Ai No Kusabi - The Space Between - Capítulo 3
A favela é um monstro que devora a alma dos jovens e cospe os ossos.
Alguém deve ter dito isso uma vez ou outra, pois todos os moradores da Área 9 sabiam por experiência própria que era a mais pura verdade. No entanto, aqueles que tentaram sair das favelas foram recebidos com um desprezo profundamente enraizado e uma inveja mais mordaz do que um homem comum poderia imaginar.
Apodrecendo aos poucos sem que ninguém viesse ao seu socorro, os vagabundos envelheciam — pois não lhes restava nada além de envelhecer — não tinham sonhos para consumar. Isso não era necessariamente bom ou ruim. A realidade do dia a dia, que era sua única herança, era pior do que comer areia.
No entanto, eles despejaram insultos caluniosos sobre aqueles que tentavam destruir essa realidade dolorosa, uma reação que impiedosamente corroeu a alma. Esse era o dilema.
Um homem não pode voar sem sonhos, mas um homem que nunca voou nunca conheceu o medo de cair. Qualquer esperança de progresso foi abandonada. Embora essa verdade não estivesse escondida de ninguém, essas pessoas cortavam suas asas e as jogavam fora, dizendo que, se não o fizessem, certamente morreriam.
A realidade que formava as “paredes” das favelas era tão densa e a escuridão tão negra assim.
Consequentemente, aqueles que ousavam desafiar aquelas paredes, mesmo sabendo que seriam derrubados, eram ironicamente chamados de “marcianos”, em homenagem ao deus romano da guerra, Marte. Bebendo até a depravação em acessos de autopiedade, aqueles que se escondiam atrás dessas palavras sabiam que os sapatos desses “marcianos” nunca serviriam para eles.
Riki uma vez disse a mesma coisa várias vezes, como uma frase de estimação. Ele expressou seus verdadeiros pensamentos apenas para Guy, o parceiro que era sua “cara metade”. Algum dia eu vou dar adeus às favelas.
Até então, todos que expressaram os mesmos sentimentos e deixaram as favelas para trás voltaram com o ânimo e os ombros caídos depois de apenas um mês. Mas sem um pingo de medo, Riki colocou convicção em suas palavras e olhou para o futuro.
Algum dia. Com certeza.
Quatro anos antes.
Três meses haviam se passado desde que Bison tinha se separado inesperadamente como um avião se desintegrando no ar. Tarde da noite, Riki cambaleou para a casa de Guy.
— Ei, você está bem?
Assim que abriu a porta, Guy notou o hálito carregado de álcool e teve que se virar. Mesmo que bebesse, Riki não exagerava, mas naquele momento, ele cheirava como alguém que tomou banho de álcool.
Ver Riki nesse estado despertou em Guy um alto grau de ansiedade. Antes mesmo de convidá-lo para entrar, Guy deliberadamente b franziu as sobrancelhas.
— Riki, o que está acontecendo?
Claramente não dando a mínima para sua própria condição, Riki se inclinou para frente, cambaleante, os cantos de sua boca se erguendo.
— Um presentinho. — disse ele, pressionando algo contra o peito de Guy.
Guy tinha ouvido os rumores, mas quando se tratava de uma imitação, para não mencionar o original, aquela marca de cerveja preta ostentava preços astronômicos que nem mesmo Deus poderia pagar. Ele engoliu em seco.
— Onde você conseguiu isso? — perguntou com a voz rouca.
Riki riu com um sorriso reprimido. Poderia ser a original, ou uma imitação caseira de algum lugar decadente. Olhando para os lábios frouxos e boca desleixada de Riki, Guy não conseguia entender o que ele estava pensando. Como se quisesse cortar sua ansiedade pela raiz, ele falou com cuidado.
— Você certamente parece de bom humor. O quê, ficou rico?
Ele sentiu o cheiro suavemente. Riki se jogou na cama como se fosse o dono do lugar e murmurou:
— Sim, algo assim. — Ele ergueu os olhos pesados e turvos e bufou pelo nariz. — Ainda assim, o Roget Renna Vartan* também é impressionante.
— Isso é algum tipo de piada?
— Huh? Acabei de receber uma safra rara que você não poderia nem imaginar pedir em oração e queria compartilhar a alegria. Merda, você não está insinuando que eu roubei, está?
Com isso, Riki torceu seu corpo e riu, sua voz se aproximando de um grito. Guy não tinha certeza se a risada alta poderia ser atribuída à bebida, ou a mania de desprezo sóbrio e muito frio, e ele não conseguiu reprimir uma sensação crescente de que algo estava para acontecer.
Se sua memória não estava errada, aquela era provavelmente a primeira vez em muito tempo que Riki fazia uma fortuna na noite de Midas. Isso era o que dizia sua mudança repentina de aparência.
Guy enfiou as mãos nos bolsos de Riki e os encontrou cheios de cartões de crédito pré-pagos.
— Você já tem mais do que suficiente, certo? Vamos sair daqui antes que aconteça o pior.
Riki respondeu com um chute brincalhão na bunda de Guy.
— A sorte está me amando já faz tempo e está com tudo esta noite. Em um momento como este, é apenas boas maneiras retribuir da mesma forma. Você vai embora, Guy. Eu estou pronto para outra rodada.
Riki riu sem medo e desapareceu na multidão. Essa foi a última vez que Guy o viu naquele dia.
Na época, Guy não estava particularmente preocupado. Apesar de se arriscar bastante, Riki ainda era a última pessoa a tentar fazer algum truque idiota. Guy tinha certeza de que ele estava de tão bom humor que tinha achado algum lugar para beber a noite toda.
Mas quando Guy pensava nisso agora, aquela noite tinha sido o início de algo — algo havia acontecido naquela noite, mas Riki não mostrou a menor vontade de lhe contar o quê.
Um mês depois, Riki soltou a bomba: “Cara, estou saindo da Bison”.
Antigamente, antes de se tornar o rei nas favelas, Bison havia sido formada para proteger um bando de recém-chegados que não gostavam de estar sob o comando de ninguém e não tinham conexões nas colônias de serem comidos vivos por velhos canalhas e astutos.
Os poderosos se banqueteavam com os fracos. Essa era a lógica dolorosamente transparente do poder nas favelas. Os fortes herdaram a terra — como não poderiam?
Aqueles que prevaleceram e avançaram para a próxima rodada na luta pela existência ganharam o direito de proclamar em voz alta sua própria justiça. Não havia espaço para chorões e bajuladores. Não confie em ninguém. Para o bem ou para o mal, aqueles que não conseguissem conquistar seu próprio lugar no mundo seriam destruídos.
Melhor se tornar forte e evitar se ferrar. Essa era a regra das favelas. Mesmo que fracos individualmente, um grande poder surgiu da combinação de muitos como um só. Se aqueles que individualmente ficariam na miséria reunissem seus recursos e trabalhassem juntos, poderiam sobreviver. Riki se tornou o catalisador, o pivô que fez isso acontecer.
“Se esconder e evitar riscos não garante nada.” Essa tinha sido a política rígida de Riki desde seus dias no orfanato Guardian.
Mas Riki também disse: “Isso não significa que eu tenha a menor intenção de receber críticas de completos estranhos”. Além de finalmente decidir se tornar — por pura necessidade — o líder de fato da Bison, ele não tinha nenhum desejo particular pelo cargo nem qualquer apego a ele.
Ele simplesmente não podia tolerar pessoas tentando torcer seu braço, pessoas usando luvas de pelica para esconder os punhos de ferro. Ou os bajuladores irritantes e incómodos. Ou os vigaristas que compraram sua salvação às custas dos outros.
A afeição que os assistentes de Riki tinham por ele queimava com uma chama branca e quente, mas com a única exceção de Guy, os olhos negros de Riki nunca brilhavam com igual devoção por eles. Apesar disso, a presença de Riki era encantadora e despertava neles uma espécie de euforia.
E então Guy, Sid e Luke, por causa dele, Norris, atrelaram suas sortes a Riki e formaram os pilares que sustentavam o trono de seu carisma. Eles tinham seus próprios desejos. Eles sonharam seus próprios sonhos. E eles aspiravam a despachar a oposição e se tornar o líder nas favelas também.
Mas uma vez que Riki abdicou, por qualquer que tenha sido o motivo, ninguém quis se tornar seu sucessor, e é por isso que Bison se desintegrou. Enquanto os espectadores olhavam com espanto, ela desapareceu naquela noite sem nenhuma luta.
Não é ele aquele que corre para onde os anjos temem pisar? As favelas estavam falando, e do jeito que os rumores invejosos estavam circulando, acreditava-se que ele realmente estava ali pelo dinheiro. Pouco tempo depois, quando todos começavam a duvidar de que veriam seu rosto novamente, ele apareceu de repente com uma caixa de bebidas caras, do tipo que as favelas nunca tinham visto antes.
Enquanto enfrentava toda a comoção com um grande sorriso, não se importou nem um pouco com os olhares de inveja e ciúme que recebeu. Longe disso. Guy e os outros pensaram ter detectado algo indecifrável nos olhos negros de Riki, a intensidade de uma fome voraz e insaciável.
Não só Guy e os outros, mas todos nas favelas queriam saber a fonte de sua riqueza.
“Ei, Riki. Você não está comendo na mão de um desses riquinhos, está?”
“Impossível. Você acha que há alguém que consiga amordaçar um garanhão selvagem como Riki?”
“Então, qual é a verdadeira história?”
O sarcasmo pungente e as piadas farpadas estavam nos seus interrogatórios, mas Riki não fez nenhum outro esforço para se defender a não ser as respostas vagas e evasivas.
Eles não o pressionaram mais do que isso. Mesmo quando eles não estavam mais juntos 24 horas por dia, 7 dias por semana, Riki ainda era o mesmo velho Riki, e por isso não provocava mais do que sua cota esperada de antipatia e ciúme.
Não, não era isso.
Seus notáveis cabelos negros e olhos de obsidiana, junto com a aura vívida selada dentro de seus membros flexíveis, tornaram-se mais intensos. Riki estava livre dos grilhões que a Bison havia se tornado, e as pessoas até pensavam que ele havia recuperado um pouco do brilho de sua verdadeira natureza.
Ninguém colocou esses pensamentos em palavras, mas eles perceberam que a desigualdade entre eles e Riki havia se tornado gritante. Eles semi-inconscientemente se mantiveram sob controle para que toda a sua inveja de merda não acabasse distorcendo sua visão da vida e não partisse em duas as correntes que os uniam a Riki.
Guy não podia deixar de se preocupar. Não como membro da Bison, mas como parceiro de Riki, constantemente ao seu lado.
— Ei, Riki. Sério, você não quer se arriscar assim.
— Por que diabos você está me olhando assim, de repente?
— Não tente me enganar. Me responda!
Guy se inquietou porque queria ser o pilar de Riki. Era isso que ele queria, e era assim que ele esperava que as coisas continuassem a ser. Mas então de onde vinha aquela estranha sensação de irritação? Ou a ilusão de que os laços que ligavam Riki a ele estavam se desfazendo pouco a pouco? Ou que Riki nem estava ciente de sua crescente inquietação?
Riki suspirou profundamente e falou em voz baixa.
— Sabe, Guy, não é todos os dias que há oportunidades batendo à nossa porta. Especialmente para caras como nós, de vermos a luz do dia. — Ele estreitou seus olhos negros ligeiramente, olhos impregnados de álcool. — Aquela cerveja preta que eu trouxe, eu ia fazê-la durar mais, mas cansei dos boatos de merda que criaram por isso.
Ele calmamente falou o que pensava sobre as coisas que estava guardado dentro de si.
— Se vou ter os mesmos velhos sonhos, quero um show muito bom. Ficar sentado chupando o dedo e um olhar melancólico no rosto até o fim dos meus dias é um desperdício. Nós dois conhecemos toneladas de caras assim. Não é? — Ele sabia sobre o que ele estava falando. — Cara, eu odeio isso aqui. Se eu ficar assim para sempre, vou apodrecer de dentro para fora. É o suficiente para me dar a porra de arrepios.
Ele conhecia o peso da realidade.
Ele sabia tudo por dentro e por fora.
— Vou cair fora daqui e ver por mim mesmo —, disse ele em voz alta, como se demonstrasse a força de sua vontade inabalável.
Guy não sabia o que tinha levado Riki a esses extremos. Riki havia descoberto algo sobre seu lugar no mundo, mas Guy nunca o pressionou sobre isso, talvez porque temesse que isso rompesse o vínculo que compartilhavam. Então ele simplesmente deu um breve aceno. “Sim claro-“
Seus lábios foram cortados levemente por um espinho invisível que estava preso em sua garganta.
Midas. Área 9. Ceres. Essas ruelas já tiveram um passado, mas não possuíam futuro.
Nada geograficamente separava Ceres e Midas. Mesmo que Ceres e Midas compartilhassem a mesma terra e o mesmo céu, aconteceu que Ceres não compartilhavam a mesma carteira de identidade dos cidadãos de Midas. E foi apenas essa diferença que fez as favelas de Ceres e Midas galáxias à parte.
Não foi o agrupamento de criminosos e vagabundos que deu origem a esse monte de lixo característico nas favelas. O lote conhecido como Área 9 não existia em nenhum mapa ou cartão de registro de nenhum morador de Midas, e assim era, desde que se lembrava.
O que era desconhecido gerou uma discórdia que estava fora de vista, mas não fora de suas mentes. Ceres servia como um lembrete constante para os cidadãos de Midas, latejando nos cantos dos olhos, disciplinando suas ações como a ameaça de um ferro em brasa.
Presos no corpo e no espírito, a vida dos moradores do Distrito do Prazer estava longe de ser agradável. Acorrentados pela herança ao sistema de classes conhecido como “Zein”, eles não eram livres para escolher ocupações em desrespeito às diferenças de classe. Eles também não eram livres para amar quem queriam amar.
No entanto, em vez de causar problemas ou contrariar o estabelecimento e perder suas carteiras de identidade, todos sabiam que o melhor caminho era seguir as regras e manter a boca fechada. O lixo desprezado que era Ceres estava bem ali na frente deles, morando nas favelas, muito baixo para alcançar e agarrar suas próprias botas, muito menos se erguer sobre elas.
A existência das profundezas inferiores pairando perpetuamente nas periferias de sua visão servia como uma pronta confirmação de seus próprios sentimentos de superioridade e repulsa.
Para os cidadãos de Midas, sua maior humilhação não eram as restrições invasivas à sua fala e conduta, nem a indignação dirigida a qualquer flagrante abuso de seus direitos humanos. Era o pensamento de ser despido e despejado em Ceres.
Viver em Ceres era deixar de ser um ser humano.
O fato estava impresso nos nódulos bases de seus cérebros e permeava cada célula de seus corpos. Foi o aviso da própria Midas exposto, para que eles não cometessem o mesmo erro duas vezes.
Uma revolta irrompeu em Midas, uma vez que ameaçou derrubar a ordem estabelecida. As cadeias de controle e correntes impostas pelo overlord digital foram rompidas. Os revolucionários que buscavam trazer uma nova ordem baseada na busca da liberdade e da dignidade humana ocuparam a Área 9 com o objetivo de alcançar a independência.
“Esta não é uma revolução, mas uma reforma”, declararam.
“A era em que os homens servem e se submetem às máquinas acabou.”
Mas quando, de onde e como eles se abasteceriam com o capital e os materiais necessários para o empreendimento, juntamente com o intelecto e as informações necessários para desafiar não Midas, mas Tanagura, diretamente? Na Área 9 eles só tinham acesso aos recursos humanos e materiais pertencentes a um povo acostumado a uma existência sitiada pelo inimigo.
Os revolucionários acreditavam que ninguém devia ser forçado. Não deveria haver distinções entre alto e baixo. A expectativa era que todos fossem tratados igualmente como indivíduos. Ceres iria se tornar esse tipo de utopia.
“Retirem suas algemas! Exijam a verdadeira liberdade!” foi o grito de guerra que eles levantaram. Prometendo um renascimento dos direitos humanos e não mudando nem um centímetro em suas convicções, seu poder e paixão eram surpreendentes.
Como uma fogueira furiosa, as faíscas voando da Área 9 provocaram conflitos em outras áreas. As emoções há muito reprimidas e latentes explodiram em chamas. Os rancores e ressentimentos armazenados até este momento foram expressos com amplas sabotagens. Todos os cantos e recantos fervilhavam de críticas abertas ao “sistema”.
Desde o início, os funcionários do governo da Midas minimizaram a gravidade das crises. “Eles não vão durar dez dias.” Mas, eventualmente, eles foram vítimas dos efeitos da revolução quando o tráfego de clientes secou, e eles foram finalmente forçados a aceitar a gravidade da situação.
Talvez eles estivessem vagamente conscientes das sombras bruxuleantes dos aliados da Comunidade espreitando atrás dos líderes que ousaram ir contra o “sistema”. Embora seus corações estivessem agitados em uma tempestade de indignação, pelo menos na superfície eles não tentaram forçar a questão.
O resultado foi que, em vez de combater com força bruta e erradicar a Área 9, Midas simplesmente anunciou que seus registros residenciais seriam excluídos. Naquele dia, os gritos de alegria ecoaram por Ceres. Vitória! Eles tinham feito isso!
Foi quase uma decepção que o anúncio de Midas fosse tão nobre, e alguns trocaram olhares duvidosos. Mas tais dúvidas se perderam nos gritos de vitória, nas palmadas nas costas e na exuberância bêbada. Sem um único sacrifício — sem uma única perda de vida — eles conquistaram seus direitos, sua liberdade e sua independência. Isso era algo de que eles poderiam se orgulhar.
No entanto, no final, eles ficaram se perguntando: O que realmente ganhamos? E: Por que Midas foi tão rápida em reconhecer a independência de Ceres?
A excitação da vitória logo diminuiu, e os revolucionários contaram os dias e meses e começaram a pensar nas coisas. Eles haviam escapado do domínio de Midas, mas agora estavam cara a cara com as exigências de sua própria existência. A dureza de uma realidade que até então não era nem uma invenção em sua imaginação começou a se revelar.
Ninguém que vem aqui será rejeitado. Esse era o artigo de fé deles.
Junto com seus compatriotas oprimidos, junto com pessoas que pensam da mesma forma, eles construiriam o futuro juntos. Sim, eles eram tão ingênuos. A ajuda clandestina da Comunidade foi necessária para sua independência, e talvez eles não tivessem percebido completamente o que significava ficar sem ela.
É claro que eles estavam gratos pela ajuda oferecida gratuitamente por seus apoiadores da Comunidade para levantar a bandeira dos direitos humanos. Mas nunca lhes ocorreu que seu próprio propósito, de quebrar o domínio de Tanagura, a “cidade metálica” manchada pelo veneno corruptor de Midas, estava sendo derrubado pelas ações lisonjeiras e palavras provocativas da Comunidade.
Como resultado, antes que pudessem estabelecer seu “sistema ideal”, eles foram invadidos por aqueles enfeitiçados com a ideia de Ceres ser “livre”. A grande maioria deles chegou sem convicções firmes que sustentassem suas crenças. Apenas a esperança de que indo a Ceres “algo” mudaria, que “algo” aconteceria.
Se alguém quisesse liderar, teria que entender quão profundamente jovens eles eram. Ignorantes. Fugindo com uma imagem de perfeição em suas cabeças, eles estavam cegos para a realidade fria e dura a seus pés. Sua falha fatal era a falta de um líder que pudesse tomar decisões com firmeza, sem segundas intenções, sem se perder em suas emoções.
A primeira realidade lançada em Ceres foi o caos. Em seguida veio:
“Isso não é o que você prometeu!”
E: “O que eu ganho com isso?”
E: “Eu não vou fazer um trabalho de merda como esse!”
E assim o descontentamento individual e os resmungos continuaram. Eventualmente, a impaciência com as coisas não sendo como imaginado foi substituída pela irritação com as coisas não saindo como eles esperavam.
“Liberdade sem algemas” não significava fazer o que uma pessoa quisesse sem interferência externa. Para tomar as rédeas da liberdade, era necessário respeitar o estado de direito e cooperar. Caso contrário, uma pessoa poderia gritar “liberdade” até que ficasse azul e seus ideais permaneceriam sonhos inúteis.
A independência de uma regra imprevisível da multidão era independência sem sentido. Para que a liberdade duramente conquistada criasse raízes, eram necessários tempo e paciência. Eles eram um grupo simples e deveriam ter aprendido a mais importante dessas lições através de suas experiências. Se tivessem, as circunstâncias poderiam ter mudado para melhor.
Mas enquanto os chamados ativistas “profissionais”, a Comunidade, estava apoiando a causa da liberdade, em Ceres, onde suas tempestades estavam acalmando e as febres diminuindo rapidamente, eles ainda permaneciam estranhos e estrangeiros um para o outro. Eles receberam independência de Midas, mas a execução de seu plano original encontrou uma série de rachaduras, deixando Ceres num estado de profunda angústia.
No entanto, por pior que as coisas chegassem lá, seus pensamentos sem dúvida foram acalmados pelo fato de que pelo menos tinham um lugar para onde voltar para casa.
Midas começou a minar este orgulho e o povo de Ceres começou a aprender o verdadeiro custo da liberdade. Midas não levantou objeções àqueles que desejavam se estabelecer em Ceres, e agora Midas recusava sua repatriação alegando que seus registros de residência haviam sido destruídos e não existiam mais.
A porta não estava completamente fechada para eles, embora sempre houvesse a ameaça de que tentariam derrubar o sistema uma segunda vez. Para aqueles que desejavam, Midas foi clara ao empregar técnicas de lavagem cerebral como “ajuste de memória” entre outros.
O ponto principal era salvar cara a cara com a Comunidade como a cidade satélite de Tanagura. Midas não hesitou em punir. A Área 9 foi cercada por sensores e isolada, de tal forma que nem mesmo um rato poderia atravessar sem ser detectado por Ceres.
Essas medidas serviram como avisos adicionais aos cidadãos de Midas.
Os sonhos da revolução foram quebrados, os ombros dos revolucionários se curvaram e seus corações ficaram pesados. Não havia como contornar, passar ou atravessar essa parede de rejeição maciça. Eles definharam em Ceres, arrastando os pés, cambaleando sob o peso do arrependimento e do desespero.
Bem debaixo de seus narizes estava Midas, vestido com suas vistosas vestes de néon dia e noite. A prostituta tentou seus corações, mas nunca os convidaria de volta para dentro da cidadela.
Eventualmente, as marés de letargia corroeram os resquícios da alma como uma doença terminal rastejando pela medula de Ceres, tijolo por tijolo. Mesmo quando as eras mudaram e as cercas dos sensores foram removidas, não deu sinais de melhora. Ao longo dos anos, a doença havia se infiltrado nas favelas em degeneração.
Riki partiu plenamente consciente do passado, mas com os olhos fixos no futuro. Quando ele deixou Guy, ele fez um voto. “Apenas um perdedor olha para trás.”
Mas então uma noite, três anos depois que Riki deixou as favelas (ou melhor, desapareceu da presença de Guy), ele voltou de repente. Guy foi pego totalmente desprevenido e só conseguiu ficar ali, com os olhos arregalados, gaguejando, incapaz de juntar duas palavras.
— Bom, você parece estar indo bem.
Riki abriu seu sorriso familiar. Ele havia ganhado alguns centímetros, amadurecido o suficiente para parecer quase uma pessoa completamente diferente. Sua intensidade antes crua, havia diminuído visivelmente e seus membros esbeltos estavam limpos e em forma. Mas foram seus olhos que impressionaram Guy, que estavam sóbrios a ponto de parecerem frígido.
— Riki… é realmente você? — Guy perguntou. Ele tinha que saber com certeza.
Seus ex-companheiros estavam energizados de maneiras boas e ruins com o retorno de Riki às favelas. De uma forma ou de outra, todos queriam dar uma olhada no vazio daqueles três anos perdidos. Desnecessário seria dizer que não demorou muito para que a atenção de todos os olhos nas favelas se concentrasse como raios laser nele.
Correu a notícia de que o “Carisma” das favelas havia voltado com o rabo entre as pernas. Todo tipo de insultos foi falado pelas costas dele.
“Bem-feito!”
“Não voltou com honra, isso é claro.”
“Uma vergonha viver em tamanha desgraça.”
Todos apontaram dedos e riram dele com desprezo. Quando o nome “Bison” conquistou o mundo, Riki era a flor rara e inatingível que havia confiado seu coração a um único parceiro. Mesmo depois de cair em desgraça, essa flor que desabrochou no pântano da favela ainda era um lótus.
A flor inesperadamente caiu no chão a seus pés. E em vez de pegá-la e amá-la, eles preferiam pisoteá-la na lama. Muitos se tornaram escravos desse tipo de prazer perverso.
E ainda assim Riki mordida a língua e não respondia de volta, apesar de quanto escárnio lhe foi mostrado. Não importava o quão descaradamente ele era provocado. Não houve efeito algum sobre ele.
Os membros da Bison não estavam imunes a essa sensação frustrante de serenidade, essa virada de rosto para todos os ataques sem estremecer. O homem que se esgueirava de volta para as favelas com seus sonhos desfeitos pelo menos arrastou todos os seus sentimentos articulados e latentes para outro lugar por um tempo.
Tais eram os frutos intragáveis da desesperança, os espasmos dolorosos do autodesprezo e, ainda por cima, as nuvens escuras da loucura reunindo-se nas profundezas do desespero. A prática comum era se afogar em drogas e álcool, selar-se dentro da casca de si mesmo e fugir das visões do passado escapando brevemente para aquele sonho acordado.
Mas Riki havia mudado. Desapareceu aquela intensidade incandescente que uma vez queimou tudo o que tocou. Longe disso. Agora, seus olhos pareciam apenas olhar para o resto deles. E havia a maneira como ele esvaziava o copo, como se estivesse sempre perdido em seus pensamentos. Havia algo naquela quietude relaxada.
Não havia como Guy discernir o coração do silencioso e taciturno Riki. No entanto, para a afirmação comum de que “é tudo para o melhor”, a transformação de Riki trouxe tantas mudanças profundas e radicais que ele só pôde acenar reflexivamente com a cabeça em concordância.
NOTAS
Roget Renna Vartan: Tipo de cerveja
Publicado por:

minhas outras postagens:
COMENTÁRIOS
Sua Comunidade de Novels BL/GL Aberta para Autores e Tradutores!
AVISO: Novos cadastrados para leitores temporariamente fechados. Se vc for autor ou tradutor, clique aqui, que faremos seu cadastro manualmente.