando-lhe o caminho.
O anjo vagou calmo por ruas escuras e maltrapilhas, de casas que pareciam prestes a desabar sobre seus moradores, todas escuras e silenciosas em sua própria infelicidade. O cheiro das emoções, sentimentos e principalmente dos pecados, se acumulavam nas ruelas e becos como o acúmulo de podridão fazendo o nariz do anjo arder e sua pele formigar. No ambiente venenoso e escuro, apenas seus cabelos alvos e sua pele pálida brilhavam, como se naquele momento nada naquele mundo, de fato, fosse belo ante a presença do ser celestial.
Ele continuou observando uma a uma as casas até se deparar com uma em especial onde a única janela visível se encontrava aberta para a rua sombria, e não só isso, o mais formidável era que alguém olhava para fora, não para a rua ou para a desgraça em geral, mas sim para o céu, que estava pintado de estrelas, porém encobertas pela poluição no ar, o que tornava quase impossível um humano normal vê-las. Naquele momento, era como se todo o cinza da paisagem fosse deturpado pela luminosidade daquelas íris verdes, como pedras preciosas.
Os olhos da criança — que permanecia imóvel à janela —, brilhavam como duas pérolas, estes iam em direção ao céu pontilhado e mesmo em uma situação como aquela, onde a desesperança já destruíra todo e qualquer sinal de beleza e felicidade, até mesmo a esperança, seus lábios finos desenhavam um sorriso sincero que mandava para longe a escuridão aterradora do quarto fazendo-a parecer não poder tocá-lo. Era quase como se ele de fato conseguisse vê-las sobre o manto cinza de fumaça e poeira e aquilo chamou a atenção do anjo, pois tal coisa não acontecia com frequência, talvez ele tivesse A Visão, talvez ainda existissem pessoas sensíveis as coisas que as outras já consideravam lenda, como anjos e demônios, céu e inferno.
O anjo não entendera o motivo verdadeiro do sorriso simples e sincero do garoto, ou mesmo o porquê dele parecer feliz dada a sua própria situação perturbadora, afinal como alguém podia ser feliz em uma situação como aquela? Como podia haver esperança, e ainda, em uma criança que tão pouco sabia da vida? Não era como se ele fosse um dos felizardos da elite do Novo Mundo, afinal os sinais dos maus tratos eram nítidos na magreza, nas olheiras, no medo estampado em seu rosto, nas marcas do trabalho pesado em seus braços e no cheiro do medo que saía de seus poros, porém a esperança que emanava daquela alma e a felicidade infundada e, aparentemente, sem motivos, pulsavam dele fazendo sua alma acender como uma vela na escuridão e aquilo quase tocou o anjo de maneira fatal, lhe fazendo ponderar por um segundo se, de fato, todos naquele mundo corrompido mereciam passar por tal tormento.
O contentamento naqueles olhos cansados de apenas ainda poder ver as estrelas parecia pagar por todo um dia de miséria e tortura. A simplicidade daquele ato dizia muito sobre aquele humano, que não devia ter mais que oito anos de idade e em seu curto período de vida, já passara por tantas coisas ruins e já conhecera a maldade de sua própria raça e a desgraça de uma vida destinada a ruína e miséria, assim como a maioria.
Strauss, como se estivesse em transe pelo aroma de pureza do garoto e fascinado demais com a pequena alma que pulsava vitalidade e, misteriosamente, era bela e pura — não se parecendo em nada com seus semelhantes —, aproximou-se um pouco mais tentando descobrir o porquê dele parecer tão diferente. Afinal o que tinha de especial naquele humano? Por que ele parecia tão puritano na frente dos demais? Por que o anjo não conseguia sentir o cheiro de seus pecados como acontecera desde que havia colocado os pés naquele mundo?
O anjo, tão absorto em seus pensamentos e questionamentos sobre os humanos — uma nova dúvida, que nunca antes havia tido, lhe surgira no íntimo — esqueceu-se que não devia estar ali, muito menos aproximar-se, e foi surpreendido pelo olhar surpreso que os grandes e redondos olhos fundos e cansados a sua frente lhe lançaram, a pequena boca de lábios finos se abrindo formando um “AH”, mudo. Strauss parou e encarou a criança a sua frente estreitando os olhos cauteloso e totalmente encantado, afinal ela podia mesmo vê-lo, e aquilo devia ser impossível, pois os humanos só viam o que queriam ver, só o que acreditavam, e anjos não estavam nessa lista.
O anjo se moveu e o garoto assustou-se, então ele concluiu que, de fato, ele podia vê-lo. Se manteve parado vendo-o se acalmar pouco a pouco, piscando repetidas vezes como se para ter certeza do que via; só quando sentiu aquele coração tão pequeno e ainda tão belo se acalmar parcialmente de seu choque foi que resolveu aproximar-se.
A criança se ergueu conturbada e adentrou o quarto se afastando de acordo com que ele se aproximava, de pé era ainda menor e deixava ainda mais visível os maustratos de uma vida em decadência, em um mundo cruel, onde seus habitantes não perdoavam nem mesmo suas crianças. Seus grandes olhos verdes ainda piscando pela falta de luminosidade do cômodo e a descrença de ver o sobrenatural bem diante de seus olhos. As bochechas encovadas marcando profundamente a fome que seu estômago tentava esquecer, e os cabelos, que sem dúvida seriam bonitos em outros tempos e circunstâncias, naquele momento eram negros e secos, espessos sobre a cabeça grande demais para o corpo esquelético.
Strauss, porém, podia ver com clareza por causa de sua visão monocromática, podia também ouvir as batidas ainda aceleradas daquele coraçãozinho, que bombeava o sangue com velocidade máxima, desejando viver, mesmo que mais um pouco, mesmo sofrendo, tudo o que aquele garoto desejava era viver. Ele arregalou os olhos e o anjo acompanhou seu olhar em direção aos próprios pés e viu surpreso que o asfalto derretia e eles afundava na terra, então entendeu que, se quisesse aproximar-se, não poderia se manter em sua forma celeste completa, pois seu poder era plausível e forte demais para aquele mundo, ao ponto de destruir o que estava ao seu redor e, consequentemente, podendo matar a criança com sua mera presença, afinal a luminosidade dourada que emanava de sua pele — que parecia feita de diamante sólido —, não era nada mais que energia pura.
O anjo piscou algumas vezes fazendo seus olhos, antes dourados, agora tomarem uma forma mais humana, escondendo sua verdadeira natureza. A pele tomando o aspecto humano, assim como a estatura, que antes era mais de quatro metros. A passos lentos aproximou-se da casa precária e em questão de segundos — tão rápido que os olhos humanos da criança sequer conseguiram acompanhar —, o anjo estava no primeiro andar, de pé na janela do pequeno quarto engolido pela escuridão. O garoto, que agora o olhava ainda mais assustado que da primeira vez, vendo-o ali diante de seus olhos, sem conseguir uma explicação para aquilo, afastou-se até o fundo do quarto sentando-se na cama.
Strauss que agora habitava seu receptor “humano” — coisa que nunca antes em sua vasta existência precisara fazer —, viu-se esboçando um meio sorriso, um gesto novo e totalmente desconhecido para o anjo, que era completamente desprovido de emoções e sentimentos, afinal era um guerreiro, fora criado e projetado, moldado para obedecer sem questionar, matar sem remorso e castigar sem ressentimento. Por algum motivo sentia-se diferente, se tivesse conhecimento de emoções, ousaria dizer que sentia-se feliz, e talvez fosse por perceber que em meio a um mundo perdido ainda havia um ser humano que não havia sido corrompido.
Ele não sabia o que era aquela sensação inovadora em seu ser, já havia vivido muitos anos terrenos e ido há muitos lugares entre o paraíso e o inferno, cumprindo as ordens que lhes era dadas, mas nada se comparava a sensação que aquele pequeno cômodo engolido pela escuridão de uma entre a tantas noites naquele mundo devastado e esquecido por Deus, onde aquele pequeno ser humano se encontrava, lhe causava. Se tivesse um coração terreno, tinha certeza que também poderia ouvi-lo bater.
Mesmo com seu corpo repelindo o novo ambiente e sua consciência gritando para que ele saísse dali, o anjo adentrou o quarto, seus pés desnudos tocando o piso frio e deixando uma marca de queimadura encravada na madeira velha. Uma corrente de energia fluíu por todo o chão chocando-se aos pés do garoto e subindo por sua coluna, o fazendo arrepiar-se. As sombras pareciam fugir dele enquanto caminhava, abrindo seu caminho pelo quarto em direção ao garoto.
Strauss não sabia o motivo, mas os grandes e redondos olhos daquele humano lhe fascinava. O brilho que eles possuíam era algo que o anjo nunca vira em sua longa vida. O verde deles cintilava mesmo no escuro cômodo, como se possuíssem seu próprio brilho; brutos, raros como uma esmeralda. Mesmo com pouca idade terrena, eram tão obstinados e tinham tanta coragem que, de certa forma, ele não pôde resistir à tentação de se aproximar um pouco mais; na verdade muito mais do que devia, afinal jamais sentira aquilo vindo de nem um outro humano em eras, quando ainda era jovem e acreditava que poderia existir redenção para eles, quando ainda ousava dirigir seu olhar à Terra em busca de um justo, o que já não fazia há milênios. Talvez naquele tempo que passara desacreditado, algo finalmente houvesse mudado.
Era absurdo seu campo de força, tal qual magnetismo puro, como se o garoto possuísse o talento de persuadi-lo a se aproximar sem perceber o perigo que aquilo significava, sem ver a maldade por trás do ato. Ele parecia tão inocente que o anjo jamais imaginou que estava pecando em se aproximar de uma tão linda criatura. Sem pecados ou manchas, totalmente imaculado naquele mundo podre. Sua aura era tamanha que naquela imensidão cinza, sua alma era o ponto de luz mais forte em todo o vasto campo de visão do anjo.
Naquele momento Strauss fez algo que jamais havia feito antes. O anjo se questionou o porquê de ser tão errado entrar em contato com um ser como aquele, e qual a verdadeira razão para ser considerado a pior traição relacionar-se com os mesmos. Por que aquela lei se aplicava a todos os humanos, mesmo que não fossem todos maus? Ele não sabia que era exatamente este o pecado, o questionamento era o primeiro passo para um anjo, que jamais deveria ter dúvida em seu ser, cair.
Por parecer tão ínfimo e inocente é que era tão perigoso, e o anjo, inocente e desconhecendo o pecado propriamente dito, não pensou duas vezes antes de prosseguir e cair na tentação do inofensivo pecado da curiosidade, que fora o que fizera tantos companheiros mais experientes caírem. Aquela raça, os tão famosos humanos, pareciam tão inofensivos aos olhos de seres celestiais, poderosos e com graça e pureza excessivas, que fácil e sutilmente os faziam cair na tentação de se aproximar, e aquele era o erro fatal. Afinal, era impossível para um anjo, não sentir-se cativado pelos seres humanos.
Strauss ergueu os olhos na direção do pequeno ser a sua frente e o fitou mais intensamente do que pretendia. Este permanecia sentado imóvel no colchão fino, as mãos trêmulas e suadas. O menino, de fato, não parecia ter mais de oito anos e era tão magro quanto se poderia ser, e também bastante pequeno para sua idade, mas ao mesmo tempo em que seu ser físico era precário e miserável, seu ser espiritual possuía a força que um humano adulto não possuía em séculos, uma esperança sem limites e uma pureza surreal; o garoto era tão perfeito em comparação a sua raça que chegava a ser belo, mesmo em sua precariedade e aparência maltratada, fazendo Strauss pensar que a Terra não merecia tê-lo habitando nela, mesmo que temporariamente. Pois sendo um anjo, ele podia pressentir a linha de vida de um humano e a linha de vida daquele garoto já estava quase praticamente esgotada, mesmo que ele não passasse de uma criança, e mesmo que ele sentisse que não seria uma morte natural ou justa.
Por algum motivo, após saber que a criança seria injusta e cruelmente tirado de sua miserável vida, a qual era tão grato, não pôde evitar sentir algo estranho dentro de seu ser, tendo o impulso de protegê-lo, porém não soube nomeá-lo, pois não conhecia as emoções como os humanos. Do contrário, o anjo permaneceu parado próximo a janela encarando a criança em silêncio e este fazia o mesmo, lhe lançando um olhar medroso, porém cheio de curiosidade.
De início não entendeu o por quê daquele olhar engraçado em seu rosto e seu motivo de olhá-lo tão impressionado, mas após repensar a situação do ponto de vista da criança percebeu o que a estava alterando. Ele era um estranho que aparecera na rua vindo de lugar nenhum. Sem explicações fora da rua ao primeiro andar em um piscar de olhos, vestia um terno completamente branco sem costuras e com detalhes em fios de ouro, sua pele pálida era coberta de runas — finas linhas prateadas que brilhavam delicadamente em sua pele —, um sobretudo também branco, sem mangas, caía por suas costas até os joelhos. Seus pés desnudos eram pálidos e na escuridão sombria pareciam fantasmagóricos, como se feitos de fumaça.
Sua pele, mesmo adotando um aspecto mais humano, ainda deixava escapar uma leve iluminação azulada, assim como seus olhos de íris completamente douradas, sem pupilas. O anjo também não possuía uma estatura comum, mesmo se modificando, ainda não conseguira diminuir ao ponto de passar despercebido e acabou ainda mais alto que normalmente um homem seria. Dois metros e trinta era o mínimo que conseguira cumprimir seu corpo, então, obviamente havia surpreendido o pequeno. Pelo menos suas asas haviam desaparecido.
Strauss abriu a boca pronto para ordenar que a criança dormisse para poder tirar-lhe as lembranças do acontecido quando sobressaltou-se com a voz baixa e nervosamente tímida. Honestamente, havia pensado que ele estava tão amedrontado que não conseguiria fazer nada mais que gritar, ou até mesmo desmaiar, e a reação, de certa forma, irritou o anjo. Afinal, por que ele não agia aterrorizado, mesmo que estivesse com medo?
— O-o que é você? — o fio de voz que escapou de entre os lábios foi trêmulo e falho — Você não é um soldado, é? Não se parece com um. — a criança mantinha os olhos fixos em seus fantasmagóricos pés descalços fazendo o anjo erguer as sobrancelhas surpreso pela pergunta tão repentina. Também não achou que ele o entenderia, mas aparentemente quando se estava na Terra, se adaptava ao lugar que estava e isso incluía o idioma que determinado povo falava.
— Eu sou apenas eu, e não, como pode ver, eu não sou um soldado mundano. — manteve a voz baixa para evitar assustá-lo mais do que ele já estava assustado.
— E-eu… não fiz nada de errado. — o garoto ergueu a cabeça apenas o suficiente para que seus olhos fundos pudessem ser vistos pelo outro, seu rosto meio coberto pelas sombras que assolavam o quarto deixando ainda mais visível as encovadas bochechas — Não… não quero voltar para o quarto do castigo. Eu juro que não fiz nada de errado.
— Eu já disse, humano, não sou um soldado. — o garoto se encolheu — Não estou aqui para machucá-lo. — os olhos do anjo correram pelos hematomas nos braços e pernas finos.
— Se não é um soldado, por que está aqui a essa hora? — os olhos da criança brilhavam com desconfiança — Vocês sempre dizem o mesmo, mas no final, sempre estão mentindo.
— Mentira? — o anjo sentiu-se retesar o corpo ante a ofensa — Acaso me pareço um frágil soldado humano? Isso é ultrajante, inaceitável! — a criança hesitou.
— N-não.
— Acha que eu te machucaria de alguma forma?
— Sim! — a criança respondeu imediatamente fazendo o anjo parar.
— Posso aproximar-me de ti? — o garoto o examinou por um segundo antes de concordar, então ele se aproximou da cama e ajoelhou-se a sua frente, estendendo a mão e segurando a do garoto, mesmo sua pele queimando com o contato — Permita-me mostrar-te algo.
O outro concordou novamente e então Strauss fechou os olhos sentindo-se tornar-se leve como o vento. Em sua mente se viu elevar-se de seu corpo junto com a criança, suas asas se desenrolando como tapetes dourados, seus cabelos alongando até seu quadril como uma cortina branca, assim como seus membros, que cresceram até ficarem em seu real tamanho. O garoto, agora ainda menor frente a frente com o anjo em sua real forma, mas muito longe de parecer assustado, lhe olhava maravilhado, então o anjo tornou a abrir os olhos e afastar-se e tudo estava exatamente como sempre fora no quarto. Escuro, frio e sujo. E a visão que parecera ter durado minutos a fio, não demorara mais do que um segundo, ao ponto de a criança já começar a esquecer o que vira e em sua mente manter-se apenas a sombra daquela lembrança.
— Como você fez isso? V-Você… O que é você? Você é mesmo… um anjo? — seus olhos cintilavam de esperança. Strauss, porém, era o mais chocado dos dois, pois a criança não parecia em nada surpresa ou amedrontada, apenas um pouco abalada pela visão.
— Como? Você não devia ser capaz de lembrar exatamente o que viu… O que é você?
— Então você ouviu as minhas preces? — o garoto continuou o ignorando — Eu sabia que não era só uma lenda. Minha mãe, ela… — seu olhar escureceu e a sombra de uma lembrança dolorosa passou por seu rosto — E-ela me contava histórias sobre anjos… E que eles realizavam desejos.
— Desejos? — jamais ouvira falar sobre tal palavra.
— Você veio me ajudar… não foi?
— Ajudar? O que era sua mãe? Ela era descendente dos anjos que caíram após a Primeira Rebelião? Acaso era um Nephilim*? Essa é a única explicação para você ter herdado dela a Visão do Não Natural.
Haviam tantas dúvidas na cabeça do anjo que ele sequer conseguia ver para onde estava sendo levado e para o quê estava sendo arrastado, cada vez mais perto de cair no desastroso desejo de mudar o destino daquele humano, ao mesmo tempo em que sua visão clareava de muitas formas. Com certeza a mãe daquela criança fora a cria proibida de um anjo caído com um humano, aquilo, mesmo que uma abominação, era mais comum do que gostaria de admitir desde a segunda apostasia dos anjos. Já ocorrera diversas vezes antes, nos tempos antigos. Mesmo nas sagradas escrituras haviam relatos dos filhos provenientes de tal união. Uma cruza humana com um anjo caído, que sabia do sobrenatural e por isso sua herdara a Visão. Ainda existiam tais abominações na Terra? Acaso Ele não havia destruído aquela raça de aberração na última Grande Guerra? Mas só aquilo explicava o porquê dela ter sido levada para execução mesmo sendo inocente, deixando sua criança sozinha.
— O que quer dizer com ajuda?
— E-Eu só queria uma boa família e alguns amigos. Não quero mais apanhar, eu… eu odeio a dor, odeio ficar sempre sozinho, mas depois que mamãe… Depois que ela foi levada, eu…
— Eu… não posso fazer nada por você.
— Por que não? Você é um anjo, não é? — o garoto falava como se ouvisse a coisa mais injusta do mundo, quase um ultraje.
— Sim, sou, mas…
— Você não devia ajudar os que precisam de sua ajuda? Não é isso que os anjos fazem?
— O que disse? – o anjo sentia-se contrariado por estar sendo acusado por um humano, e ainda, uma criança.
— Anjos são seres bondosos e criados para amar os menos afortunados da Terra, não é…?! P-Por favor. — o garoto piscou algumas vezes espantando as lágrimas para longe, mas seus olhos já estavam tingidos de vermelho pela aproximação do choro e o anjo sem pensar duas vezes, comovido pelas lágrimas sinceras e sentindo a dor verdadeira do humano, finalmente cedeu a tentação e pronunciou a primeira das muitas palavras que o fizera ir por um caminho sem volta.
— Eu… não posso garantir fazer tudo o que está me pedindo, mas prometo que farei o que posso para lhe ajudar. — e assim selou seu destino. Pois para um anjo, que nada sabe sobre a mentira, uma promessa é um pacto inquebrável e ele daria até sua vida para fazer com que ela se cumpra.
Um sorriso cansado se formou nos olhos da criança, suas piscadas ficando mais lentas. Strauss o encarou e naquele momento soube que faria qualquer coisa por aquele humano, nem que aquilo o desgraçasse. Se soubesse que havia alguém como aquela criança na terra, já o teria ajudado a mais tempo, antes que a esperança se esgotasse de vez e o mundo, que antes era motivo da glória do seu Criador, jazesse em desgraça e apodrecesse em esquecimento. Quantos mais inocentes haviam ou teriam morrido, esquecidos junto aos maus?
O anjo sentiu-se tensionar quando um zumbido alto e agudo soou dentro de sua cabeça como um pequeno sino, e logo em seguida uma bela e aveludada voz ecoou em sua mente, misturada a uma pitada de irritação acabava por se tornar mais fria do que, de fato, bela como devia ser, como a calmaria antes da tempestade.
Strauss, onde estás? Os Satani* que deviam escoltar-te de volta para nós disseram-nos que havias sumido na travessia do Sheol pela Eretz e eu não conseguia te contatar. Pensei que eles haviam armado uma emboscada para ti. O que fazes aí que te tomaste tanto tempo? Te procuro há dias terrenos! Não me sinto bem nesta forma, preciso abandonar minha santidade original e me desfazer da minha forma angelical para adotar esta forma humana… Então, aonde estás? Estou sentindo a tua presença, mas não consigo te rastrear. Algo interfere a nossa conexão… Tu não está perto de um humano, não é?
O anjo sentiu os músculos tencionarem, não estava habituado a mentira, jamais o fizera, então não sabia como fazê-lo, por isso simplesmente ignorou ao chamado por mais um momento antes de responder, ou aquilo ou teria que dizer que fizera contato com um humano, cometido traição. O ser celeste tornou a olhar para o humano a sua frente ainda sem acreditar realmente que fizera exatamente o que envelhecera ouvindo — e até ensinava aos mais jovens —, que era proibido de fazer.
A criança, por sua vez, o encarava assombrada e trêmula, seus olhos haviam perdido o brilho e esta o encarava com pupilas perdidas, sua temperatura corporal se elevando perigosamente. Só então o anjo percebeu que sua própria pele emitia uma fraca luz dourada e sua visão começava a ficar infravermelha, vendo não só o garoto, mas sua temperatura, o seu nível de medo, seu coração pulsando e até o sangue que corria por sua veia carótida, que tremulava no pescoço. Se ficasse mais um minuto naquela forma, o humano entraria em combustão espontânea.
Aquele era um sinal claro de que os olhos do anjo estavam se tornando completamente dourados novamente, a sua real forma, sua natureza angelical, o que seria fatal para qualquer ser inferior, como demônios de castas baixas, então não precisava nem pensar o que faria a um mero mortal. Naquele momento, não queria testar seu poder. Sabia que aquilo havia ocorrido pela energia sobrenatural de se comunicar com outro Melahim, o que lhe permitia ser rastreado facilmente, por isso também sabia que tinha pouco tempo até aquela forma humana se desintegrar e ele tornar a sua real forma e ser encontrado por Mik’hail*.
Strauss se esforçou para se concentrar ao máximo para manter aquela forma por mais alguns minutos e bloquear o acesso de seu irmão. Engoliu em seco acalmando-se até que a luz se foi de seu corpo e sua visão voltou ao normal — a pele de seu recipiente já começava a escamar e virar cinzas — então tornou a olhar para a criança e sua expressão suavizou, tornando-se terna e serena. O garoto o olhava desconfiado, totalmente alarmado fazendo o anjo perceber que voltara a estaca zero. Ele novamente estava amedrontado com sua presença, o que seria sua chance perfeita de tirar-lhe a memória e partir como se jamais tivesse tido aquele deslize. Aproximando-se novamente, o anjo sentiu seu corpo gritando por libertação. Ele precisava se apressar.
— Acho que seu corpo mortal precisa de descanso, você está fraco, prescisa recuperar a força, e já é quase manhã. Falta apenas uma hora e quatro minutos terrenos para seu sol nascer.
— Como você…?! — a voz do garoto morreu na garganta, sua visão clareando, fazendo seus olhos cintilarem — Certo… um anjo!
— Isso mesmo, um anjo*! Devo me despedir agora, sequer devia ter ficado aqui por tanto tempo, e você tão pouco devia estar vivo à minha presença.
— Por que eu devia estar morto? — a voz da criança soou aguda pelo medo que percorreu seu corpo. — No fim, você é só mais um soldado, não é?!
— Não sou um soldado mortal, humano. Sou um Seraf di El Shaddai*. — a voz do anjo saiu como o sopro frio do vento, quase inaudível — Tu sequer devias ser capaz de ver-me.
— Então… — a criança falou timidamente — Você cumprirá a sua promessa, não é? Como um anjo, você não pode mentir, certo? — o anjo sentiu sua língua queimar, mas não conseguiu impedir as palavras de saírem, pois já havia prometido e, como a criança o lembrara, não podia mentir.
— Sim, farei o que for necessário para lhe ajudar. — a confirmação daquela promessa foi marcada deixando uma nova runa no corpo do Seraf, que subiu por sua costela esquerda no lugar onde devia ser o coração humano, marcada na pele com o Fogo Celestial, o queimando. A criança do outro lado arfou e olhou para baixo, para si mesma.
— Qual o problema?
— Dói! — falou com olhos lacrimejantes. Ele tocava as costelas, exatamente no mesmo lugar em que o anjo fora marcado.
— Deite-se, mostre-me o que dói.
O humano obedeceu e deitou-se no colchão fino e precário, estendendo as pernas e erguendo a blusa na altura do peito. O anjo sentiu-se estremecer, suas asas querendo se soltar de seu cativeiro e agitaram-se nervosamente demostrando seu descontentamento para com seu dono. Exatamente no mesmo lugar, e com o mesmo alinhamento, jazia uma marca, como um sinal de nascença que jamais devia ter sido marcado ali, na pele queimada do sol do humano, marrom mais escuro que sua pele maltratada. Linhas se enrolavam e traçavam delicadamente os ossos saltados formando uma runa; o significado muito claro. O humano acabara de ser marcado com a Língua dos Anjos, e o nome que o marcava era “שטךאוס”. (Straussziër)
Strauss piscou; não sabia o que dizer ou fazer, por quê, na verdade, aquilo jamais acontecera antes e não sabia o que aconteceria a nem um dos dois, tudo o que sabia era que sentia a conexão que se formara entre seu ser e o daquele mortal. Até mesmo a fragilidade dele e sua frágil linha de vida, quase como se, de repente, ficasse mais consciente daquilo, assim como sentia um pouco de sua vitalidade e poder correndo nas veias da criança, sendo recarregadas a cada vez que o sangue passava pela recém formada marca com seu nome.
O anjo olhou para baixo e aquelas íris verdes, belas demais, intensas demais para um mero mortal e para uma criança, iluminaram as suas íris com seu próprio brilho, verde contra dourado, e aquilo lhe fez ter uma vontade quase humana de permanecer ali, sem quebrar o contato visual, que se prolongou por tantos segundos ao ponto de fazê-lo esquecer-se de seu horário apertado. Sua pele começava a iluminar-se novamente, ficando translúcida como diamantes.
A criança parecia tão sozinha e assustada naquele quarto apertado e escuro. Era como se tal lugar não o merecesse, como se aquele ali não fosse digno de tê-lo vivendo nele e aquilo o revoltava, afinal onde estava a justiça daquele mundo? Acaso era entendido como justiça: fome, trabalho escravo e ainda, abusos? E por que ele, podendo ajudar, lhe era proibido de fazê-lo? Aquele mundo se encontrava tão distante de sua realidade quanto se era possível, ao ponto de colocar dúvidas na cabeça de um anjo, e fazer o ser celeste ficar confuso.
Strauss ergueu a mão e a aproximou do garoto passando os longos e pálidos dedos pelos cabelos negros como aquela noite, seus olhos ainda não haviam se desprendido, e mesmo em silêncio pôde ouvi-lo, mesmo sem que ele jamais houvesse mexido os lábios ou pronunciado aquelas palavras, o anjo ouviu a pergunta silenciosa.
— Como posso lhe contatar? Como vou saber que você é real? Qual o seu nome? — e Strauss, com uma pontada culpada de satisfação, respondeu, também silenciosamente, apenas com os olhos, mas tendo a certeza de que a criança o entendera.
— Strauss, me chamo Strauss, e tu não podes contatar-me. Mas eu estarei olhando para ti.
Strauss não era humano, não tinha temperatura corporal nem devia poder sentir o frio ou o calor, pelo menos pensava assim, mas por algum motivo desconhecido, ao tocar o menino com aquela forma humana, sentiu a temperatura corporal sendo transmitida para a sua mão pelo corpo pequeno e a sensação lhe pareceu bastante confortável, apesar de ser bastante nova para si, já que nunca tivera contato físico antes. Se sua pele não queimasse ao tocá-lo, teria sido algo gratificante de fazê-lo, mas seu instinto natural repeliu a ameaça de impureza e o fez lembrar as diferenças e a distância entre o seu mundo e o daquela criança, o obrigando a afastar-se, o que deixou uma marca vermelha na pele delicada do humano, que já começava a fechar os olhos.
— Eu sabia que vocês existiam… Obrigado!
Strauss o encarou sentindo a tristeza emanada do pequeno e frágil corpo, que já vagava pelo mundo dos sonhos, com a sua ajuda. Os olhos do anjo tornaram a ficar completamente dourados e as runas em sua pele tornaram a acender com luz prateada e o lugar onde tocava a criança, no braço esquerdo, queimou fazendo o humano gemer baixinho pela dor, então ele se ergueu rapidamente se afastando.
A voz de Mik’hail ficava cada vez mais alta e perto, lhe avisando que devia sair dali. Respirando fundo, Strauss ergueu a mão e fechou os olhos pairando-a acima da cabeça do garoto, porém não conseguiu pronunciar as palavras necessárias para tirar-lhe as lembranças, deixando a mercê do tempo fazê-lo acreditar que tudo não passara de um sonho pueril.
Então a voz de Mik’hail ficou forte demais para ser ignorada e com um salto o anjo deixou o quarto do humano, dizendo a si mesmo que jamais retornaria aquele lugar. Ao chegar a rua, seus pés deixaram no chão outras duas marcas, buracos profundos e enegrecidos, sua real forma já completa novamente.
Enquanto o anjo se afastava da casa indo em direção à seu irmão, que já podia ser visto a uma distância de 10 km dali, não pôde evitar olhar para trás e antes que fosse tarde demais, fechou os olhos e com uma única ordem mudou e reescreveu o futuro da criança, providenciando uma boa família para o adotar, bons amigos para lhe acompanhar e uma forma de o vigiar. Afinal, sentia um carinho quase paterno pelo pequeno.
O Melahim sabia que não devia, mas sem perceber, até mesmo já imaginava em sua mente uma forma de voltar para vigiá-lo de perto, e esperava ser em um futuro não muito distante.
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