A Maldição do Lobo Vermelho - Capítulo 11 - Sentimentos agridoces
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Cerca de uma hora havia se passado antes que Ílios quebrasse o silêncio aconchegante que envolvia o casebre:
— Você está dormindo? — perguntou em um sussurro quase inaudível.
Sem receber um retorno, encarou por alguns segundos o rosto tranquilo do garoto que permanecia deitado com a cabeça entre seu peito e ombro.
Devido aos esforços de Kardia, a figura de feições delicadas já não possuía um tom tão pálido na pele. Era certo que, para uma recuperação completa, ainda seriam necessários muitos dias de cuidados e refeições adequadas, mas já era possível vislumbrar a tímida beleza que despontava por detrás das formas esquálidas e maltratadas.
O ferimento do líder dos lobos também recebeu atenção e já não sangrava mais e, mesmo que não estivesse completamente recuperado, o simples fato do garoto ao lado estar a salvo já renovava suas energias.
Era difícil evitar esse sentimento, se afeiçoar ao menino era algo quase que natural para o guerreiro. Desde de pequeno foi ensinado, ou melhor, treinado a lutar pelos indefesos ou necessitados e ver o estado atual do garoto evocava lembranças da época em que essa lição foi marcada a ferro e sangue em sua mente.
Ele não tinha muitas memórias boas da infância, as horas dentro das masmorras passavam de maneira diferente e era muito difícil saber quando era dia ou noite do lado de fora. Mas, se havia algo de que lembrava com ternura, eram dos pequenos e raros momentos em que podia estar na companhia de Kardia e das outras crianças.
Buscar esses lampejos de luz era o que dava forças para aguentar o treinamento excruciante ministrado pelo pai. Dia após dia, a promessa de rever os amigos era o que o mantinha de pé. Nem a fome e as surras constantes o castigavam tanto quanto a solidão e por isso, havia prometido a si mesmo que libertaria os Guarás e que governaria de forma justa, para que nenhuma outra criança precisasse passar por isso.
Após o fatídico incidente que quase tomou a vida de Kardia, Ílios abriu mão de seu porto seguro e se isolou completamente dos amigos, transformando a temida solidão em uma companheira infeliz. Por mais que permanecesse cercado pelas mesmas pessoas, apenas os pesadelos compartilhavam de suas incertezas e dores.
A decisão de abraçar sozinho o peso de seu destino para ser um líder confiável, forçou o pequeno a crescer ainda mais rápido e a enterrar profundamente todo e qualquer sentimento de dúvida, medo e fragilidade no mais obscuro lugar do coração. Essa escolha o manteve lúcido, mesmo que as feridas da alma o perturbassem dia após dia. Porém, uma frase despretensiosa reacendeu um desejo há muito esquecido:
“Não se preocupe, eu estou aqui! Você não está mais sozinho.”
Mesmo sabendo que as palavras não foram uma promessa de fato e que estavam mais para uma tentativa desesperada de aplacar o sofrimento alheio, Ílios se permitiu desfrutar da sensação de não estar mais só por alguns instantes o que trouxe uma inquietação agridoce ao espírito.
Afastando os devaneios, juntou um pouco da palha seca da cama com o braço livre, formando um pequeno monte perto da cabeça de Fengári e, com um movimento delicado, deitou o garoto no novo travesseiro. Ele esperou alguns segundos antes de levantar e andar na direção da porta, observando o rosto que permaneceu tranquilo mesmo com a mudança de posição.
Antes de passar pelo limiar, arqueou o canto direito da boca em um sorriso quase ao dizer:
— Nada mais poderá lhe fazer mal, eu prometo.
O sol brilhava alto no horizonte e a melodia dos pássaros era acompanhada do farfalhar das folhas próximas que dançavam sob o regência da brisa perfumada da primavera.
Testando os músculos, Ílios esticou e flexionou os braços e ombros enquanto caminhava devagar seguindo o som das águas que corriam atrás da casa. Como esperado, o corpo protestou contra os alongamentos e uma fisgada aguda percorreu o dorso, marcando o rasgo profundo envolvido por bandagens e ataduras.
— Maldição, isso vai demorar mais do que eu esperava… — Depois de um suspiro doloroso continuou com um tom emburrado. — Se for para dizer “eu te avisei” ou algo do tipo não perca o seu tempo.
— Ah, claro! — Kardia saltou do galho em que estava empoleirado. — Como se desperdiçar o meu tempo não fosse tudo o que tenho feito cuidando de você!
Os dois se encararam por um segundo antes de revirarem os olhos. Apesar do encontro pouco amigável, caminharam lado a lado sem maiores provocações até o riacho de águas claras que serpenteava caudaloso entre as rochas.
— Obrigado por cuidar dele também… — Ílios sussurrou antes de entrar e sentir a água gelada — puta merda!
— Tanto faz… Um ou dois, quem liga? No final é mais do mesmo. — Seguindo o amigo, Kardia se abaixou mas desistiu de entrar depois de molhar as mãos. — Puta merda mesmo.
Se acostumando à temperatura, Ílios mergulhou emergindo logo depois no meio do rio já em sua forma lupina, enquanto o outro sentou de forma elegante em uma pedra coberta pela sombra.
— Não se esforce demais ou o ferimento vai abrir de novo — resmungou sem muita emoção.
— Está tudo bem, já não dói tanto assim — a voz grave carregava um tom desdenhoso.
Erguendo uma das sobrancelhas Kardia cruzou os braços, mantendo uma postura inquisitiva:
— O que foi? No que está pensando?
Os olhos verdes vagavam pelo rasgo comprido que se misturava aos pêlos, enquanto cenas da batalha sangrenta que quase ceifou sua vida queimavam na memória:
— É só que… Eu ainda não sou…
— Deixa pra lá! — interrompeu nervoso — Não estou interessado.
Kardia conhecia bem toda a angústia que o outro se esforçava em esconder. Aquela promessa feita a tantos anos na masmorra de Nychia ainda ardia na alma do líder dos lobos:
“Eu vou me tornar um guerreiro muito poderoso. Não! O mais poderoso de todos e irei proteger vocês!”.
Afrouxando o xale negro que cobria boa parte do pescoço, coçou a gargante antes de mudar de assunto:
— Na verdade, estou mais interessado em saber os detalhes de quando encontrou o filhote de humano.
— Hã? — O lobo piscou algumas vezes distraído. — Não há muito o que falar, já contei a vocês que precisei depender da boa vontade de uma criança… um frágil filhote de humano… Já que…
Ílios carregou uma melancolia fingida na voz enquanto uma veia saltava sobre a têmpora de Kardia, que já estava antecipando a provocação.
— …Já que meus comandantes estavam por aí, fazendo sabe se lá o que enquanto seu mestre estava para morrer de fome… sozi…
Antes que pudesse terminar, um balaço violento rasgou o ar em sua direção. As grandes orelhas vibraram e como um cão que pega feliz o galho lançado pelo dono agarrou a fruta redonda com a boca.
— Exxee foi um bom arremexxo, eu estava mexxmo com fo… — O gosto azedo impregnou o paladar e o lobo cuspiu indignado. — Que porra, Mirrado. Limão? É sério?
Rindo do sofrimento alheio, Kardia brincava com mais dois limões:
— Achei ter ouvido que meu mestre estava “morrendo de fome”.
Enxaguando a boca, o animal resmungava ofensas incompreensíveis, o veneno que plantou foi colhido muito rápido desta vez.
— Agora minha língua está formigando, você deveria buscar algo para eu tirar o gosto ruim da boca — falou manhoso.
O comandante retrucou com desdém:
— Eu? Por que deveria? Peça ao seu filhotinho mais goiabas.
O lobo estreitou os olhos e sorriu dissimulado, mas Kardia previu as maquinações do amigo e emendou:
— Aliás, era sobre ele que eu queria conversar.
Dando de ombros, Ílios mergulhou novamente antes de aparecer na margem próxima desta vez. Ele queria continuar provocando, mas os olhos azuis estavam brilhando agudos à sua frente. Essa expressão indicava que o comandante tinha alguma suspeita séria rondando os pensamentos.
— Essa sua cara… pergunte logo o que quer saber — rosnou insatisfeito.
— Eu não entendo bem de humanos e nem desejo, mas tem algo de errado com o seu filhote, Ílios.
O lobo revirou os olhos, contorcendo o rosto em uma careta de nojo:
— Pare de falar assim, fica parecendo que eu sou o pai dele.
— Você está agindo como um — retrucou.
— Não esto…
O comandante interrompeu:
— Não interessa, a questão aqui não é essa. O fato é que tem muitas coisas estranhas rondando esse garoto. Eu sei que você percebeu que a floresta estava reagindo à situação dele.
É claro que isso não havia passado despercebido ao líder dos lobos. Aquele dia, quando desceram da montanha o ar estava tão pesado que era quase impossível respirar. Assim que ele voltou da vila e entrou novamente na floresta a pressão estava esmagadora e todos os seus sentidos foram desorientados até aquele momento…
“VAMOS LOGO! SEJA LÁ QUEM VOCÊ É, DESFAÇA A BARREIRA, ME PERMITA ENCONTRÁ-LO ANTES QUE SEJA TARDE DEMAIS! Não vê que eu também desejo protegê-lo?”
A voz séria do companheiro afastou a memória angustiante:
— Dásos e eu corremos logo atrás de você mas não conseguimos segui-lo. Ficamos completamente paralisados assim que colocamos o pé na floresta. Como você conseguiu se mover?
O lobo desviou o olhar e falou cansado:
— Bem… eu não me lembro bem como aconteceu…
Desconfiado, os olhos azuis permaneciam fixos no animal:
— Hum… Outra coisa que está me incomodando é o fato de um filhote de humano ter cuidado de um lobo. A reação normal dessa espécie é fugir ou mesmo atacar quando estão em bando e não oferecer ajuda…
— Bem… — O lobo pensou por alguns instantes. — Ele é só uma criança solitária e inocente. Queria tocar nos meus pelos porque tinham a mesma cor dos cabelos da mãe que foi embora.
Kardia franziu as sobrancelhas enquanto tocava os lábios finos com o punho fechado:
— Hum… — resmungou — Naquele dia, as pessoas da vila falaram que a mãe do moleque era uma bruxa, não é?
— Algo assim… — O lobo encarou o amigo. — No que você está pensando?
O comandante refletiu por mais um tempo antes de retribuir o olhar. Os dedos da mão esquerda tamborilavam na pedra enquanto o punho direito acariciava a boca.
— Diga logo, Mirrado. Está me deixando nervoso.
— Não existem muitos humanos ruivos… — Kardia analisava cuidadosamente a reação de Ílios enquanto falava — menos ainda que consigam conjurar pactos com Urutaus.
O lobo sabia onde o comandante queria chegar com essa conversa. Ele mesmo se questionou algumas vezes, mas preferiu deixar a desconfiança para um outro momento. Os Guarás foram quase extintos por Ténebris e além dos habitantes do reino, os únicos lobos vermelhos de que se tinham notícias eram os que desertaram na Batalha das Masmorras.
Antes, os lobos que se submetiam às panteras eram levados até a capital para trabalharem nas mais diversas funções. Renegando sua própria espécie, alguns até mesmo pintavam os cabelos e esfregavam ervas de cheiro no corpo para esconder a origem. Por mais difíceis que fossem as condições, Ílios nunca conseguiu entender como era possível alguém abandonar seus familiares à própria sorte para viver junto aos carrascos.
Mas Adamastos conseguiu ver uma oportunidade e infiltrou lobos leais em meio aos traidores. Foi assim que conseguiu dar início a rebelião que libertou os primeiros Guarás das masmorras. É claro que houve retaliação e todos os lobos que viviam livre em Nychia foram caçados e executados.
Cinco anos depois, durante a batalha que matou seu pai, Ílios viu alguns soldados fugirem do campo de batalha até as florestas. Ele ordenou aos arqueiros que atirassem nos desertores mas alguns conseguiram escapar. Não havia tempo para segui-los então foram largados à própria sorte, mas isso sempre incomodou o líder dos lobos.
Kardia estava ao lado de Ílios quando tudo isso aconteceu e sabia bem que esse assunto o aborrecia, mas não podia deixar passar algo tão importante, então insistiu:
— O menino deve ter mais ou menos uns quinze anos… então talvez não seja o caso mas…
Um barulho de passos apressados interrompeu os guerreiros. Kardia cruzou os braços enquanto as grandes orelhas do lobo viraram na direção do som. Em alguns segundos, uma névoa brilhante encobriu o animal e um belo homem de cabelos compridos surgiu em seu lugar.
— Ah! Vocês estão aí!! — a voz de Fengári soou ansiosa — Achei… que tinham…
Mesmo que o garoto estivesse sorrindo agora era visível a preocupação em seu rosto. Kardia por sua vez estava irritado com a interrupção ao passo que o líder parecia satisfeito.
— Ido embora? — Ílios completou zombeteiro enquanto se aproximava do pequeno — Não pense que se livrará de nós tão facilmente, filhote.
Os olhos âmbar brilharam e as bochechas ganharam um tom avermelhado. Era como se um peso tivesse sido retirado de seus ombros delicados e finalmente pudesse respirar aliviado. Ílios retribuiu o olhar carinhoso e sorriu, puxando o garoto para um abraço. Incomodado, Fengári se contorceu e tentou se soltar, mas não era páreo para o guerreiro.
Kardia revirou os olhos em desaprovação:
— Solta o moleque, não vê que está o sufocando?
— Não é isso — Fengári empurrou o peito do homem que o apertava — É que… você está cheirando a cachorro molhado… O que você estava fazendo?
Largando o garoto, Ílios piscou algumas vezes antes de gargalhar.
— Não entendo a graça disso — o garoto disse sério — Você está encharcado, fedorento e seu cabelo está uma bagunça.
Ílios ainda não havia se recuperado do ataque de risos, mas notou a impaciência do comandante.
— Certo, certo. Você tem toda razão. Façamos assim, vá na frente e prepare as coisas enquanto eu me lavo. Vou deixar você pentear meus cabelos já que não posso me esforçar.
O rosto de Fengari se iluminou ao assentir e correr em direção ao casebre ao passo que Kardia revirava os olhos pela décima vez.
— Você realmente está fedendo — acusou o comandante.
— Como se eu pudesse fazer algo a respeito…
— Tem lavanda do outro lado do rio, vai ajudar. — Kardia deu alguns passos em direção à floresta. — E quanto ao que conversávamos?
Uma névoa brilhante envolveu o líder dos Guarás antes de um grande lobo vermelho saltar em um só pulo às margens do rio. Virando para o comandante rosnou:
— Vá em frente, eu confio na sua intuição!
Publicado por:
- GSK
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Escrevendo, desenhando, editando e fazendo mais algumas artes por ai.
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