A Maldição do Lobo Vermelho - Capítulo 22 - Cacos de vidro
Mesmo que a noite não estivesse tão fria, o grande lobo vermelho continuava tremendo inconsciente sobre o chão de madeira. A respiração pesada era entrecortada de murmúrios e palavras sem sentido, mas o sangue havia parado de escorrer do focinho. Do outro lado da fogueira, dentro de uma das casas que não foram totalmente destruídas, Fengari permanecia adormecido, alheio às preocupações do ruivo.
— O que foi aquilo? — Ílios acariciou os cabelos negros do garoto.
Antes de partir, Kardia lhe entregou algumas ervas e insistiu que o líder as usasse no ferimento da mão e um outro bocado que deveria ser ingerido por Fengari assim que acordasse. Por mais que não se sentisse envenenado, era melhor prevenir do que remediar, mas pelo pouco que conhecia dos remédios da floresta, as folhas amassadas não cheiravam como os antídotos que Mirrado costumava usar.
Por hora, preferiu ignorar esse pensamento e amarrar o emplasto sobre o machucado, já que olhar para o corte costurado por marcas de dentes o incomodava.
— O que aconteceu…? — o pequeno perguntou confuso.
Fengari piscou e tentou se levantar, mas Ílios o manteve deitado.
— Nós fomos atacados e você acabou desmaiando. Não se preocupe, está tudo bem agora…
— Aí… — resmungou — meu estômago está estranho…
— Aqui… — O ruivo estendeu uma trouxinha de folhas secas. — Mastique isso, vai ajudar, vou pegar alguma coisa para você comer. Espere aqui!
Ele levantou, mas o garoto o segurou pela mão.
— Você está ferido…
— Não é nada, apenas fique quietinho aí, não vou demorar.
Fengari concordou e voltou a deitar depois de colocar o remédio amargo na boca enquanto Ílios atravessava atordoado o limiar de madeira. Se fosse um caso isolado, deixaria passar, mas era a segunda vez que o ruivo era completamente paralisado por essa aura ameaçadora e tinha certeza que os comandantes a sentiram também.
Precisava entender o que estava acontecendo, mas o garoto não parecia lembrar de suas ações ou o que levou a elas. Para piorar, não tinha muita experiência com mestiços, na verdade, haviam poucas pessoas que talvez pudessem ajudar, já que a maioria dos lobos banidos e que se relacionaram com outras tribos foram mortos no passado.
De qualquer forma, a hipótese mais provável era que os instintos de Fengari estivessem fora de controle por falta de treinamento, já que viveu até hoje como um humano comum. Se esse fosse o caso, não era impossível resolver a situação e Ílios sabia como, entretanto, mesmo depois de tantos anos lidando com lobos que preferiram assumir o lado feral, nunca tinha visto olhos tão cobiçosos e uma aura tão esmagadora.
— Parecia até… Não, não, não… — O ruivo balançou a cabeça negando os pensamentos. — Eu devo estar ficando louco… Preciso me acalmar.
Caminhando até o comandante desacordado, se esforçou para aquietar a mente barulhenta. As coisas nem sempre foram fáceis, mas desde que o reino caiu a máscara que usou por tantos anos parecia estar se partindo. A liderança que se esforçou para consolidar, o dever e a preocupação com a alcateia, tudo o que usou para preencher o vazio gelado do coração estava se esvaindo diante dos olhos e ele não tinha forças para lutar contra.
Em todo esse tempo não conseguiu encontrar um rastro sequer de Fídes e agora Kardia também estava desaparecido. Até o seu grande amigo a quem sempre recorreu, estava indefeso, agonizando no chão. Seu povo estava negligenciado e ele não tinha um bom plano para recuperar os domínios dos Guarás, tudo tinha ruído de uma única vez e levado o pouco de confiança que Ílios ainda tinha em si mesmo.
— Acorde logo meu amigo, eu não consigo sem vocês…
Dásos resmungou, como se tentasse confortá-lo e o ruivo não pode deixar de se sentir ainda mais miserável. Esfregando o rosto, seguiu pelos corredores de madeira que estalavam incertos a cada passo, verificando a existência de comida nas poucas casas que ficaram de pé. O odor forte do boto ainda arruinava o ar, prejudicando o olfato sensível, mas a audição aguçada já tinha captado o aproximar cauteloso vindo da floresta.
— Seus passos são leves, mas você precisa aprender a controlar a respiração — Ílios disse sem entusiasmo.
A mulher congelou atrás de uma das árvores que delimitavam o povoado e a mata densa, não esperava ser descoberta tão rápido mas estava disposta a continuar avançando. Após se recuperar do susto, saiu do abrigo e caminhou sem confiança até os destroços das palafitas.
— Eu não vim com más intenções… peço que me escute, por favor.
A voz não estava tão firme quanto a algumas horas atrás, quando liderou o ataque, mas Ílios reconheceu o timbre.
— A não ser que você tenha o antídoto para o veneno, eu não estou interessado.
O lobo respondeu sem desviar os olhos dos pertences que vasculhava. Além de comida, procurava por mais panos que pudesse usar para aliviar a febre de Dásos e copos ou vasilhas para levar água a Fengari, mas não tinha sobrado muita coisa em bom estado por ali. Talvez fosse o cheiro podre do boto, mas com exceção de alguns pãezinhos assados, o restante parecia impróprio para consumo.
De qualquer forma, teria que ser o suficiente para acalmar o estômago do pequeno, já que não tinha planos de sair para caçar, deixando os dois sozinhos com tantos inimigos ao redor. Usando uma das mãos, levantou uma grande tora de madeira e com a outra, puxou uma cesta de vime que havia sobrevivido em meio ao caos. Enquanto a enchia com tudo que encontrou, era observado pelo rosto perplexo da mulher.
Nunca tinha visto um lobo tão de perto e apesar das histórias que ouviu desde criança, essa não parecia uma fera devoradora de homens. É claro que a força sobre humana e os olhos sombrios passavam o recado, mas ela não conseguia parar de admirar as feições tristes que decoravam o rosto bonito.
— Bem… nesse caso… — Ela deu um passo à frente. — Creio que deva me ouvir com atenção.
Ílios havia terminado de recolher as coisas e ponderou por um momento se deveria ou não escutar o que a humana tinha a dizer. Era possível que houvesse um pouco do antídoto no povoado, já que quem manipula as flechas envenenadas está sujeito a se ferir e mesmo que ela estivesse blefando, essa poderia ser uma chance de conseguir mais informações sobre o maldito boto.
— Não sei dizer se você é corajosa ou ingênua, mas saiba que se estiver mentindo eu irei arrancar todos os membros do seu corpo, um por um, começando pela língua.
A ameaça junto da atmosfera pesada, fizeram com que calafrios dançassem sobre as costas da mulher que permaneceu firme da melhor maneira que pôde.
— Eu… eu não estou mentindo — gaguejou — eu realmente sei onde encontrar um pouco do antídoto… mas… é que…
O ruivo estreitou os olhos e automaticamente o ar ficou denso, impossível de passar pelas narinas. Ela apertou a garganta e abriu a boca, na tentativa de sugar o máximo de oxigênio, mas apenas brasa incandescente descia até os pulmões. A dor aguda fez os joelhos cederem enquanto as lágrimas corriam quentes sobre a pele vermelha.
— É melhor pensar bem nas próximas palavras… meu humor não está dos melhores… — Ílios rosnou enquanto se aproximava.
— Eu… ju… juro… por favor…
Controlando seu domínio, agachou ao lado da mulher que tossia compulsivamente, os olhos afiados brilhavam como adagas e os dedos das mãos estalaram antes de suspender o rosto em prantos.
— Certo, você tem cinco segundos antes que eu arranque sua cabeça… Cinco…
Ela encarou em pânico a fase escurecida pelas sombras projetadas pela lua. As íris esmeraldas devoravam cada pedaço de sua sanidade e naquele momento, todas as histórias sobre as bestas que caçavam e dizimavam milhares de pessoas pareceram contos infantis.
— Quatro… três… — sussurrou.
A mulher respirou com força e engoliu o choro junto com o medo. Se não reagisse seria o fim.
— Dois… u…
— POR FAVOR! — a voz saiu aguda e desesperada — Eu juro… eu sei onde o antídoto está…
— Mas…? — O ruivo levantou o queixo avermelhado.
— É que… a quantidade é pequena… — soluçou — pode ser… que não seja o suficiente para curar um animal daquele tamanho…
Ele inclinou a cabeça, como se estivesse extraindo a verdade de dentro dos olhos esbugalhados que continuavam banhados em lágrimas.
— Certo, isso é fácil de descobrir. — Soltando o rosto aterrorizado, levantou e deu as costas. — Traga para mim e eu ouvirei o que tem a dizer.
Ílios pegou a cesta e fez o caminho de volta, sem dizer mais nada. A mulher tossiu por uns minutos até recuperar totalmente o fôlego, agora que estava a salvo, não podia acreditar que foi capaz de ir em frente com essa loucura. O plano era arriscado desde o início, sempre houve a possibilidade do lobo atacar antes mesmo que ela abrisse a boca para explicar alguma coisa, então, as ameaças não foram tão ruins assim.
De qualquer forma, os joelhos discordavam desse pensamento e se recusaram por um bom tempo a firmar as pernas moles. Não se lembrava da última vez que sentiu tanto medo assim, mas com certeza, não se esqueceria desse dia, assim como não se esqueceu de quando aquele lobo rabugento enfrentou o mestre das águas e conseguiu sair ileso.
Depois de tantos anos, aquela fagulha de esperança cutucou a pele e o desejo que já havia abandonado serviu de combustível para alimentar as chamas da liberdade em seu coração. Essa era a oportunidade que precisava para traçar um caminho sobre as águas escuras e navegar sem olhar para traz de volta ao lar.
— Vamos lá, essa é sua melhor chance! — murmurou incentivando o corpo — Talvez a única chance…
O argumento convenceu as articulações relutantes e, com muito esforço, conseguiu ficar de pé e cambalear para dentro da floresta. Precisava ser rápida, se a fera vermelha morresse sua barganha perderia o valor e com toda certeza não escaparia com vida na próxima vez. Enquanto isso, uma infinidade de pensamentos impediam que Ílios atravessasse a porta esburacada.
— Finalmente voltou! — Fengari apareceu como uma assombração ao seu lado. — Estava preocupado! Oh… te assustei?
O ruivo balançou a cabeça em negativa:
— Não… vamos entrar, encontrei algo para você comer.
O rosto infantil se iluminou em um grande sorriso e as mãos pequenas guiaram o homem para dentro.
— Obrigado por cuidar de mim!
O coração de Ílios errou uma batida, era impossível duvidar de alguém com aquele tipo de expressão, aliás, bastava olhar para as íris cintilantes e ingênuas para que todas as inquietações se tornassem problemas pequenos.
— Eu realmente devo estar ficando louco… — sussurrou.
— O que você disse? — Fengari inclinou o rosto.
— Nada… só estava pensando se esses pães estão mesmo comestíveis depois de tudo…
— Não se preocupe… — O garoto remexeu dentro da cesta. — Se você soubesse o tipo de coisa que eu já comi… uns pãezinhos mofados não são nada demais!
Ílios abaixou a cabeça e apertou os punhos com força:
— Isso é minha culpa… — resmungou.
— Do que está falando? — disse depois de engolir um bocado da massa — Isso foi antes de te conhecer e esse aqui nem tá mofa… Í…Ílios… o que foi?
Os braços fortes prenderam os seus junto ao peito enquanto o rosto descansou sobre o ombro fino do garoto. Fengari quase engasgou com o abraço inesperado e apesar de não ser a primeira vez que o lobo agiu dessa forma, não tinha ficado mais fácil lidar com esse tipo de sensação. Era difícil acreditar que um homem forte, capaz de arrancar o coração de uma pessoa sem nem ao menos piscar, pudesse esconder tamanha fragilidade.
Ajoelhado ali, no meio do que sobrou de um povoado, não parecia nada mais do que uma criança assustada que se agarra às pernas dos pais em busca de abrigo. “No final, talvez seja muito solitário crescer…”, Fengari pensou, lembrando de todas as vezes que viu essa mesma expressão vulnerável no rosto da mãe.
Deslizando os braços para fora do aperto, contornou o pescoço do ruivo. Ílios prendeu a respiração por um momento, mas deixou o coração relaxar quando o garoto começou a afagar os longos e volumosos fios vermelhos.
— Está tudo bem… — sussurrou — Vou te ensinar a fazer esses pãezinhos, aí você pode assar um montão deles pra mim, pra sempre!
Ílios segurou o garoto pela cintura e o afastou um pouco, observando o rosto que reluzia em felicidade. Seu peito estava em pedaços e um egoísmo que vinha repreendendo constantemente se esgueirou entre o orgulho estilhaçado, direto para a boca.
— “Para sempre”? — o lobo repetiu.
— Claro! Nós fizemos uma promessa, não foi?
O ruivo apertou Fengari com força, aconchegando o rosto entre as clavículas evidentes, estava desesperado demais para evitar as consequências de suas emoções. Já o garoto não precisava ver os olhos marejados para entender o que seu salvador necessitava e apenas repetiu as palavras enquanto lhe acariciava a cabeça:
— Eu sempre estarei com você, Ílios.
Publicado por:
- GSK
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Escrevendo, desenhando, editando e fazendo mais algumas artes por ai.
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