A Maldição do Lobo Vermelho - Capítulo 18 - Novas sensações
Antes mesmo que os primeiros raios de sol dissipassem a noite, os Sabiás-laranjeira anunciavam o novo dia. Dásos se espreguiçava esticando as patas dianteiras enquanto Kardia, já em sua forma humana, voltava do riacho com alguns peixes atravessados na haladie e vários gravetos no ombro.
— Porque não me acordou? Eu podia ter ajudado — bocejou.
— Não seja por isso. — Jogou os galhos secos no chão. — Acenda a fogueira, vou acordar Ílios.
— Não precisa… — O lobo se espremeu para fora da cabana. — Vou pegar algumas frutas, se o menino acordar digam que não vou demorar.
Mirrado suspirou, mas conteve a vontade de revirar os olhos e apenas concordou com a cabeça. Dásos sorriu satisfeito e após se transformar, caminhou até o outro comandante que estava de costas, surpreendendo-o com um abraço.
— Que merda é essa? — Kardia passou por debaixo dos braços do brutamontes. — O que você pensa que está fazendo?
— Qual é Mirrado? — disse erguendo uma das sobrancelhas — pensei que já tínhamos ultrapassado essa fase…
— “Fase”? Do que caralhos você está falan…
Mas Dásos interrompeu o raciocínio do outro, puxando seu rosto para aconchegá-lo entre os peitos.
— Vamos lá, Kardia… porque não me mostra aquele mesmo rosto fofo que eu vi ontem, hen? — disse sem vergonha.
Fengari esfregou os olhos com uma das mãos enquanto se escorava no limiar antigo com a outra:
— O que vocês estão fazendo? Onde Ílios está?
O sangue ferveu nas veias de Kardia que atacou girando a adaga contra as costelas do grandalhão. Dásos se esquivou a tempo, dando alguns passos para trás, mas não saiu ileso da provocação e um risco não muito profundo brilhou na lateral do corpo.
— Seu idiota! Se fizer isso de novo vou te matar, entendeu?
O garoto arregalou os olhos e saltou para dentro da cabana, já Dásos continuou rindo enquanto fingia arrependimento:
— Tudo bem… tudo bem! Você é quem manda, Mirrado! Agora me ajude com isso aqui, está doendo…
— Problema é seu! — arfou ainda vermelho — não tô nem aí! Se morrer, amanhã fazem dois dias.
— Ah! Como você é cruel, comandante… Isso tudo foi por causa de um abraço? Ou porque o filhote também viu o seu rosto vermelho? — provocou.
— Seu maldito! Eu vou te matar agora mesmo! — Kardia urrou enquanto avançava com a adaga.
— Já chega! — Ílios saiu da escuridão. — O que vocês são? Crianças por um acaso? Deviam estar se preparando para a viagem ao invés de desperdiçar energia com essas briguinhas estúpidas.
Dásos concordou erguendo os braços em sinal de rendição, Kardia ainda bufava vermelho sem tirar os olhos do homem que o provocou, mas guardou a arma em respeito às ordens do líder. Estava claro que seu humor não havia melhorado, então era melhor não procurar motivos para deixá-lo ainda mais nervoso.
— Ílios! Você voltou! — Fengari correu de encontro ao lobo, abraçando-o.
Os braços finos mal alcançaram o pescoço felpudo e o animal já havia assumido sua forma humana. Sem nenhuma dificuldade, o ruivo o ergueu com uma das mãos, enquanto o pequeno segurava em seus ombros.
— Eu queria pegar alguma coisa para você comer, mas senti o cheiro de sangue e voltei correndo… — Ílios encarou o homem risonho que segurava a barriga cortada.
— Foi mal… Eu vou pegar algumas frutas para o filhote! — Dásos caminhou animado para a floresta.
— Tudo bem! Eu disse que não queria atrapalhar, lembra? Me coloca no chão que vou ajudar com a fogueira.
Ílios pensou em recusar o pedido, mas o olhar azedo de Kardia o fez mudar de ideia:
— Tá bom, faça o seu melhor, mas cuidado para não se machucar. Quanto a você, comandante, vamos pescar mais alguns peixes, só esses não serão suficientes.
Kardia não conseguiu evitar revirar os olhos dessa vez, mas seguiu o líder mesmo assim. Depois de se afastarem dos ouvidos alheios expressou suas preocupações:
— Você vai levar o filhote, não é?
— Vou — o líder respondeu sem emoção.
— Imaginei — suspirou enquanto balançava a cabeça — e como você pretende lidar com isso? Digo… não vai demorar muito até que as coisas saiam do controle…
— Eu tenho uma ideia. — Ílios se abaixou observando o próprio reflexo na água.
— Que ótimo! — a voz sarcástica de Kardia saiu aguda — Porque será que isso está me dando arrepios?
O sexto sentido do comandante não costumava falhar e dessa vez não foi diferente. Enquanto o líder resumia o plano, não conseguia parar de pensar que finalmente o amigo havia perdido o restante do juízo e o pior, sabia perfeitamente que nada e nem ninguém seriam capazes de mudar seus pensamentos. De qualquer forma, essa era a primeira vez em muitos anos que via aquele brilho nos olhos de Ílios e não podia deixar que isso se perdesse.
Descruzando os braços apertou as têmporas antes de suspirar:
— Bem… Se você já se decidiu, não há o que fazer. Só espero que não se arrependa.
Com um movimento preciso, Ílios atacou a água, capturando mais uma tilápia. A escuridão havia se dissolvido em tons azuis alaranjados e as escamas acinzentadas se debatiam sobre a grama baixa.
— Eu não vou. — Os olhos verdes brilharam. — Só preciso que na hora certa, você e Dásos fiquem ao meu lado…
— Como se algum dia já tivesse sido diferente! Agora vamos voltar, temos peixes o bastante e seu filhot… — Kardia raspou a garganta arrependido — digo, o menino deve estar preocupado com você.
Ílios balançou a cabeça em reprovação, mas por dentro riu do constrangimento do outro. Espetando as presas com um graveto pontiagudo caminhou ao lado de Kardia de volta à cabana onde Dásos e Fengari aguardavam distraídos.
O vento mudou de direção e soprou de leve algumas centelhas na direção do garoto, que estava rindo de alguma piada que o brutamontes havia acabado de contar. Seu rosto ficou sério por um segundo enquanto o aroma conhecido brincava em suas narinas. As bochechas coraram e ele abaixou o tom de voz, sussurrando para o homem ao lado:
— É melhor mudar de assunto, Ílios está voltando com o comandante e se o emburrado ouvir isso é capaz de arrancar suas tripas dessa vez.
Dásos parou de mastigar a maçã que comia e olhou ao redor:
— Como você…?
Mas Fengari não estava ouvindo, havia se levantado e corrido na direção dos homens que se aproximavam em silêncio.
— Me deixa ajudar! — O garoto estendeu a mão. — Vocês demoraram muito, os peixes que Kardia trouxe já estão quase prontos e Dásos voltou com um monte de maçãs.
— Você consegue levar? — Ílios entregou o galho com a pescaria. — Está um pouco pesado.
— Claro! Me da aqui e vão logo comer, a gente não ia sair assim que o sol nascesse?
O ruivo sorriu olhando para Kardia:
— Vejam só… parecesse que temos mais um apressadinho no grupo.
Kardia revirou os olhos e balançou a cabeça, apressando os passos. Dásos acenou risonho, gesticulando para que o outro assentasse ao seu lado, mas Mirrado preferiu ocupar o lugar mais distante, deixando o fogo alto crepitar entre os dois.
Os quatro comeram em silêncio e assim que o céu ficou completamente azul partiram para as montanhas. Como três lobos gigantes correndo em plena luz do dia chamariam muita atenção, optaram por manter a forma humana até o anoitecer. Por mais que fosse menos efetivo caminhar desse jeito, era uma boa maneira de analisar e traçar uma rota mais segura para o retorno.
De todo modo, enquanto estivessem dentro da floresta não precisavam se preocupar em serem vistos, e assim, apesar de quase matar Kardia de desgosto, Ílios carregou o pequeno garoto nas costas enquanto acelerava sobre as quatro patas. No começo Fengari relutou, não queria ser um fardo, no entanto, sabia também que não seria capaz de acompanhá-los de outra maneira.
Emburrado, subiu no dorso macio do animal, mas não demorou muito para que a expressão azeda fosse substituída por um sorriso largo. Naquela velocidade, toda a floresta tinha se transformado em apenas um borrão verde escuro e o vento frio cortava a pele do rosto, contudo, a sensação de liberdade fez o coração bater mais rápido.
As mãos seguravam firmes o pescoço felpudo e todo o corpo estava envolto pelo calor que a criatura emanava. Fengari podia sentir os músculos fortes que se moviam sem hesitação, a respiração profunda que enchia os pulmões e o cheiro doce que os pelos vermelhos exalavam. Até mesmo o gosto amadeirado que tomava conta do ar todas as vezes que as patas enormes tocavam o chão não lhe escapava.
Era como se os sentidos estivessem enlouquecidos: tato, olfato, paladar; todos aguçados, preparados para perseguir e capturar sua presa. À medida que se afastavam do centro da floresta a sensação ficava mais forte, fazia muito tempo que não experimentava algo assim, na verdade, desde que se mudou com a mãe para aquela montanha não se lembrava de já ter tido os instintos perturbados daquela forma.
Algo parecia errado, mas ao mesmo tempo, era como se finalmente estivesse respirando depois de um longo período submerso em um mar de escuridão. Estava vivo e isso era assustadoramente maravilhoso.
— Vamos trocar! — Ílios ordenou.
Os lobos pararam de correr, as sombras escuras da vegetação densa haviam se dissipado e a claridade se infiltrava com facilidade entre as copas espaçadas. Depois de várias horas sem parar, estavam ultrapassando as últimas fileiras de árvores e arbustos que delimitavam a floresta do Urutau, era o momento de voltar à forma humana.
— Verifiquem os arredores, vou esperar aqui com o garoto — o líder falou despreocupado.
Os comandantes assentiram e começaram a patrulhar além das sombras.
— Você pode me soltar agora, desculpe se te deixei com medo — Ílios sussurrou.
As palavras dançavam nos ouvidos de Fengari, mas ele não compreendia muito bem. Estava embriagado com toda aquela sensação e demorou um pouco até que os chamados constantes do ruivo o libertasse dos devaneios.
— Você está me ouvindo, Fengari? — repetiu.
O garoto balançou a cabeça confuso e quase caiu enquanto tentava descer do animal. O lobo o amparou com a boca e o colocou no chão de forma delicada, se transformando no belo homem logo depois.
— Você está bem? — Ílios acariciou o rosto corado, limpando-lhe a boca.
— Eu… eu acho que sim — Fengari respondeu piscando os olhos — só… fiquei um pouco tonto, não se preocupe.
Um gosto doce preenchia o paladar do garoto e os ouvidos pulsavam no mesmo ritmo das batidas do coração do ruivo. Os sentidos ainda estavam bagunçados e o instinto gritava para que os dentes se movessem. Precisava se controlar, do contrário, sentia que seria capaz de devorar o homem à sua frente.
— Tudo bem — Ílios sorriu — vamos mais devagar na próxima.
O garoto concordou abaixando a cabeça, não conseguia olhar para aquele rosto gentil sem se envergonhar. O ruivo pareceu entender e se afastou um pouco, dando mais espaço para que o pequeno respirasse. “Será que Ílios notou alguma coisa?”, pensou aflito, talvez sua cara estivesse com uma expressão estranha ou quem sabe o lobo conseguisse ouvir o bater tumultuado do seu coração.
Ele queria perguntar, mas não sabia muito bem como ou o que deveria dizer então permaneceu em silêncio. À medida que o gosto adocicado desaparecia da boca a mente ficava mais clara e com algum esforço, conseguiu se levantar e ir de encontro ao homem que esperava paciente.
— Oh, você se feriu. — O pequeno apontou para o sangue que descia do ombro esquerdo. — Quando foi isso? Deixa eu te ajudar.
Os olhos verdes brilharam analisando as feições de Fengari, nada parecia estar diferente, mas a sensação que teve agora pouco ainda o perturbava. Foi por alguns segundos apenas, mas os instintos gritaram para que fugisse ou seria devorado ali mesmo.
Os Guarás são predadores ferozes e por isso são treinados desde pequenos a controlar a sede. Caçar por diversão ou apenas para saciar os desejos é proibido. Um lobo que se rende aos impulsos ferais pode entrar em um frenesi assassino, se tornando uma besta incapaz de discernir entre amigos ou inimigos.
— Então isso pode acontecer com mestiços também… — Ílios deixou escapar os pensamentos.
— O que? — Fengari piscou. — Não consegui te ouvir.
— Não é nada — respondeu apressado — acho que raspei o ombro em um galho enquanto corria, não precisa se preocupar.
— Tem certeza? — O garoto segurou o braço do homem. — Eu posso limpar e…
Um assobio longo interrompeu a fala.
— Não tem necessidade, vamos nos apressar, o caminho está seguro.
Ílios virou e começou a caminhar, se desvencilhando das mãos finas. “Será que ele está com raiva de mim?”, Fengari pensou sem sair do lugar. Não precisava virar, o ruivo podia sentir a cortina escura que rodeava o garoto e mesmo nessa situação não conseguia evitar achar aquilo engraçado.
— Já se arrependeu de vir comigo? — falou fingindo tristeza — posso te levar de volta se quiser…
Fengari arregalou os olhos e balançou a cabeça em negativa:
— Não!!! Eu só… eu…
Ílios segurou o riso e puxou Fengari pela mão:
— Ótimo! Se não está arrependido vamos andando, temos muito chão pela frente.
Os dois seguiram a trilha deixada pelos comandantes que aguardavam empoleirados nos galhos secos de uma árvore qualquer. Logo adiante, o pequeno povoado de palafitas coloria as margens do rio de águas escuras, misturando tons vermelhos, amarelos e azuis ao grande verde ao redor.
Os telhados de palha seca cobriam as paredes de madeira e várias estacas verticais separavam o piso das águas correntes. Pontes rústicas de corda e bambu desenhavam os caminhos que ligavam uma casa à outra e várias canoas flutuavam amarradas aos alicerces.
Construções como essas não eram difíceis de serem encontradas, várias tribos dependiam das águas caudalosas dos grandes rios para sobreviverem, mas o cheiro incomum que este exalava o tornava único. Sem dúvidas, o pequeno povoado não abrigava apenas humanos, uma outra criatura muito mais perigosa se escondia entre as estacas de madeira submersas.
Publicado por:
- GSK
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Escrevendo, desenhando, editando e fazendo mais algumas artes por ai.
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