A Maldição do Lobo Vermelho - Capítulo 20 - Propostas indecorosas
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Um estalo seco rompeu a última linha que segurava o ódio mortal do comandante. O rosto vermelho perdeu toda a cor e os olhos azuis ficaram mais escuros do que o céu noturno. O punho que apertava a haladie contraiu algumas vezes antes de soltar a arma que tilintou sobre os escombros. Kardia arfou profundamente e no segundo seguinte, um gigantesco lobo acobreado saltou sobre o homem que continuava sorrindo.
A energia pesada que impedia o movimento dos oponentes havia cessado e na mesma hora que o animal avançou dezenas de flechas voaram sobre a lama. Apesar de enorme, a fera era ágil e conseguiu desviar de todas as setas envenenadas antes de abocanhar um bocado de areia misturada à névoa cor de rosa.
Kardia balançou a cabeça e cuspiu confuso, o gosto que estava esperando provar não era bem esse, mas no lugar em que o maldito deveria jazer ensanguentado, havia apenas um boneco de lama fedorenta despedaçado.
— Mas como? — o comandante bufou procurando a presa.
— Ah! Essa sua forma também é belíssima! — a voz sedutora soou sobre alguns escombros perto da margem — Agora entendo porque ele se arriscou tanto.
Netuno estava sentado de pernas cruzadas, admirando a beleza do lobo que corria em sua direção. Os longos caninos brilharam antes da poeira subir e ocultar o corpo que deveria estar dilacerado sob o peso do ataque feroz, mas novamente, nada além de barro e fumaça rosada se espalharam no chão. Kardia rosnou sacudindo o pó e alguns pedaços de madeira que ficaram agarrados ao pêlo, estava ainda mais furioso.
O som agudo das cordas sendo esticadas sobre os arcos reverberou pelo ar, mas a raiva que tomava conta do comandante impedia que se importasse.
— Ordene que parem.
A voz de Ílios ainda estava cansada, mas a lâmina pressionava sem hesitação o pescoço do homem sentado ao seu lado. Netuno foi pego de surpresa e riu ao levantar os braços em rendição.
— Ah! Você me pegou! Abaixem as armas, minhas Jabuticabas.
Como solicitado, a pressão nas cordas diminuiu, mas as flechas permaneceram armadas. Kardia estava possesso e pronto para outro bote, mas Ílios balançou a cabeça, negando o ataque.
— Já chega dessa palhaçada — o líder rosnou baixo — como fez aquilo?
— Bem… eu posso te contar, mas antes eu gostaria de saber onde você encontrou esse gatinho dorminhoco.
Netuno apontou para o garoto que continuava adormecido no colo do ruivo. Ílios estreitou os olhos e pressionou o aço com mais força sobre a pele escura, o rosto estava tenso e correntes elétricas invisíveis estalaram ao seu redor. O ar voltou a ficar pesado e até Kardia que estava distante arfou sufocado.
— Não creio que seja da sua conta — o líder falou entre dentes.
— Tudo bem! Tudo bem! — O homem deu de ombros. — Não precisa ficar tão bravo! Só achei engraçado. Agora porque não se acalma um pouco? Não me importo com seu amigo aqui do lado, mas minha Pitanguinha está sofrendo ali embaixo.
Dásos estremeceu inconsciente, mesmo desacordado ainda era afetado pela pressão brutal exercida pelo líder. Kardia também, mal podia ficar de pé, enquanto os habitantes do povoado rolavam no chão sem conseguir respirar, apenas Netuno não parecia sofrer com o domínio imposto por Ílios.
— O que é você? — o lobo rosnou, girando a espada e decepando a cabeça risonha.
No lugar do sangue, uma névoa cor de rosa escapou pelo pescoço do homem que se transformava lentamente em um boneco de lama. O cheiro podre chamou a atenção de Ílios, que virou cortando o ar antes mesmo que a terra molhada tomasse forma atrás de si. A areia grossa salpicou pelo chão e, como se estivesse viva, se juntou e deslizou sorrateira até as costas do lobo ferido.
— Pare de brincar! — Ílios urrou.
A figura de lama assumiu a forma do belo homem que sorria radiante, sentado sobre o dorso de Dásos.
— Ah! Eu não consigo evitar, vocês são tão divertidos…
Netuno acariciava os longos pêlos vermelhos do lobo ofegante, passando os dedos de leve sobre o corte envenenado.
— Saia de perto dele, ou não vai sobrar ninguém da sua família para chorar sobre o seu cadáver.
O homem piscou algumas vezes, medindo a ameaça de Ílios. As crianças caídas no chão estavam inconscientes e não demoraria muito para que sucumbissem à falta de ar, já as mulheres, agonizavam segurando o fôlego na tentativa desesperada de proteger os filhos. O ruivo não estava brincando.
Netuno balançou a cabeça e estalou a língua descontente:
— Está bem… está bem… você me pegou de novo! — Passando o dedo sujo de sangue nos lábios sorriu. — Mas você não deveria fazer tanta confusão por esse aqui, ele não vai durar muito mais, de qualquer forma.
— Do que você… está falando…? — Kardia se esforçou para falar — Eu passei o… antídoto…
O homem se dissolveu em areia, escorrendo pelas frestas do piso quebrado onde Dásos respirava com dificuldade, aparecendo em seguida do lado do outro comandante.
— Eu avisei ao seu mestre, minha Pitanguinha… — Netuno acariciou o focinho ofegante. — Mas ele preferiu não me ouvir e agora o veneno já se espalhou por todo o corpo do pobre cãozinho.
— Mas… nós fizemos um… acordo. — Kardia lutou para dar um passo na direção do lobo ferido.
— Hmm… isso é verdade! — O homem sorriu esfregando os dedos nos lábios. — Sabe de uma coisa? Eu adoro frutas doces e é por isso que eu amo minhas jabuticabas…
Ílios se esforçou para controlar os instintos, não queria prejudicar ainda mais o amigo e com a pressão um pouco menor Kardia voltou a forma humana. Netuno continuou segurando o rosto do comandante, ignorando a adaga que roçava as costelas, abaixo do peito. Sua voz era calma e os olhos brilhavam em tons de rosa:
— …Mas devo admitir que é muito difícil resistir a acidez das pitangas, principalmente quando estão tão vermelhas.
Kardia rangeu os dentes, sentia que até suas orelhas estavam coradas de ódio, mas não podia arriscar a vida de Dásos.
— Cumpra a sua parte e eu cumprirei a minha. — O comandante ergueu a lâmina até o pescoço de Netuno. — Mas se fizer alguma gracinha, eu juro que vou te despedaçar.
O homem gargalhou tão alto que um assobio agudo escapou pela garganta:
— Ah! Estamos combinados! Me dê a sua mão.
Kardia estremeceu com a lembrança e um gosto azedo subiu pela garganta. Não pode evitar contorcer o rosto em uma careta de nojo ao entregar a mão esquerda a Netuno que parecia estar se divertindo com a situação. Mirrado fechou os olhos tentando controlar a ânsia de vômito, mas ao contrário do que esperava, uma pequena concha escura era a única coisa úmida em sua palma.
— O que é isso? — Questionou desconfiado.
— Um paliativo. Passe a cada uma hora na ferida do seu amigo. Tem o bastante aí dentro para durar até o próximo nascer do sol.
— E depois? — Kardia sussurrou entre os dentes.
Netuno sorriu com a perspicácia do lobo:
— Bem… você deverá vir sozinho buscar o antídoto desta vez.
— E se eu não for? O que vai acontecer?
O homem deu de ombros, fechando os dedos longos de Kardia sobre a concha.
— Ele ficará bem por uma hora, depois disso, eu não posso garantir…
O comandante rosnou dando um passo à frente, mas notou que Ílios estava se aproximando, não queria envolver o líder nesse acordo, então apenas assentiu com um gesto de cabeça. Netuno encarou os olhos azuis que faiscavam de ódio e então beijou de leve o punho fechado sobre o remédio.
— Estarei contando as horas, minha Pitanguinha.
O homem se virou e caminhou despreocupado até sumir completamente nas águas turvas. Algumas mulheres tossiam recobrando as forças enquanto outras carregavam suas crianças para dentro da floresta. Ílios havia deitado Fengari junto a Dásos e observava atento o rosto tenso do amigo, que continuou parado no mesmo lugar, mesmo depois da silhueta rosada desaparecer na escuridão.
— Não se preocupe, nós vamos dar um jeito nisso. — O líder segurou nos ombros gelados do comandante. — Só me diga o que fazer!
Kardia assentiu com a cabeça, esperava que Ílios não tivesse ouvido a última parte da conversa ou seria impossível buscar o remédio. Ele jamais o deixaria entrar sozinho naquelas águas, principalmente sabendo que era uma armadilha. De qualquer forma, eles não tinham muito tempo e mesmo que conseguisse todas as ervas que precisava, não era garantido que seria capaz de fazer um soro contra esse veneno.
— Encontre alguns panos limpos e me traga um pouco de água. Veja se alguma dessas cabanas ainda pode ser usada como abrigo, não podemos mover Dásos ou o veneno vai se espalhar mais rápido.
— Certo, mais alguma coisa?
— Não, vou usar as folhas que tenho aqui para amenizar a dor e depois vou procurar algumas ervas específicas na floresta. Vá de uma vez, ficarei de guarda, não se preocupe.
Ílios encarou o companheiro por um segundo antes de virar e entrar em uma das casas arruinadas. Kardia apertou a mão sobre a concha, pedindo desculpas silenciosas ao líder, já havia tomado sua decisão. Com cuidado, abriu uma das peças escuras que guardavam o líquido viscoso, não precisava imaginar muito, tinha certeza que era a mesma saliva nojenta que o boto cuspiu antes em seus dedos.
— Me desculpe, Dásos.
Com uma pequena folha que tirou da bolsa escondida sob a roupa, passou o paliativo sobre a ferida do animal. O lobo tremeu mas pareceu relaxar logo depois, foi uma reação similar a da primeira vez, então tudo deveria ficar bem por enquanto. Depois de o observar por mais um momento, decidiu verificar as condições do garoto deitado ao lado.
Não haviam machucados ou hematomas visíveis, apenas os lábios estavam sujos de sangue. Guardando a concha, abriu a boca de Fengari mas antes que pudesse procurar por feridas uma sensação de perigo o fez virar.
— Eu disse que ele está bem, só está desmaiado.
Ílios estava parado atrás de Kardia segurando uma vasilha e alguns pedaços de pano.
— Claro, você disse isso.
O comandante pegou os objetos, mas o corte profundo na mão do líder chamou sua atenção. As coisas estavam começando a fazer sentido, mas era melhor não questionar, assim, apenas fez o melhor que pode para controlar a febre do lobo adormecido. As horas se passaram e por mais que fosse possível sentir a movimentação na floresta, nenhum habitante do povoado se atreveu a incomodar os invasores.
Ílios acomodou Fengari dentro de uma das casas que ainda estavam de pé, enquanto uma fogueira baixa foi improvisada próxima a Dásos. A noite se desenrolou silenciosa, enquanto Kardia cuidava do ferido, Ílios montava guarda, ambos tinham muita coisa na cabeça mas nenhuma vontade de falar.
— Ílios — o comandante chamou em voz baixa — preciso buscar as ervas que te falei. Aplique uma pequena quantidade disso aqui no ombro de Dásos a cada uma hora, tudo bem?
Kardia entregou uma trouxinha feita com folhas para o líder, que observou desconfiado.
— Não está muito escuro para encontrar plantas em uma floresta?
— O sol já vai nascer e elas não estão tão perto, de toda forma. — O comandante se levantou. — Eu acabei de passar, então você deve aplicar apenas daqui a uma hora, entendeu?
Ílios segurou o pulso de Kardia e o encarou procurando a verdade:
— Você não está pensando em fazer nenhuma loucura, está?
— Claro que não. — O comandante apertou a mão de Ílios. — Eu já excedi minha cota de loucuras a muito tempo atrás. Agora me deixe ir, não temos muito tempo.
Kardia se desvencilhou e caminhou até a floresta enquanto o líder o observava sumir na escuridão. Ele havia tomado sua decisão e Ílios sabia que seria impossível impedi-lo.
Publicado por:
- GSK
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Escrevendo, desenhando, editando e fazendo mais algumas artes por ai.
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