A Maldição do Lobo Vermelho - Capítulo 24 - As garras do inconsciente
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— Como Dásos está? — Fengari perguntou logo que o ruivo entrou na cabana.
Ílios abaixou a cabeça antes de suspirar:
— Não muito bem…
Apesar da frase curta, o garoto pode perceber algo estranho reverberando pelo timbre rouco. Não era a primeira vez que ouvia essa espécie de eco raspar a garganta do homem e parecia que o “grunhido” estava ficando mais evidente.
— Tente se acalmar… — sussurrou preocupado — ainda temos tempo e…
— Nós temos? — Ílios interrompeu.
O manto negro da noite estava começando a desbotar em fios purpura e uma brisa fria balançava as palhas secas que se desprendiam dos telhados despedaçados. Kardia ainda não havia regressado e o remédio estava no fim, mesmo que o lobo estivesse racionalizando as doses não tinha sobrado o suficiente para a próxima aplicação. Sua última esperança era que aquela mulher cumprisse sua palavra e voltasse a tempo com um pouco do antídoto.
É claro, não era fácil depositar sua confiança em um humano, estava ciente que ela poderia não retornar. Se assim fosse, não teria escolha, precisaria deixar Fengari e Dásos desprotegidos enquanto vasculhava pela floresta, atrás do maldito boto. Só de pensar nessa possibilidade o sangue borbulhava, se alguma coisa acontecesse a algum deles, Netuno e toda a sua prole se arrependeriam amargamente pela afronta.
— Tenho certeza que Kardia está fazendo o seu melhor… — Fengari completou.
— Sim… com toda certeza ele está…
O garoto percebeu quando o rosto do homem ficou sombrio e levantou da cama improvisada:
— Ílios… você está bem?
Ele não respondeu.
O lobo estava no limite há algum tempo e a raiva crescente vinha esticando com força a linha tênue que delimitava a razão. Ele sempre esteve vigilante, a fera que habitava a alma era traiçoeira demais para ser ignorada, mas recentemente, mesmo que se esforçasse em dobro, era difícil não ouvir seus rugidos sedentos.
— Não chegue mais perto… eu não quero te machucar… — o ruivo apertou o punho.
Apesar do ar triste que emoldurava as feições permanecer imutável, seus olhos estavam completamente diferentes de algumas horas atrás. Antes de sair da paliçada, enquanto ainda estavam abraçados, o ruivo despiu a máscara e mostrou o seu lado mais frágil ao garoto. Durante uma hora inteira trocaram poucas palavras, mas muito foi dito. Dentro daquele silêncio caloroso, o coração se incumbiu de dizer o que os lábios nunca poderiam pronunciar.
O sentimento de lealdade e confiança mútua, o laço confortável que os unia, parecia ter se tornado mais forte. Era quase como se as almas pudessem se entender, sem necessidade de explicações ou coisa qualquer. Ao menos era o que Fengari queria acreditar, porém, o homem que encarava o vazio do cômodo ainda tinha muitos segredos que não estava preparado para dividir.
— Ílios… não é sua culpa…
O garoto estendeu a mão, mas os olhos verdes ficaram nublados e sem que tomasse consciência, o ar dentro da pequena moradia tornou-se impossível de respirar. As íris brilhantes refletiam o fogo que queimava a alma e transformava árvores, casas e pessoas em pó. O lobo podia ouvir os gritos desesperados das mães que não veriam mais seus filhos e até mesmo sentir o sangue quente que escorria da espada até o cotovelo.
Quanto mais imaginava a vingança, mais difícil era escapar daquela sensação de euforia, o sadismo próprio daqueles que perseguem, torturam e matam por puro prazer. Esse instinto feral sempre esteve sob controle, por mais que às vezes arranhasse as paredes escuras do coração. Agora, porém, as restrições que infringiu a si mesmo não pareciam suficientes para conter as presas famintas que continuavam tentando rastejar para fora.
A madeira desgastada rangia perigosamente sob o peso extra e Fengari podia sentir as águas do rio se revoltando abaixo dos pés. Ele também não resistiria por muito mais tempo, se não despertasse o ruivo era possível que Dásos e até as pessoas que fugiram para a floresta perecessem.
Forçando os joelhos, manteve as pernas firmes da melhor maneira que pode. Não estava com medo, mas havia uma sensação incômoda na boca do estômago, algo como uma coceira que subia pela garganta e fazia os dentes rangerem. Se agarrando a esse sentimento, cambaleou até o lobo e o abraçou pela cintura:
— Ílios… — as palavras saíram com dificuldade — acorde…
Os olhos esmeralda estavam desfocados e as pupilas negras haviam sobrepujado quase toda a outra cor, o ruivo continuava perdido dentro da própria escuridão, em um lugar onde a voz do garoto não conseguia alcançar. Fengari tentou chamá-lo novamente, mas o nome ficou preso em seus lábios junto com o restante do fôlego.
As pernas moles cederam e a cabeça girou com a vertigem, mas a promessa que fez martelava nos ouvidos. Naquele momento, a sensação que fazia cócegas nas gengivas ficou mais forte e um impulso difícil de controlar abriu caminho pela garganta em chamas. Não deixaria que Ílios ficasse sozinho de novo, mesmo que precisasse passar dos limites para garantir isso.
— Você disse “pra sempre”, SEU IDIOTA! — rosnou agarrando a mão machucada do ruivo — E eu não vou morrer antes de te ensinar a fazer aqueles pães.
Ele não tinha certeza antes, mas vendo as marcas que a bandagem frouxa deixava escapar, não haviam dúvidas, o que aconteceu quando encontraram o boto não foi apenas um pesadelo. Se pudesse lembrar o que Ílios fez para libertá-lo daquele sonho, talvez também pudesse despertar o ruivo dessa ilusão.
— Me desculpe por não ser tão forte… — o garoto sussurrou — mas eu prometo que não vou sair do seu lado!
Um estalo fez com que as lembranças confusas dançassem na frente dos olhos, a memória estava fragmentada e era difícil identificar a partir de que ponto deixou de estar consciente, mas ficou claro o que desencadeou suas ações naquele dia.
Era vergonhoso admitir, mas um pouco antes, enquanto estavam cercados, tudo o que conseguia pensar era na própria miséria. Não queria morrer, é claro, mas mais do que isso, não queria que nada acontecesse ao seu salvador. Podia ser apenas egoísmo de sua parte, mas não estava preparado para perder mais ninguém, não suportaria ter que voltar para o vazio daquela casa.
Quando viu o corte na mão do lobo todo aquele sentimento reprimido simplesmente explodiu em seu coração e uma sede desesperada afastou cada rastro de sanidade da mente. O medo se transformou em raiva e logo depois em algo mais malicioso, um sentimento estranho que misturava excitação com agonia, uma vontade implacável de estraçalhar tudo o que estivesse vivo ao redor.
Kardia e Dásos estavam ocupados demais lutando contra o boto para notar as tentativas de Ílios de controlar a situação. O líder percebeu que algo estava errado antes mesmo que a aura fria se alastrasse e forçou sua presença, disfarçando o cheiro agressivo que impregnava o ar.
Os sons das flechas que voavam sobre a cabeça foram ofuscados pelas batidas fortes do coração de lobo e a batalha que se desenrolava frenética adiante perdeu a cor. A única coisa que Fengari podia ver e sentir era aquele traço escarlate que brilhava como uma alvo no meio da escuridão. Não tentou resistir, no fundo, sabia que já estava viciado pelo sabor doce que fluia nas veias do ruivo.
Era inevitável e por mais que tivesse tentado se enganar e colocar a culpa em um sonho maluco, o aroma e o gosto não saiam de sua cabeça. Desde aquele momento na floresta, ficou claro o que desejava e não era diferente agora, se pudesse ao menos provar, mesmo que algumas gotas, já seria o suficiente para acalmar os instintos.
A expressão confusa do lobo só atiçava essa necessidade e a língua se deleitou com os olhares perplexos que a seguiam. Os dentes foram atraídos como consequência e toda a boca foi preenchida pela sensação macia que pulsava abaixo da pele áspera. Fengari ouviu o ruivo chamar seu nome, mas a reação foi oposta ao esperado, as tentativas de trazer o garoto de volta a razão só fizeram a mente afundar mais rápido na luxúria.
Sentia a vida de Ílios escorrer por sua garganta e o desejo de devorá-lo completamente rugia infame contra as rédeas da sanidade. Estava enlouquecendo, precisava possuí-lo, tragar cada pedaço do seu ser até que não restasse nenhuma parte que pudesse abandoná-lo, em contrapartida, a alma ansiava em protegê-lo.
Os minutos ou horas que se seguiram foram excruciantes, o simples pensar em afrouxar as presas era uma tortura. Os pelos do corpo arrepiavam a cada arfar tenso do lobo, que buscava desesperadamente uma forma de libertar o pequeno do transe. O garoto não queria soltá-lo, mas também precisava fazê-lo e a dualidade de sentimentos o rasgava em dois.
— Está tudo bem… Leve o tempo que precisar, mas volte pra mim.
A voz gentil soou a centímetro de seu ouvido, Fengari não tinha percebido, mas Ílios estava ajoelhado diante dele e com um sorriso sincero esperava paciente. As lágrimas transbordaram junto com o estalo que libertou a mente e na mesma hora um impulso infantil tomou conta de seu corpo.
— Não se preocupe e descanse, eu não vou sair do seu lado.
As doces palavras acabaram de quebrar as correntes e um cansaço sem igual adormeceu a consciência.
Fengari piscou algumas vezes, tentando acostumar os olhos novamente à realidade. Tudo aquilo aconteceu a menos de um dia, mas era como se tivesse acabado de recordar de um passado distante e enevoado. Talvez fosse por isso que a cabeça pesava sobre o pescoço e o corpo não tinha forças para se mexer.
— Então foi assim que aconteceu… — Fengari sorriu — Não podia ser de outra forma vindo de você.
Os dedos vacilaram ao tocar no longo pescoço felpudo, era engraçado como essa sensação era nostálgica. Assim como no dia em que se conheceram, as mãos estavam sujas e o cheiro forte de sangue inebriava tudo ao redor, a diferença era que agora, só havia tristeza naqueles lindos olhos verdes.
— “Está tudo bem… Leve o tempo que precisar, mas volte pra mim” — o garoto se esforçou para que as palavras passassem pelos lábios.
Lágrimas grossas pingaram sobre o ombro dilacerado, misturando-se ao sangue e à saliva. Os longos cílios vermelhos cobriram as íris abissais e as presas deslizaram de forma quase gentil para fora da carne do pequeno.
— Não chore… — Fengari sussurrou — olhe para mim…
Recobrar a razão foi a dádiva mais dolorosa que o lobo já recebeu, o alívio de ouvir a voz do garoto feria a alma e a angústia escorria junto com o sangue pela garganta. Não queria abrir os olhos, na verdade, sentia que jamais seria digno de sequer vislumbrar aquela face amável novamente. Entretanto, não havia como fugir, as consequências brutais de sua incapacidade pingavam sobre a madeira, manchando as tábuas claras de vermelho.
Ílios deu alguns passos para trás e as pupilas dilatadas se contraíram, refletindo a figura que sorria com as mãos estendidas.
— Está tudo bem… — a voz falhou no final.
Fengari cambaleou, tropeçando sobre os próprios pés antes de Ílios ampará-lo. Por mais que tentasse voltar à forma humana, ainda não tinha conseguido domar por inteiro a mente conturbada, o que só adicionava combustível ao desespero. Ele precisava estancar o sangramento do garoto, mas era difícil nesse estado e havia o medo também de que pudesse perder o controle de novo.
Da maneira mais delicada que conseguiu, deitou Fengari no chão e buscou os panos que havia encontrado para ajudar na febre de Dásos. Seu coração batia forte, era difícil olhar para o rosto empalidecido e para o sangue que empapava a roupa surrada do garoto.
— Fen-Fengari… — gaguejou — abra os olhos…
A ansiedade crescia enquanto tentava enrolar as faixas com a boca. O focinho desajeitado e as patas grandes não ajudavam em nada e foi a primeira vez na vida que ele odiou ser um lobo. Por mais que o passado fosse sombrio e que a tribo nunca conseguisse se livrar do preconceito, sempre teve orgulho de quem era, mas agora, daria tudo para ser um humano comum.
— Vamos lá! Por favor!
A voz engasgada acompanhava o choro, enquanto uma nova onda de raiva crescia dentro do peito. As tábuas do piso rangiam sobre as águas agitadas e uma brisa fria levava a poeira junto com os raios de sol para dentro da casa decadente. Era como se o ambiente tentasse alertar sobre a urgência da situação e o corpo se opusesse a cooperar.
— De novo não… Fengari… acorde… eu imploro…
Publicado por:
- GSK
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Escrevendo, desenhando, editando e fazendo mais algumas artes por ai.
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