A Maldição do Lobo Vermelho - Capítulo 23 - Descobertas dolorosas
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A comitiva marchou apressada pelos longos corredores da mansão, acompanhados pelos olhares curiosos e burburinhos animados das mulheres. Kardia estava focado no trajeto e por isso não pode deixar de reparar nas pinturas que decoravam o ambiente, não se assemelhavam com as que viu antes, mas de alguma forma, pareciam fazer parte da mesma história.
Banquetes glamourosos e um gigantesco castelo de vidro que pairava sobre as nuvens ditavam tons azulados aos quadros dessa ala. Diferente do primeiro caminho, que estava pintado em vermelho e preto e mostrava batalhas sem fim, esse parecia retratar o céu ou algo além dele. Por mais contrastantes que fossem, um personagem em comum unia os painéis com sua beleza prateada.
A mesma ave que exterminou exércitos inteiros com suas penas afiadas, observava tranquila os caminhos percorridos pelos homens, empoleirada sobre o parapeito de uma das torres de vidro. Nos próximos quadros, várias criaturas animalescas se reuniam ao redor de uma grande mesa de cristal, que era presidida por um ser contornado de luz. A figura humana só chamou menos atenção de Kardia do que a silhueta rosada na lateral.
— Desprezível — ele resmungou.
— Desculpe? — Nice sussurrou confusa.
— Não é nada. É aquele o lugar?
O comandante apontou com a cabeça a pequena lagoa escondida em meio às flores do pátio reservado. Cintilando através de uma das portas, os aposentos privados de Netuno se desnudavam em uma grande área aberta, iluminada pela lua.
— Sim, a sala de núpcias fica destrancada no dia da cerimônia para que possamos deixá-la preparada para os noivos — Nice respondeu.
Depois de virarem à esquerda, um corredor ainda mais largo levava ao átrio central da mansão. O grande vão iluminado pelo luar estava cheio, os convidados aguardavam ansiosos a noiva que caminhou sozinha sob os arranjos de flores coloridas. Foi a primeira vez que Kardia viu Netuno vestido e por algum motivo isso o surpreendeu.
— Então você sabe para que servem as roupas, hã? — provocou.
— Você gostou? — O boto sorriu convencido.
Mirrado apenas revirou os olhos, ao contrário de Netuno que usava calças, blusa e sapatos brancos, Kardia caminhava descalço sobre a trilha de pedras. O vestido vermelho foi adaptado em uma túnica de mangas longas, mas apesar das provocantes fendas laterais terem sido costuradas, o decote superior ficou mais ousado e revelava boa parte do peitoral musculoso.
Nice insistiu e ele acabou cedendo, trocando o xale preto pelo tecido vinho que fazia seus olhos brilharem em um azul profundo. O rosto pálido era contornado pela franja e algumas mechas acobreadas que pendiam do coque frouxo. Como sinal do compromisso, um quartzo rosa amarrava o final da trança fina que descia sobre o ombro esquerdo, imitando o penteado do noivo.
— Você está deslumbrante, Kardia — Netuno sorriu — então… essa é a beleza capaz de conquistar os deuses… Eu entendo agora.
— Pare de baboseiras e me entregue logo o antídoto — Mirrado rosnou.
— Eu irei, depois da cerimônia… — se aproximou sussurrando — Em nosso quarto de núpcias…
Se Kardia pudesse, teria esfolado o homem ali mesmo, mas precisava do remédio antes de dar vida a todas as formas de tortura que tinha imaginado. Assim, engoliu mais uma vez o ódio, cruzando os braços para que não cometesse um ato involuntário.
— Que seja, ande logo com isso. O sol já vai nascer — grunhiu.
— Ah! Se eu soubesse que minha Pitanguinha estava tão ansiosa para ficar a sós comigo, teria cuidado disso antes!
Um estalo agudo ecoou das profundezas da consciência do comandante, a linha tênue entre a razão e a insanidade foi esticada ao limite, um sorriso pretensioso ou apenas um olhar indecente de Netuno seriam o bastante para o lobo despedaçá-lo e entregar a vida de Dásos as almas perdidas.
Nice deve ter ouvido o estalido e apareceu diante do casal com um cálice prateado:
— É chegada a hora! — falou em voz alta — Os primeiros raios de sol serão testemunhas desta união e de boa vontade, derramarão sobre os noivos as bênçãos do novo dia. Senhor…
Ela entregou a taça a Netuno que tomou um gole generoso do líquido escuro:
— Eu recebo as bênçãos da prosperidade e diante dos deuses te faço meu.
Ele pegou a mão direita de Kardia e a beijou antes de entregar o objeto.
— Você se lembra dos votos… certo? — Nice perguntou ao comandante.
— Eu recebo as bênçãos da fertilidade e diante dos deuses te faço meu — Mirrado vomitou as palavras como se estivesse cometendo a maior das blasfêmias.
Os olhos azuis brilhavam como lâminas afiadas enquanto encarava o homem sorridente. O ruivo encostou o cálice nos lábios, entregando a taça logo depois para a mulher que observava preocupada. Mesmo com a expressão contorcida pelo desgosto, o rosto bonito não deixava de atrair todas as atenções, ele era como uma pintura que ganhava vida com as cores quentes emanadas pelo sol.
De qualquer forma, ninguém pareceu notar o ardil e Nice se apressou em finalizar o casamento antes que o autocontrole do homem ruísse de vez.
Depois do sermão e das bênçãos finais, os aplausos ecoaram de todas as direções embalando a chuva de pétalas que coloriam a grama verde. Com exceção do comandante, todos pareciam muito felizes com o banquete que estava por vir. O mestre costumava ficar ainda mais generoso durante as núpcias e desde que ninguém o interrompesse, as comemorações poderiam se estender por noites a fio.
— Ah! Finalmente! — Netuno acariciou o maxilar tenso de Kardia. — Mal posso esperar pelo o que está por vir…
Mirrado sorriu dissimulado:
— Nem eu. Então vamos logo!
Ele agarrou a mão do boto e o puxou para os aposentos do casal, arrancando mais aplausos e assobios dos convidados.
— Calma Pitanguinha! Eu sei que você está com pressa, mas eu deveria te carregar até lá! — a voz melosa estava cheia de segundas intenções.
Veias grossas saltaram sobre as têmporas avermelhadas, o ruivo está perto do limite e por isso apertou com mais força o punho, apressando os passos:
— Faça isso… e eu juro… você não verá o sol se pôr.
O rosto de Netuno se iluminou com um sorriso lascivo, adicionando um tom rosado às bochechas escuras. Essa aura agressiva que o comandante emanava sem perceber enlouquecia os instintos depravados do boto, foi assim desde a primeira vez que se viram e ficava mais evidente a cada momento que passavam juntos.
— Você é realmente especial, Kardia — ele sussurrou ao passar pelas portas abertas do pátio privado.
Mirrado murmurou alguns xingamentos indescritíveis após fechá-las. Havia praticamente jogado Netuno ali dentro e sua paciência já estava no fim, com toda certeza, aturar o pervertido era mais difícil do que tinha planejado.
— Ah, Dásos… — arfou — você não faz ideia do quanto vai ficar me devendo…
Sorrateiro, o boto esgueirou os braços até a cintura do comandante, o envolvendo em um abraço apertado pelas costas.
— Não fale de outros homens na minha presença… — Ele encostou os lábios na orelha do outro. — Eu fico com ciúmes…
Kardia foi pego de surpresa, seu corpo congelou em pânico e logo depois ferveu com ódio. As mãos correram até a cintura, mas a adaga não estava lá, mesmo que tivesse, não era a hora de usá-la. Ele desejava torturar o maldito com as próprias mãos até que implorasse pela morte.
— Me… entregue… o… antídoto… — falou entre dentes.
— Ah… — Netuno suspirou — você gosta mesmo daquele lobinho, não é?
O boto podia sentir a respiração do comandante ficando mais pesada, seu coração batia forte e os músculos estavam prontos para reagir, mas ele não se moveu. Não era essa a atitude que Netuno esperava e a decepção o atiçou. Aproveitando o assunto, resolveu provocá-lo um pouco mais. Com a ponta do nariz, traçou uma linha que descia da orelha até o ombro esquerdo do ruivo e enquanto falava, fazia o caminho inverso, beijando de leve a pele exposta.
— Vejo que não estou errado… mas você não precisa se preocupar tanto… fique comigo… e eu prometo te fazer esquecer de todo o resto…
— Eu cumpri a minha parte — Kardia sibilou — me entregue logo ou não terei mais motivos para te deixar viver.
Com um movimento rápido, Netuno virou o ruivo de frente, sem soltar sua cintura. As costas bateram de leve contra a porta e os rostos se aproximaram.
— Mas é claro, eu sou um homem de palavra. Assim que a nossa união for consumada, lhe entregarei o antídoto.
Os olhos cor de rosa brilhavam intensamente, a ganância e o desejo haviam tomando conta da razão. Ele não queria assustar o outro, mas também não era capaz de controlar o corpo que reagia a cada arfar pesado do comandante. Sua própria respiração estava mais rápida e o coração batia acelerado, até os músculos da perna tremiam em ansiedade.
— O que está acontecendo? — Netuno resmungou abaixando a cabeça.
— Já era hora!
Kardia empurrou o homem que cambaleou sobre a grama. O rosto bonito se contorceu confuso enquanto gotas de suor minavam sobre a testa, não apenas as pernas, mas os braços estavam trêmulos e a garganta seca.
— O que você fez comigo, Pitanguinha? — arfou.
— Estou apenas retribuindo um favor. — sorriu — É melhor me entregar o antídoto agora ou você irá morrer sentindo muuuuita dor…
— Quando você…? O Cálice! — O boto caiu ajoelhado.
— Exatamente! Eu envenenei aquela poção de merda, demorou mais do que eu esperava para fazer efeito, mas agora não tem volta. Ou você me dá o que eu quero ou…
— Ah! Você é mesmo surpreendente! — gargalhou enquanto cuspia um bocado de sangue — Mas isso só me faz te desejar mais!
Kardia grunhiu e avançou sobre o homem caído, puxando-o pelo colarinho da camisa.
— Eu não vou repetir, maldito. Me entregue o remédio ou você vai morrer!
— Se eu morrer… o seu amiguinho também morre… acho que estamos empatados. — sorriu.
— Seu idiota! Só preciso de alguns fios de cabelo e você mesmo vai me contar onde ele está. Enquanto isso, sua saliva nojenta vai me dar algum tempo.
Pela primeira vez, o sorriso largo se encolheu até virar uma linha reta sobre o rosto escuro. Ele não fazia ideia de como um simples lobo tinha conhecimento de uma magia tão poderosa, mas o comandante não parecia estar blefando.
— Mesmo que o encontre… você não vai conseguir escapar dessa mansão. As águas que contornam o castelo estão encantadas… e ainda que eu morra o feitiço não irá se desfazer.
Kardia puxou o boto para mais perto, queria aproveitar ao máximo as expressões angustiadas daquele homem que só sabia zombar dos outros. Sorrindo de forma maliciosa encarou os olhos cor de rosa antes de chamar em voz alta:
— Você conseguiu as ervas que pedi?
Netuno encarou boquiaberto a mulher que deslizou furtiva pela porta. Nice trazia consigo os pertences do comandante além de ervas e alguns vasilhames escondidos em uma cesta com frutas.
— Sim! Estão aqui — disse entregando o objeto.
Kardia revirou a cesta e analisou as folhas com atenção:
— Perfeito! Vou me ocupar com isso aqui, você poderia me fazer o favor de encher essas coisas com esse negócio nojento? — Ele apontou para as conchinhas caídas no chão.
— Claro! — ela respondeu indo até o homem deitado.
— Nice? — Netuno estava chocado. — Porque? Eu confiava inteiramente em você…
— “Porque”? Não me faça rir — ela zombou abrindo a boca do homem — Você me separou da minha família e mesmo que eu tenha implorado por todos esses anos… você nunca me deixou sair dessa prisão.
Kardia se apressou em montar o ritual, mas continuou acompanhando a conversa que acontecia logo atrás.
— Apesar de tudo eu não quero te machucar, então coopere…
Ela empurrou com delicadeza o utensílio arredondado pela língua e bochechas do boto até que estivesse cheio de saliva, depois, com cuidado o fechou e enrolou em um pedaço de tecido.
— Nice… — murmurou — isso te magoou tanto assim? Ficar comigo e com minha família… Eu deixei que algo te faltasse?
— Eu fiz tudo o que você pediu, sempre… e alguma vez você sequer pensou nos meus sentimentos? Alguma vez passou por essa sua cabeça egoísta que eu estava desesperada aguardando o dia em que eu poderia sair e reencontrar meu filho e meu verdadeiro esposo?
— Eu não consigo entender… Porque você preferiria um mero humano a mim? Eu posso te dar tudo que está acima ou abaixo das águas… Saúde, riquezas e quantos filhos você desejar… Porque você não me amaria?
Nice suspirou enquanto empurrava uma nova concha pela boca do homem:
— Eu tenho pena de você, Netuno… Mesmo depois de todos esses casamentos nunca soube o que é o amor…
Kardia engoliu seco, não sabia se deveria estar ouvindo tudo isso, mas também não podia simplesmente ir para outro lugar. De qualquer forma, o ritual estava quase pronto e não demoraria muito mais para escapar dessa situação constrangedora.
— É claro que eu sei o que é o amor… — o boto arfou e a voz saiu estranhamente aguda — como eu poderia não saber se eu amo todas vocês? Veja… vocês são tantas e…
Nice riu alto:
— Você sabe como desejar, provocar e fazer acordos… apenas isso. Para aqueles que não se rendem aos seus joguinhos cretinos, você também sabe como ameaçar, iludir e prender… Isso não é amar… Você não sabe o que esse sentimento significa e é por isso que também nunca será amado.
Netuno tossiu e tentou se levantar, mas o veneno era forte o suficiente para o fazer desistir da ideia, mesmo que não fosse capaz de matá-lo, a dor era excruciante.
— Não é como se eu não tivesse tentando… — murmurou — durante centenas, não, milhares de anos eu estive à procura daquela que me amaria de verdade e me libertaria dessa maldição…
— Me dê alguns fios do cabelo dele, por favor — Kardia interrompeu, estendeu a mão.
— Sim. — Nice puxou uma adaga da cintura.
Netuno encarou a mulher, segurando de leve seu pulso levantado:
— Eu pensei que poderia ser você, Nice… De todas as pessoas daquele povoado… você era a mais leal aos seus sentimentos. Você estava disposta a fazer qualquer coisa por aqueles que amava… Eu acreditei que alguém assim poderia me mostrar o mesmo… Eu só precisava ter paciência até que você esquecesse sua vida antiga…
— Isso só mostra o quão longe você está de entender o que significa… Minha família e eu somos um. Não importa quanto tempo passe, não interessa se eu nunca mais os verei, eu nunca vou deixar de amá-los com todas as minhas forças.
Ela se desvencilhou das mãos do homem e cortou a trança fina que pendia na lateral do rosto atordoado.
— Sabe, Netuno… — Nice acariciou as bochechas escuras. — Eu espero que você encontre o amor e que sofra amargamente por ele até pagar todo o mal que me fez. Depois disso, desejo que se liberte dessa tal maldição e não volte a brincar com a vida das pessoas.
A mulher soltou o rosto triste e entregou o cabelo ao comandante que aguardava paciente. Durante um longo tempo, o silêncio gritou as angústias escondidas naqueles três corações até que Kardia rompeu o véu acinzentado de arrependimentos:
— Nice…
— Eu sei… me desculpe… Já estou indo.
A mulher embrulhou o restante das conchas e as guardou no bolso da túnica, levantando logo depois. Netuno segurou as pontas de seus dedos, em uma súplica muda, mas os passos continuaram firmes até a lagoa escondida entre as flores.
— Então ela descobriu… — murmurou.
— Sim. Ela desconfiou que havia alguma outra passagem e ficou te observando em segredo. Como tinha acesso livre a essa câmara não foi difícil ver você desaparecer por horas depois de entrar lá… E mesmo um peixe fedido igual a você precisa respirar, não é mesmo?
— Verdade, eu preciso. — sorriu — O que farei sem minha esposa?
Kardia deu de ombros:
— Você teve o que mereceu.
— Você tem razão… — Netuno se forçou a sentar. — Não precisa continuar, vou te contar onde o antídoto está.
— E porque eu deveria acreditar em você? — o comandante perguntou desconfiado.
— Porque eu acho que comecei a entender…
Publicado por:
- GSK
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Escrevendo, desenhando, editando e fazendo mais algumas artes por ai.
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