A Maldição do Lobo Vermelho - Capítulo 21 - A noiva de vermelho
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Ainda estava escuro, faltavam algumas horas para que os primeiros raios de sol brilhassem no horizonte e dentro da floresta, a brisa gelada acompanhava a sensação incômoda de estar sendo vigiado. Kardia se afastou o suficiente para que o que acontecesse a partir da li não chegasse aos ouvidos de Ílios. Não estava pensando em resistir, precisava do antídoto, mas também não estava certo do quanto poderia suportar.
— Me levem até Netuno — ordenou.
Os sussurros quase inaudíveis ficaram mais altos e passos cuidadosos se aproximaram de todas as direções. Estava sendo seguido de perto desde que entrou na floresta e contava com isso para acertar o caminho mais rápido até o maldito peixe, só não esperava que os habitantes fossem tão pacíficos em cooperar.
— Tudo bem, me siga, por gentileza.
O jovem rapaz fez uma pequena reverência antes de falar, depois assumiu o papel de guia, seguindo uma trilha invisível entre as árvores. Seus passos eram ágeis e leves e Kardia teve que usar o olfato várias vezes para não perdê-lo de vista, apesar da confusão que aquele lugar exercia sobre os sentidos.
“Espero que isso seja o suficiente”, pensou.
Cerca de vinte minutos depois, uma clareira enfeitada de flores roxas desabrochou em meio a mata fechada. A lua coloria as águas cristalinas do lago que nascia entre as pedras e um castelo escuro emergia suntuoso no centro. Com toda a certeza não tinham passado por ali antes, nem em sonho um lugar como aquele escaparia dos olhares atentos dos lobos, mas havia uma sensação estranhamente familiar.
Kardia se distraiu por alguns segundos até que um toque frio envolveu sua mão.
— Você se feriu, minha linda Pitanguinha.
Não precisava se virar, a voz melosa e o apelido vergonhoso deixavam claro quem estava ali. Mesmo que tivesse ido ao seu encontro ainda era muito desagradável aturar a presença do anfitrião e por isso não pode evitar revirar os olhos enquanto desvencilhava a mão do aperto incômodo.
— Tem muitos arbustos espinhentos no meio do caminho, devo ter me cortado em um deles. — O comandante limpou os dedos sujos de sangue nas vestes.
— Então foi minha culpa — o homem disse choroso.
— Isso não é importante, onde está o antídoto?
— Claro que importa! Primeiro vamos entrar e cuidar disso, teremos muito tempo para conversar sobre o seu amiguinho depois.
Netuno sorriu e cordialmente estendeu a mão, indicando o caminho de madeira que flutuava sobre as águas, ligando a margem ao grande portão. O estômago de Kardia revirou dentro da barriga, mas não havia outro jeito, então apenas respirou fundo e marchou silencioso até a armadilha. A porta gigantesca rangeu, logo que cruzaram a ponte e do pátio mal iluminado vários pares de olhos brilharam curiosos com a chegada do visitante.
Haviam muitas mulheres vestidas com túnicas longas e brancas e outras tantas com vestidos vermelhos bem reveladores. Apesar do contraste, todas eram bonitas e sorriam animadas pelo retorno do mestre, mesmo que parecessem confusas com algo que fugia aos conhecimentos de Kardia.
Uma delas se aproximou cautelosa, a barriga grande e redonda denunciava a gravidez sob o tecido alvo e pelo que o comandante pôde notar, haviam muitas outras no mesmo estado.
— Meu senhor — ela disse fazendo uma leve reverência — preparamos o quarto para a noiva, mas creio que as roupas não irão servir…
Calafrios percorreram a espinha do comandante quando notou o olhar cobiçoso de Netuno, ele estava medindo cada palmo de seu corpo e não parecia sentir um pingo de vergonha ao fazê-lo. Com um sorriso ardiloso o boto voltou sua atenção para a mulher:
— Foi um erro da minha parte, peço desculpas, minha jabuticaba. Essa não é mesmo uma noiva comum… Levem-no e façam as medidas necessárias e por favor, cuide do ferimento de sua mão, não queremos mais nenhuma cicatriz.
— Claro, senhor. Não se preocupe, ainda temos algum tempo, então a cerimônia não sofrerá atrasos.
Tocando o rosto sorridente da mulher, Netuno falou manhoso:
— Ah… o que farei quando minha esposa mais leal não estiver por aqui?
— Não diga isso — riu balançando a cabeça — Eu finalmente consegui o que queria, é melhor guardar sua boa lábia para conquistar a noiva, ele não parece muito animado.
— A senhora com toda certeza é perspicaz — Kardia zombou.
— Não me chame de senhora, não sou tão velha assim. Meu nome é Nice — sorriu — e você deve vir comigo agora, por favor.
— Com todo prazer.
Ela abaixou a cabeça em respeito ao mestre e puxou Kardia pela mão, caminhando animada para dentro do castelo. O comandante não via a hora de se afastar do boto, então a seguiu sem perguntas. Os longos corredores eram largos e bem decorados com quadros vibrantes. As pinturas em sequência pareciam contar alguma história antiga sobre batalhas sangrentas e reinos destruídos e apesar de muito bonitas, estavam irritando o visitante.
Castiçais pendurados nas paredes iluminavam o caminho que serpenteava por inúmeras portas e cômodos. O lugar parecia um labirinto, mas Nice o conhecia perfeitamente e depois de alguns minutos chegaram ao quarto das costuras. A câmara estava cheia de tecidos em diversos tons de vermelho espalhados pelo chão, junto de linhas, tesouras e mais alguns aparatos que o comandante nunca tinha visto antes.
Algumas mulheres sorridentes aguardavam ansiosas a noiva recém chegada e ficaram confusas quando Kardia foi empurrado para dentro. O burburinho no quarto só não era mais incômodo do que o que vinha do lado de fora. Não haviam outros homens além de Netuno na mansão, nem mesmo seus filhos tinham permissão de atravessar a ponte de madeira e a chegada de Kardia causou um grande alvoroço.
Sem contar que, não era um homem comum, sua beleza inegável atraiu até mesmo o desejo do mestre e isso por si só, já era motivo para atiçar a curiosidade dos demais moradores da mansão.
— O que estão esperando? — Nice fechou a porta atrás de si. — Não temos muito tempo! Precisamos consertar as medidas dos vestidos o quanto antes!
— Vestidos? — Kardia repetiu incrédulo.
— Claro, as noivas devem usar as vestimentas corretas no casamento e na noite de núpcias. Normalmente precisamos fazer pequenos ajustes, mas… no seu caso… vamos ter que costurar tudo de novo — disse uma das mulheres que esperavam dentro do cômodo.
— Noite de que? — O comandante ruborizou.
— Hora essa! Você é uma donzela por um acaso? — Nice esfregou a barriga. — Devo explicar o que acontece depois do casamento?
As outras mulheres gargalharam enquanto Kardia ficava mais vermelho do que os tecidos espalhados pelo quarto.
— As noivas vestem vermelho, para atrair a sorte e quando ficam grávidas ganham túnicas brancas, como as de Nice — uma outra completou.
— Como podem ver… deve estar havendo algum mal entendido aqui…
O comandante tentava se explicar, mas as mãos hábeis começaram a agir, desamarrando as tiras de couro escuro que atavam na cintura suas armas e os cadarços longos que prendiam as botas até a altura do joelho.
— O-o que estão fazendo? — Mirrado se encolheu quando uma das mãos alcançou o fecho da calça.
— O que você acha? — Uma das moças riu. — Precisamos tirar sua roupa para ver as medidas exatas.
Antes que a frase fizesse sentido, Kardia sentiu o xale negro escorregar pelo pescoço. O corpo agiu de forma automática, agarrando com força a garganta fina de Nice, que arregalou os olhos mas não contra atacou, apenas abanou a mão para que as outras esposas na sala abaixassem as adagas.
— Está tudo bem… — Ela tocou os longos dedos que contornavam o pescoço.
— O xale não atrapalha tanto assim. Se te incomoda… pode continuar com ele.
Os olhos azuis brilharam afiados escaneando as intenções da mulher, por mais que não gostasse de humanos, não sentia prazer em matá-los sem motivo e com toda certeza essa não era uma ameaça. Afrouxando o aperto, recuperou o xale das mãos trêmulas e enquanto Nice tossia o enrolou novamente sobre o pomo de adão.
O homem podia ter quebrado seu pescoço sem nenhum esforço, matar as outras pessoas na sala também não seria problema, era melhor não provocá-lo. Respirando fundo, Nice forçou a voz a sair da garganta:
— Nosso convidado… é mais tímido do que eu esperava. Vamos… saiam e deixem que eu faço as medidas que estão faltando.
As outras hesitaram, mas no fim, aceitaram os acenos de cabeça que indicavam a saída. Com um grande suspiro ela sentou na cadeira mais próxima e acariciou o volume que saltava sob a túnica:
— Você me assustou…
— Porque não saiu? Não ficou com medo? — Kardia virou as costas, observando as roupas espalhadas sobre os móveis.
— Bem… se quisesse me matar o teria feito, não é mesmo? — Ela deu de ombros. — Além do mais… eu acho que posso te ajudar.
— Ah é? — disse desconfiado — e o que você ganharia me ajudando?
— Você deve achar que todas nós estamos aqui por vontade própria… — Ela remexia em uma pequena bolsinha sobre a mesa. — Mas não é bem assim…
Um ressentimento profundo carregou a voz alegre, fazendo o comandante se interessar. Ele virou e caminhou até a mulher que tentava passar a linha pelo furo da agulha, mas os dedos ainda tremiam, dificultando a tarefa.
— Continue.
— Você deve ter notado que, além de Netuno, não existem outros homens neste lugar e todas as mulheres que estão aqui são suas esposas. Elas possuem uma única obrigação, gerar um herdeiro saudável e só depois disso podem sair do castelo.
— Não fico surpreso, as do povoado também são esposas daquele peixe maldito, não é mesmo? Porque ele precisa de tantas?
— Bem… Netuno anseia por um filho que possa herdar seus domínios, mas ainda não teve sucesso.
Nice remexeu com a ponta dos pés alguns panos mas não pareceu satisfeita. Mesmo que seus olhos estivessem escuros, continuava diligente em seu serviço e depois de uma boa olhada achou o que procurava.
— Pegue pra mim esse tecido que está perto do seu pé direito, por favor. — Ela apontou para o de cor vinho embolado próximo a porta.
Kardia levantou uma das sobrancelhas, mas a mulher insistiu com um sorriso largo.
— Entendi as motivações daquele pervertido, mas e quanto às moças? — Ele pegou e entregou o pedaço de pano.
— A algum tempo atrás, uma peste atacou nosso povoado. Nós sempre dependemos daquele rio para sobreviver, mas do dia para a noite, os peixes começaram a boiar mortos até a margem e tudo o que era regado com a água de lá apodrecia. Os homens caiam sem forças e as crianças morriam agonizando.
Apesar da história Nice não parecia mais chateada, pelo contrário, estava feliz com a combinação que via diante dos olhos. Ela se levantou e foi até o comandante, que continuava em pé sem muita emoção.
— Esse tom é perfeito! Vai realçar ainda mais a cor dos seus olhos — falou animada — você poderia tirar a blusa para eu fazer as medidas? Pode ficar com o xale…
Apesar da postura confiante, o suor desceu gelado pela testa, ela não queria repetir a experiência passada.
— Só a blusa? — Kardia falou irritado, mas desamarrou as tiras que prendiam as proteções dos antebraços.
— Por enquanto sim…
Era impossível não ficar hipnotizado com a cena e Nice se permitiu aproveitar o momento. De forma hábil, ele despiu as peças em couro presas aos braços e ombros, afrouxando as fitas que prendiam a blusa logo depois. Aos poucos, a pele pálida se destacou em meio ao conjunto escuro que vestia e os músculos bem definidos do peitoral e abdômen foram revelados.
— O que está fazendo? Isso faz cócegas — Kardia resmungou.
Inconscientemente as mãos haviam se movido, seguindo a linha esbranquiçada de uma cicatriz que marcava o peito esquerdo. A voz que soou acima de sua cabeça a lembrou do perigo e Nice endireitou a postura recuando um pouco.
— Ah… me desculpe… Você tem muitas marcas…
Kardia ergueu a sobrancelha, como se a constatação fosse estúpida:
— Sim… continue sua história.
— Claro… Onde eu estava? Ah sim… Tentamos de tudo, mas nada parecia funcionar. Os que atravessavam o rio em busca da cura nunca mais voltaram e os que ainda tinham um pouco de saúde passavam fome por não ter forças para caçar. Foi quando ele apareceu.
Nice contornou os ombros largos do comandante com uma fita de costura e rabiscou sobre o papel alguns números. Enquanto falava repetia o processo, aferindo as medidas dos braços, peitoral e cintura.
— No início ficamos desconfiados — ela continuou — mas ele disse que nos ajudaria a acabar com a praga e que cuidaria de nós… só precisávamos fazer um “acordo justo”.
As palavras irritaram o estômago de Kardia, não o surpreenderia em nada se o causador dessa peste fosse o boto pervertido, mas uma coisa estava faltando.
— Imagino qual foi o acordo proposto, mas para onde foram os homens do vilarejo? Não me diga que o fedido matou todos eles…?
— Não… — As mãos de Nice tremeram por um momento. — Eles foram expulsos do povoado… Netuno disse que foi a ganância deles que trouxe a doença para a região e por mais que curasse o rio ele voltaria a apodrecer se os homens não fossem embora.
— Isso é ridículo… — Kardia suspirou irritado.
— Bem… não tínhamos nada além de doentes e mortos e o que o boto ofereceu pareceu razoável na época… É claro que nem todos aceitaram… mas ele foi paciente…
A mulher esticou com dificuldade a fita sobre as pernas do comandante. A barriga avantajada dificultava os movimentos e as lembranças pareciam acrescentar alguns quilos sobre as pernas sobrecarregadas.
— Sente-se e me dê isso aqui, deixa que eu faço — Kardia estendeu a mão.
Ela sorriu e entregou a tira com números.
— Agora desembucha, eu não estou por sua conta…
— Está certo. — Nice assentiu. — Ele entregou o remédio a todas as mulheres que aceitaram o acordo. Tinha o suficiente para duas pessoas em cada concha e assim, elas puderam salvar a si e um ente querido. Como muitos haviam perecido antes, isso foi o suficiente para quase todos os moradores ganharem uma dose.
— Quase? — Kardia questionou.
— Sim… eu tinha um marido e um filho… É claro que a primeira dose que recebi entreguei a ele, mas meu marido se recusou a tomar a segunda. Eu não me importava em morrer, mas não suportaria perder um dos dois… — ela riu — ele dizia a mesma coisa…
Kardia podia sentir o ressentimento e a dor em suas palavras, ele conhecia bem esses sentimentos. Ela passou a mão sobre a barriga e pensou um pouco antes de continuar:
— Ficamos só nós três no povoado… meu filho, apesar de novo, cuidou da gente como pode, mas não havia muita coisa que pudesse aplacar a dor causada pela doença e já não restava muito tempo de qualquer forma.
As mãos de Nice estavam suadas e a costura que cingia o tecido descia torta pelas bordas vermelhas. Sua mente havia voado para o dia daquelas lembranças.
— Quando as coisas pioraram, eu derramei o remédio na boca do meu marido que estava inconsciente e ajudei a carregá-lo para dentro de uma das canoas. Ele deve ter se sentido traído, por isso nunca voltou para me buscar…
— E como você veio parar aqui?
— Eu perdi as forças subitamente com o esforço, não conseguia me mexer, muito menos empurrar o bote. Meu filho também não era capaz de usar direito o remo e não tinha correnteza para ajudar. Nesse momento ele conseguiu o que queria…
— Netuno? — Kardia cuspiu.
— Sim… ele falou que estava triste, pois uma de suas noivas havia descumprido o acordo. Eu dei minha parte do remédio, então sabia que receberia uma punição, mas esperava que meus amados estivessem bem longe quando acontecesse.
Ela riu desapontada, desmanchando o caseado que tinha acabado de terminar.
— Netuno se aproximou da canoa e disse que podia ajudar, desde que eu fosse para o castelo desta vez. O desespero falou mais alto, então concordei. Quando abri os olhos, estava em um dos quartos vestida de vermelho… — ela suspirou.
— Você também caiu no golpe do boto… — Kardia disse desanimado.
— E o que mais eu poderia fazer? — retrucou — Eu queria muito salvar a minha família então cedi as investidas de Netuno…
Eles ficaram em silêncio por um tempo. Toda essa história só reafirmou o que o comandante já sabia, Netuno era um pervertido sem salvação, mas além disso, foi apenas uma grande perda de tempo. Ele se levantou e tirou as calças, pegando Nice de surpresa.
— O que foi? Não precisa das medidas? Vamos acabar logo com isso, já perdemos tempo demais. Dessa vez me conte tudo o que sabe sobre as defesas desse lugar e qual o seu plano para escapar.
Ela sorriu animada, faltava pouco tempo para o sol nascer, mas ainda restavam esperanças. Enquanto cortava e costurava as peças relatava tudo o que sabia a respeito da mansão e do seu mestre. Kardia ouvia atento, traçando uma rota mental sobre os corredores iluminados, se o plano principal falhasse essa seria uma boa segunda opção.
Uma batida rouca soou pela porta antes que uma das mulheres entrasse no quarto.
— Está na hora — intimou.
Os dois confidentes assentiram e foram guiados até o local da cerimônia.
— Com toda certeza, esse será um dia inesquecível! — Nice falou.
Os olhos azuis brilharam, contrastando lindamente com os tecidos vinho que vestia:
— Pode apostar que sim.
Publicado por:
- GSK
-
Escrevendo, desenhando, editando e fazendo mais algumas artes por ai.
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