A Maldição do Lobo Vermelho - Capítulo 14 - O ritual
As vozes distantes se aproximavam cautelosas junto ao vento úmido. A névoa que cobria os olhos de Kardia não permitia que visse claramente, mas haviam no mínimo duas pessoas cantando ao redor da fogueira e uma delas embalava de forma carinhosa um animal, ou talvez uma criança enrolada em um bocado de panos surrados.
Apenas a luz crepitante iluminava o que parecia ser um pantano ou brejo cercado por árvores altas e estreitas, com toda certeza essas memórias o levaram para bem longe da floresta do Urutau, mas a paisagem não era totalmente estranha. O cheiro adocicado das ervas peçonhentas que desabrocham ao anoitecer, o cricrilar das rãs, o ar úmido e pesado e até mesmo as águas escuras que escondiam as raízes das árvores eram conhecidas.
Nas noites tempestuosas de verão, o vento remoso que vinha do norte infiltrava por entre as frestas bolorentas dos calabouços de Nychia, adicionando um tom doce ao ar pestilento das celas. Mesmo que passassem cem anos, o comandante jamais esqueceria desse lugar ou do seu cheiro, essas memórias só podiam ser de alguém que viveu nos arredores encharcados da masmorra e isso não era bem o que Kardia estava esperando.
— Maldição — sussurrou irritado enquanto tentava se mover — isso era tão sufocante assim?
A sensação de estar preso dentro do próprio corpo era imensamente desconfortável, mas não era a primeira vez que ele a sentia, na verdade, era um efeito comum desse ritual que praticava frequentemente na infância. Depois que sua mãe se foi, contrariou todas as advertências de Antheia e se perdeu inúmeras vezes revivendo os momentos felizes que passou ao seu lado.
Afundado em tristeza, sentiu o peso de se apoiar no passado e por pouco não pereceu dentro de suas próprias memórias. O dia em que queimou o último fio de cabelo da mãe, foi também o que ganhou a cicatriz amarga que contornava o pescoço e por isso nunca mais havia repetido a cerimônia.
Respirando fundo controlou novamente os pensamentos, não podia desperdiçar a oportunidade se distraindo em coisas que não tinha mais como mudar, precisava decifrar o que aquela magia estava tentando dizer e isso por si só já não era uma tarefa fácil. As memórias não são gravadas como realmente aconteceram, elas são contadas de acordo com a visão de quem as vivenciou ou conforme a intenção de quem as escreveu.
Isso significa que algumas nem são reais, mas independente do que guardam são sempre muito perigosas, principalmente aquelas escritas com o intuito de confundir. Se perder dentro do fluxo de uma lembrança significa tornar-se apenas um borrão, um erro mal apagado dentro das confusas linhas do tempo.
Os cânticos cessaram e uma voz rouca, porém gentil, chamou sua atenção.
— Não precisa mais chorar, minha pequena. A criança irá viver.
A mulher ao lado caiu de joelhos, abraçando o embrulho que se contorcia de leve.
— Obrigada — soluçou — eu… eu não tenho como agradecer…
O comandante não tinha dúvidas, essa era a voz de Zoe, uma das traidoras que desertou do exército dos Guarás durante o cerco às masmorras. Na verdade, parecia que sua hipótese estava certa o tempo todo, a mulher de cabelos vermelhos que vivia no alto da montanha era mesmo uma loba fugitiva.
A pessoa com quem estava conversando só podia ser o Urutau e por mais que Kardia nunca tivesse visto um pessoalmente, por alguma razão, sua voz soava familiar. “Eu já ouvi essa voz antes”, pensou, mas não conseguia lembrar nem quando nem onde, só que aquela sensação persistente de que não era a primeira vez que se encontravam continuava cutucando os pensamentos.
— Na verdade — a voz rouca disse suave — você não precisa agradecer, nós temos um acordo, afinal.
Zoe tremeu e agarrou firme o embrulho, seja lá o que tinham combinado, não parecia que a loba estava completamente de acordo com os termos.
— Não se preocupe — continuou — o destino do pequeno já estava traçado muito antes do dia de hoje, mesmo antes de você ou dos seus ancestrais pisarem na terra já estava escrito nas linhas do tempo.
A ruiva estava inconformada, as lágrimas desciam turbulentas pelo rosto pálido. O comandante nunca a tinha visto em estado tão lastimável como agora, esse não era seu feitio, Allagí não chorou nem implorou uma única vez enquanto era torturada por Geros nem mesmo quando estava prestes a ser executada por Ílios em praça pública.
— Mas… eu… eu jurei ao pai dele que o protegeria com a minha vida, eu… — a fala de Zoe era entrecortada por soluços amargos.
— Você não está descumprindo a promessa, pequena. — A silhueta borrada estendeu a mão sobre a cabeça da mulher. — Só faça o que eu mandar e o manterei escondido até que o dia chegue.
— Mas… mas senhora, não tem outra forma? — Zoe permanecia relutante.
A figura de pé continuava paciente, como se os questionamentos da ruiva fossem apenas a birra de uma criança pequena que não requer muita atenção.
— Não cabe aos mortais questionar os desígnios dos deuses, vá até o local indicado e espere até o pôr do sol para enterrar o amuleto, eu saberei se você desviar do seu caminho.
A mulher assentiu desolada e com uma reverência trêmula se pôs de pé. A criatura em seu colo se remexia e grunhia, protestando contra os panos que restringiam os movimentos do corpo. Os rosnados não eram de uma criança humana, também não se pareciam com os de um lobo, talvez fosse um som característico dos mestiços dessas duas espécies, o comandante cogitava sem reconhecer a vocalização.
De repente, um par de olhos reluzentes brilharam através da cortina, capturando a atenção de Kardia e fazendo com que abandonasse esses pensamentos. Zoe permanecia imóvel e a criatura havia se calado, até a fogueira parou de crepitar, mantendo a labareda alaranjada estática. Apenas aquela figura borrada se movimentava, pairando sobre o lamaçal.
O ar estava ficando turbulento e a cortina que nublava a visão do comandante o sufocava enquanto lutava para abandonar as lembranças. Com toda certeza essa era uma armadilha e estava escondida ali para impedir que um convidado indesejado avançasse sem permissão. Ele já tinha ouvido falar desse artifício e estava preparado para lidar com algo do tipo, só não esperava que a magia fosse tão esmagadora.
— Não adianta tentar, você ainda não está autorizado a sair — a voz rouca estava cada vez mais próxima, mas era impossível ver algo além de uma silhueta disforme.
— Você é o Urutau, não é? — Kardia se esforçou para que as palavras saíssem da garganta.
— Ah! Eu já fui chamada assim. — A figura parecia se divertir com a lembrança. — Mas essa é apenas uma das muitas formas que possuo.
Quanto mais o comandante se contorcia tentando alcançar o fio da adaga presa a cintura, mais o corpo era espremido pelas cordas invisíveis que o atavam.
— Assim você só vai conseguir se machucar, pequeno. — O Urutau acariciou o maxilar travado de Kardia. — Não adianta lutar, não há como escapar da minha magia.
— Você vai me prender aqui para sempre? — o homem rosnou entre os dentes.
— Claro que não, você é uma criança muito preciosa.
A figura riu complacente enquanto flutuava a centímetros do rosto tenso do comandante. O borrão escuro não tinha forma, apenas os olhos brilhantes a diferiam de uma sombra qualquer. Também não tinha boca, sua voz parecia vir de algum lugar além dessas lembranças, mas mesmo assim, Kardia tinha certeza que ela era real e que poderia o esmagar sem nenhum esforço se desejasse.
— Então me diga, o que quer de mim?
— O que eu quero de você? — repetiu zombeteira — Bem… eu quero que me faça um favor.
As amarras cederam um pouco, como se provocassem o convidado a ouvir com mais atenção a proposta. A voz era suave e gentil, quase calorosa, mas o comandante sabia que ela não estava realmente pedindo, a figura estava propondo um pacto e possivelmente ele não teria a opção de recusar.
— Se eu não aceitar não poderei sair daqui, certo?
— Ah!!!! — a voz riu alto — você é a criança que mais me diverte, sabia? Mas infelizmente você é precioso demais para ficar preso nessas lembranças por mais tempo, devemos ser rápidos, pequeno.
Kardia finalmente havia conseguido alcançar a adaga, se conseguisse distrair a criatura por mais um segundo poderia se libertar.
— Diga o que deseja, Urutau.
— Acorde a ave prateada. — Os olhos brilharam agudos. — Está na hora das engrenagens do destino voltarem a girar.
— Do… do que você está falando? Não existe tal coisa… Você está de sacanagem comigo ou…?
A criatura puxou o rosto do homem para mais perto, afrouxando as amarras. Kardia aproveitou o momento para deslizar o dedo indicador sobre o fio amolado da adaga, previamente embebida em uma mistura de Artemísia e raiz de Aspargo selvagem. A combinação das ervas poderosas era usada para intensificar o controle da mente sobre os sonhos, facilitando que a consciência do indivíduo despertasse de alucinações ou pesadelos.
— Muito bem, minha criança — a voz suave estava se dispersando junto com a névoa — eu sempre me divirto com você. Tome cuidado com a serpente, nos veremos em breve…
Ainda atordoado, Kardia tentou se levantar mas a cabeça girava e não conseguia parar de tossir. A visão estava embaçada e o cheiro adocicado das ervas venenosas do pantano não tinha se dissipado das narinas, a voz gentil ressoava em seus ouvidos mas ele sabia que não estava mais preso às memórias.
Recuperando um pouco do equilíbrio, se colocou de pé, apoiando a mão ensanguentada no tronco áspero. Não sabia quanto tempo exatamente havia ficado imerso nas lembranças, tudo pareceu acontecer tão rápido, mas sentia que passaram-se dias desde o momento que iniciou o ritual debaixo do Jacarandá.
— Onde eu estou? — sussurrou ao perceber a altura da árvore iluminada pela luz acinzentada do luar.
As cascas grossas da anciã reverberaram debaixo da palma do comandante, era como se um coração pulsasse dentro do tronco maciço. Não fazia sentido, mas ao invés de acordar sob o manto lilás do Jacarandá estava apoiado no Jequitibá-rosa que encontrou mais cedo. Isso nunca havia acontecido antes, tampouco ouviu relatos sobre pessoas despertarem de memórias em um lugar diferente do qual iniciou a cerimônia.
“Apesar que… naquele dia… Não, não pode ser…”. Flashs confusos do passado inundaram a mente.
A boca estava seca e o sangue parecia arder nas veias, quase como se quisesse fluir completamente pelo corte que brilhava na mão. A cabeça doía e girava, desorientado, o comandante sentia que alguém o observava atentamente. Puxando a haladie das costas apontou para a escuridão:
— Quem está aí? Saia de uma vez!
Apenas as folhas sopradas pelo vento se mexiam entre as sombras, mas era certo que alguém espreitava seus movimentos. Kardia tentou se acalmar mas era como se tambores rufassem sob a palma esquerda, desnorteando os sentidos e a consciência.
— Que porra é essa? — rosnou — O que está acontecendo aqui?
Em resposta, uma figura gigantesca se estendeu sob a luz da lua desenhando um par de asas monumentais sobre as árvores. Kardia não conseguia ver a criatura, mas sentia o poder esmagador daquela presença, mesmo que não passasse de uma sombra borrada pairando no céu naquele momento. O ser alado agitou os membros e um vento forte varreu a floresta, desequilibrando o comandante que caiu de joelhos.
No momento que a mão escorregou do Jequitibá-rosa a lua voltou a brilhar sem empecilhos, assim como apareceu, o par de asas sumiu sem deixar rastros. Talvez por não estar mais de pé, a tontura e o mal estar estavam melhorando e os ouvidos não zumbiam mais, mas a sensação de que alguém o observava persistia.
As folhas rasteiras de um arbusto próximo se mexeram e em menos de um segundo Kardia lançou sua adaga.
— Mais que caralhos você pensa que está fazendo, Mirrado?
Em um reflexo rápido, Dasos conseguiu desviar da lâmina que se enterrou na árvore ao lado. Acostumado aos ataques furtivos do comandante sempre estava em alerta, mas por alguns centímetros teria ganhado uma nova cicatriz no peito.
— Dásos — Kardia falou sem acreditar no que via — o que você está fazendo aqui?
— Eu que pergunto, que merda você está fazendo ajoelhado no meio da floresta a noite? Perdeu o juízo de vez?
A explicação não era tão simples, nem mesmo ele sabia bem o que tinha acontecido, então preferiu apenas ignorar o brutamontes.
— Não é da sua conta, de toda forma.
— A seu maldido… — Dásos rosnou enquanto desenterrava a adaga — porque tentou me matar dessa vez?
— A culpa é sua. — Kardia bateu a poeira das vestes e começou a andar na direção da cabana. — Porque ficou escondido me espiando sem dizer nada?
— Espiando? — o brutamontes gritou perplexo — você enlouqueceu? Eu mal cheguei e tive que desviar da sua lâmina. Se eu soubesse que estava aqui eu teria passado por outro caminho.
— Quanto a aquela sombra… o que você acha que era? — Kardia sussurrou, mais para si do que para o outro.
— Do que você está falando, Mirrado?
— Deixa pra lá… não é nada.
Os dois caminharam em silêncio de volta à casa. Ambos tinham mais dúvidas do que quando saíram para encontrar respostas e a única certeza que compartilhavam era a de que não estavam mais seguros.
Publicado por:
- GSK
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Escrevendo, desenhando, editando e fazendo mais algumas artes por ai.
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