A Maldição do Lobo Vermelho - Capítulo 09 - Cicatrizes da alma
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— Ah, você acordou… — Kardia disse em um tom desinteressado — Seja um bom garoto e não se mexa, sim?
Atordoado, o pequeno tentou se levantar da cama improvisada, mas foi impedido pelas mãos ágeis que esfregaram um bocado de ervas nos ferimentos de sua cabeça:
— Eu mandei ficar quieto, filhote!
Tímidos raios de sol deslizavam pelos buracos espalhados no forro do casebre, iluminando a poeira fina que flutuava dentro dos cones de luz. Lá fora, os pássaros cantavam despreocupados, embalados pela brisa perfumada que marcava o início da primavera.
Esse era apenas mais um dia comum no alto da montanha e se não fosse o gosto amargo que dançava no paladar e a figura irritante que permanecia frustrando suas tentativas de se colocar de pé, o garoto não teria dúvidas de que tudo o que aconteceu antes não tinha passado de mais um sonho ruim.
— Onde ele está? Quem é você? O que aconteceu? Ai!
— Que parte do “não se mexa” você não conseguiu entender, moleque? — rosnou.
— Mas… onde el…
— Pelos céus! Não me diga que a pancada na cabeça afetou sua audição?
— Não é isso, eu só quero saber…
— Arre… Ílios está ali atrás. — Apontou após revirar os olhos. — Respondendo suas outras perguntas, pode me chamar de comandante Kardia. Sobre o que aconteceu… Bem… Nã, nã, nã, nã, não!
Forçando o menino a permanecer deitado, puxou a adaga com a outra mão:
— Se não sabe como usar, não vai fazer mal se eu arrancar suas orelhas, não é mesmo?
O pequeno se encolheu, arregalando os olhos:
— N-não… p-por favor, eu entendi… V-vou ficar quietinho, j-juro.
— Muito bem então! Bom garoto. Eu irei buscar um pouco de água fresca, não saia daí ou além das orelhas vou arrancar suas pernas também, entendeu?!
O jovem concordou com a cabeça, enquanto observava o comandante atravessar o limiar esburacado. Essa era a primeira vez que via outras pessoas com o cabelo vermelho além da mãe e isso trouxe um alívio complicado ao coração. Lá no fundo, sabia que tinha algo de especial que os diferenciava dos outros moradores da vila, só não conseguia entender se isso era bom ou ruim.
Mesmo que não quisesse admitir, houve um tempo em que as acusações repetidas e as mudanças constantes o fizeram questionar se eles eram mesmo seres amaldiçoados a vagar pela terra, levando a má sorte e o azar por onde andassem.
Nessa época, contudo, não parecia um fardo tão pesado, já que podia dividi-lo com a mãe. Mas depois que ela se foi, ficou insuportável aguentar o peso que esmagava o estômago todas as vezes que imaginava que permaneceria sozinho na escuridão pelo resto da vida.
Passando a mão sobre a barriga dolorida, o pequeno não pôde mais se segurar. Apertando as ervas que estavam grudadas à testa, levantou com cuidado, equilibrando o arranjo feito por Kardia.
Sorrateiro, andou até a porta e deu uma boa olhada do lado de fora:
— “Seja um bom garoto”, quem ele pensa que eu sou? Um cachorro?
Sem ver nenhum sinal do comandante, se esgueirou até a forragem que servia de cama para o ruivo. Em sono profundo, seu rosto estava tão pálido quanto da primeira vez em que se encontraram, mas ao invés de uma expressão pacífica, as sobrancelhas franzidas e os olhos bem apertados revelavam a angústia que o afligia por detrás das pálpebras.
— Não… não foi minha culpa… — A voz engasgada não passava de um sussurro.
— Sua culpa? — O garoto ajoelhou do lado do homem, segurando os medicamentos que escorriam de sua testa com uma das mãos.
Ílios balbuciava frases desconexas enquanto amassava as pontas do xale negro que cobria seu corpo:
— Eu… não quero mais… não me deixe aqui, por favor…
— Ílios? — O jovem se abaixou, testando o nome que havia ouvido a pouco.
O líder dos lobos estremeceu e lágrimas rolaram dos olhos ainda fechados:
— Por favor! Não… não me deixe aqui! Eu… eu imploro, não quero mais ficar sozinho.
Imitando os gestos da mãe, o garoto se aproximou daquele rosto em sofrimento e acariciou as bochechas descoradas com ambas as mãos:
— Não se preocupe, eu estou aqui! Você não está mais sozinho. Isso é só um pesade…
Como água sobre o fogo, as feições de Ílios suavizaram e sem prévio aviso, os braços fortes do guerreiro contornaram os ombros do pequeno, puxando-o para si e o envolvendo em um abraço apertado.
— Í-Ílios — o menino gaguejou, assustado com a atitude inesperada.
Alguns segundos, ou talvez minutos se passaram antes do líder dos lobos sussurrar:
— É uma promessa?
— O-o quê? Do que você está falando? Dá para me largar?
O homem não respondeu, tampouco o soltou. Ele se contorceu um pouco tentando escapar, mas como esperado, sua força não era o suficiente. Admitindo a derrota, se assustou ao perceber que a brisa dessa manhã estava estranhamente aconchegante e que era possível que o responsável por essa sensação fosse o estranho que continuava o espremendo contra o peito.
— Prometa que não vai sair correndo dessa vez ou não vou te soltar — Ílios provocou, apertando um pouco mais o abraço.
— Quando eu…? Ah… — suspirou — tanto faz. Prometo, prometo. Agora me larga.
Ílios afrouxou os braços, mas não o suficiente para que o outro pudesse se levantar.
— O que foi agora? Eu já prometi, não prometi? O que diabos você quer mais?
Era inegável que o homem estava se divertindo com a situação e o garoto sabia disso. Porém, o sorriso quase infantil, que ondulava nos cantos dos olhos, foi substituído por um ar solene quando continuou:
— Quero que responda a pergunta que não pude fazer antes: Qual o seu nome, pequeno?
Primeiro a surpresa, depois um sentimento estranho fez com que gaguejasse:
— M-meu nome é Fengári!
— “Fengári”… “Fengári”… — O líder dos lobos repetia debochado.
— O-o que tem de errado com meu nome? — Intrigado, franziu as sobrancelhas grossas enquanto esperava a explicação.
— Nada, nada! É só que…
— “Só que” o quê?
Ílios se divertia com a curiosidade estampada no rosto do garoto e não pôde evitar provocá-lo um pouco mais.
— É só que… — Encarando os olhos brilhantes que estavam fixos nos seus, o homem fez uma cara deslavada antes de continuar. — Fengári parece um nome muito imponente para um garoto tão pequeno e desconfiado como você…
— O-o quê? O QUÊ? — berrou, se esforçando para escapar — Como ousa?
Apertando ainda mais o menino em seus braços, Ílios atiçou enquanto gargalhava:
— Ah! Quase me esqueci, sentimental também!
— Seu miserável! Me solte agora!!
Com as bochechas vermelhas e com o sangue fervendo, Fengári se debatia enquanto cuspia inúmeras ofensas e juras de morte. Mas, quanto mais o menino se enfurecia, mais o outro ria e o apertava.
— Ai! Calma… para um garoto mirrado você até que é bem forte!
— Seu desgraçado! Eu devia ter te deixado morrer!!
Parado do lado de fora do casebre, Kardia observava em silêncio as gargalhadas de seu mestre. Realmente, fazia muito tempo desde que o vira tão despreocupado. Sem querer, um pensamento confuso ecoou em sua cabeça:
“Será que alguma vez ele já tinha sorrido assim?”
Ílios assumiu muito cedo a responsabilidade de cuidar de um povo destruído. Mesmo sendo apenas uma criança, Adamastos tratava o filho como um soldado, o treinando incansavelmente para que liderasse os Guarás após sua partida.
O antigo líder dos lobos sabia que fugir de Nychia era apenas o primeiro passo e que seria necessário um exército forte para libertar o restante do povo que permaneceu preso nas masmorras. Adamastos sabia também que as chances de seu plano funcionar eram muito baixas e que, quem guiaria os Guarás à terras de paz não seria ele.
Assim, não houve espaço para viver a infância ou sorrir de forma despreocupada. Mesmo sendo apenas uma criança, a vida de centenas de pessoas pesava sobre os pequenos ombros de Ílios.
— Não, acho que nunca o vi sorrir assim — Kardia murmurou.
Fagulhas do passado se acenderam em meio às risadas e as ameaças do presente, misturando o cenário atual com resquícios enevoados de memórias do comandante.
Gritos e pedidos de socorro eram abafados pelo som lancinante de ossos e carne sendo estraçalhados.
Um amontoado de crianças sujas se encolhiam no fundo da cela fria e enlameada, enquanto os mais velhos lutavam para abrir as grades das inúmeras câmaras que aprisionavam os Guarás.
O cheiro de morte era sobrepujado apenas pelo odor da fumaça que preenchia os corredores pestilentos das masmorras de Nychia, tornando o ar ainda mais sufocante.
O fogo atiçado pela rebelião que acontecia logo acima, trazia um pouco de luz ao local claustrofóbico e indicava a direção da liberdade.
Em meio ao caos, a voz doce e infantil de Ílios iluminava a escuridão:
— Kardia, não chore! Eu prometo que vou te proteger!
— Você promete mesmo? Eu estou com muito medo Lili. Minha mãe… ela… — Não havia mais forças para segurar as lágrimas.
Mesmo assim, Ílios foi forte. Forte por nós dois, forte por todos nós.
Apertando o abraço que nos unia ele respondeu confiante:
— Prometo! Eu vou me tornar um guerreiro muito poderoso. Não! O mais poderoso de todos e irei proteger vocês! É uma promessa.
Todos tremiam de medo, mas a ingênua confiança dele trouxe um pouco de alento aos nossos corações aflitos.
— Agora vamos lá! Se ficarmos encolhidos aqui, vão nos deixar para trás! — Ílios estendeu sua mão enquanto sorria. — Meu pai está nos esperando, não podemos decepcioná-lo.
Ele era minha esperança, minha única chance, tudo o que tinha sobrado no final, por isso me agarrei com todas as forças em seus braços.
— Mas Lili, eu estou com muito medo.
— Não se preocupe, Kardia, eu nunca soltarei sua mão.
Naquele dia, um pequeno número de rebeldes conseguiu escapar da escravidão e, no meio deles, estavam Ílios e eu. Foi naquele dia também que jurei, que independente do caminho que escolhesse, eu o seguiria.
Como havia prometido, Ílios não largou a minha mão e mesmo depois, mesmo quando eu quis desistir de mim ele não a soltou. Se não fosse por sua coragem, eu não estaria vivo.
Ele também não me abandonou depois daquele incidente…
Por um instinto, Kardia tocou no ponto elevado da garganta. Sentindo o contato da pele com a pele, seus olhos se arregalaram e, de forma brusca, foi retirado daqueles devaneios.
Um sentimento doloroso tomou conta do coração, enquanto os dedos compridos tocavam a linha entalhada no pescoço. Avançando tortuosa de orelha a orelha, ela serpenteava de maneira grosseira logo abaixo do pomo de Adão. Aquela cicatriz, dentre todas as que a vida lhe causou, era a que mais queria esquecer.
Ao contrário das várias marcas de guerra pelo corpo, que eram lembranças orgulhosas de lutas e combates, essa era a mancha que sinalizava sua fraqueza. A cicatriz, que lembrava do golpe que feriu muito mais que a carne, estraçalhou de forma impiedosa seu orgulho. Essa era a vergonha que o comandante se esforçava para esconder.
Com a voz engasgada e um mau humor pior do que o habitual, Kardia suspirou fundo antes de ultrapassar esbravejando o limiar da casa:
— Vocês são idiotas ou só estão me provocando?
Fengári se encolheu um pouco, lembrando da ameaça que o homem fez antes de sair. Já Ílios, acostumado com o temperamento ruim do amigo, não se abalou.
— Parece que já estão totalmente recuperados, não é? — Puxando com força o xale amassado do chão, o homem continuou berrando. — Já podem se virar sem mim. Espero que moram de forma lenta e com muita dor.
Sacudindo a poeira do lenço, o comandante não perdeu tempo e o enrolou no pescoço enquanto caminhava novamente para fora da casa. Sentindo a proteção do acessório, suas feições se amenizaram um pouco, mas o humor já estava estragado.
— Não leve o que ele fala a sério. — Ílios acariciava os cabelos revoltos do garoto assustado. — Kardia tem um péssimo temperamento, mas é uma ótima pessoa. Além do mais, se não fosse por ele, provavelmente estaríamos mortos, não é?
Com um sorriso gentil, o ruivo ajeitou as ervas, que, a essa altura, estavam espalhadas por todo cabelo de Fengári.
Se libertando do abraço embaraçoso o garoto resmungou:
— Acho que sim. De qualquer forma… me desculpe e… obrigado.
— Hum? — Ílios encarava intrigado o jovem que se esforçava para esconder o rosto. — Do que está falando?
— Bem… você me salvou e acabou se metendo em confusão por minha culpa. Além disso, você estava dormindo e eu acabei te acordando… eu devia ter ouvido o rabugento e não ter te importunado…
— Ah! Que bobagem! — O líder dos lobos o puxou novamente para perto de si. — Você não sabe o bem que me fez!
Recostado no ombro esquerdo de Ílios, o garoto se deu conta do quão graves eram aqueles ferimentos, e que seus rompantes poderiam ter causado sérias consequências ao guerreiro.
— Você não… deveria ficar fazendo isso — a voz de Fengári estava baixa e um pouco desconcertada — suas feridas vão acabar abrindo se continuar se esforçando.
Com um tom mais sério, mas mantendo o sorriso no rosto, o líder dos lobos se ajeitou na cama improvisada. Puxando o garoto para acomodá-lo melhor entre seu ombro e peito esquerdo, Ílios cruzou as mãos por trás da própria cabeça.
Com um apoio mais alto e confortável, o grande guerreiro passou alguns minutos contemplando o jogo de luzes que entrava pelo teto esburacado antes de responder:
— Você realmente não faz ideia…
O coração de Fengári estava acelerado. Ele queria muito dizer “então me conte”, mas sentia que esse não era o momento. Ílios parecia perdido nos próprios pensamentos, mas não em sofrimento, como da última vez. Talvez fosse melhor não perguntar, talvez fosse melhor apenas aproveitar o silêncio.
Balançando no alto de uma árvore próxima, o xale negro capturou a gota solitária que conseguiu escapar daquela represa azul.
Aparentemente, algumas cicatrizes doem para sempre.
Publicado por:
- GSK
-
Escrevendo, desenhando, editando e fazendo mais algumas artes por ai.
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