A Maldição do Lobo Vermelho - Capítulo 07 - As brasas da liberdade - Parte II
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- Capítulo 07 - As brasas da liberdade - Parte II
Preparados para o impacto, os soldados apertaram a parede de escudos. Sobrepostos, os círculos de madeira escura assemelhavam-se à carapaça gigante de uma tartaruga negra. Dentro da composição, ombro a ombro os guerreiros se espremiam a fim de neutralizar qualquer fresta, por menor que fosse.
Kardia e Dásos já haviam descido das torres e se juntado a Ílios, reforçando os flancos do arranjo.
Essas eram as áreas que mereciam maior atenção na barreira, principalmente a ala leste. Além de ser um dos pontos mais vulneráveis aos ataques, devido ao movimento inerente da formação de escudos, os soldados tendiam a rotacionar levemente para a direita, buscando o benefício da proteção do escudo vizinho. Assim, era preciso força e um comando atento para manter a configuração no lugar.
Acima das muralhas os guerreiros tencionaram as flechas, fazendo com que, as centenas de setas, refletissem morbidamente a fria luz cinza que escapava entre as nuvens. Em seu posto, Fides liderou os arqueiros:
— Preparar!
Vários focos incandescentes cintilavam no alto das torres de observação. As longas flechas previamente embebidas em óleo, foram atiçadas nas chamas, aumentando exponencialmente os pontos em brasa na vasta escuridão noturna.
O exército inimigo não estava intimidado e continuou avançando impetuosamente.
— Fogo! — ordenou a comandante.
Acompanhada do som agudo das penas rasgando o ar, uma saraiva flamejante riscou o céu. Como estrelas cadentes, as afiadas flechas incendiavam aquilo que tocavam e em segundos, o campo de batalha se tornou um mar de chamas.
Mirando na nuca das panteras, onde uma larga couraça protegia o ponto mais vulnerável do animal, as longas setas tinham um objetivo claro. O couro dos felinos era extremamente resistente e mesmo que dezenas de dardos acertassem seu corpo, elas continuavam seguindo adiante. Porém, era necessário que apenas um dos ataques atingisse o ponto fraco, para que as bestas fossem dominadas.
Foi para esse momento que os arqueiros treinaram incessantemente e, fazendo jus a árdua preparação, dezenas de felinos tombaram agonizantes sob as flechas inimigas.
Iluminando a perder de vista, a escuridão já não era mais abrigo do inimigo e em meio ao caos ardente, as tropas rivais finalmente se chocaram.
O estrondoso ruído da colisão, foi rapidamente suprimido pelo som agudo de várias garras e presas que se debatiam contra as fileiras de escudos, buscando freneticamente, alguma brecha para dilacerar os oponentes. Do outro lado, os experientes soldados suportavam o peso das investidas, protegendo o companheiro à sua esquerda com seu escudo enquanto estocava o inimigo com sua arma à direita.
Em minutos, a última linha de defesa dos Guarás estava coberta de sangue, tripas e urros. O moedor de carne, como já era conhecido, estava cumprindo o seu nefasto papel. Muito além de apenas “segurar” a investida inimiga, a barreira de escudos era incumbida de minar as forças adversárias.
Aproveitando as estreitas brechas formadas pelo encontro de um escudo e outro, os lobos das fileiras posteriores golpeavam incessantemente com as longas setas, ao passo que, os soldados da primeira fileira, usavam lâminas curtas para dilacerar os membros que tentavam avançar pelos espaços.
À frente, o exército inimigo não cogitava a hipótese de ceder, pelo contrário, impelidos pelo instinto, as panteras usavam toda a força que possuíam para romper a barreira. Onda após onda, mais animais se juntavam, esmagando com seu peso absurdo os primeiros combatentes de ambos os lados.
Escalando a crescente parede de carne, algumas bestas conseguiam chegar ao topo da formação, aumentando exponencialmente o trabalho das lâminas curtas dos lobos. Mesmo com os movimentos compassados e bem orquestrados, era impossível sair ileso do moedor e foi desta forma que as garras inimigas solveram seu bocado de sangue.
Escavando e arranhando a madeira, dezenas de panteras se equilibravam sobre os escudos. O peso extra apoiado sobre o ângulo complicado fazia com que pequenas fendas surgissem esporadicamente na defesa. Porém, com a mesma velocidade que a luz agourenta do luar transpassava a proteção, o escudo do guerreiro ao lado era ajustado a fim de cobrir o espaço mortal.
No entanto, a força dos lobos não era infinita e, à medida que os astros se moviam no céu, mais brechas surgiam.
Dentro da abrasadora formação, suor e sangue se misturavam. O rastro gélido da brisa que ondulava pelas aberturas forçadas era quase um alívio se não viesse seguido de afiados punhais. As unhas dos inimigos assemelhavam-se a adagas e mesmo uma ínfima fresta tornava-se uma guilhotina em potencial.
— SUPERIOR DA TERCEIRA! — gritou Ílios.
Mas antes que a ação fosse tomada, um dos soldados que guardava a terceira fila tombou de joelhos enquanto sangue jorrava de sua cabeça decepada. Rapidamente, o guerreiro que estava a destra girou seu gládio, afanando em troca, o braço do assassino.
Ao mesmo tempo, o homem que protegia o flanco esquerdo do soldado abatido fechou o vão e dois lobos que estavam nas fileiras detrás correram para o local. O primeiro assumiu o lugar do homem caído e o outro, arrastou o corpo inerte para que não atrapalhasse a movimentação do arranjo.
Enquanto isso, uivos secos soaram das torres laterais, anunciando a tentativa de invasão pelas encostas. Os jovens soldados colocaram-se a postos, enquanto as rochas íngremes e os experientes arqueiros se incumbiam de fragmentar a formação inimiga.
Os novatos possuíam uma boa capacitação bélica, faltando concluir os níveis avançados concernentes às habilidades físicas e de mudança de forma.
Todavia, com os ataques consecutivos, o exército não poderia se dar ao luxo de poupar nenhuma espada e, mesmo com o treinamento incompleto, foram destacados para uma importante função tática: eliminar aqueles que conseguissem invadir pela muralha, protegendo assim, não apenas os civis, mas também as costas dos lobos que que permaneciam na formação fixa.
Cientes de seu dever, os jovens soldados se espalharam, seguindo as laterais da montanha. Lutando bravamente, estocavam e cortavam as feras negras que desciam como formigas as paredes de pedra. Mesmo com a nítida disparidade de forças, os guerreiros não se acovardaram e, dispostos a entregar suas vidas em prol da promessa de Ílios, marcharam de encontro às presas inimigas.
Mesmo em desvantagem, os lobos lutariam até o fim por sua liberdade.
As horas se arrastavam sem que nenhum dos lados cedesse à pressão. Durante esse tempo, ritmicamente as flechas riscavam o céu, caçando cobiçosas a sua fração de mortes; já a linha que delimitava o embate, havia se tornado um amontoado de carne e sangue pisoteados que desequilibrava os atacantes.
O ar estava cheio de morte e sofrimento e as lamúrias daqueles que não veriam o dia raiar preenchiam o campo de batalha. Com o adiantar da noite, o fétido odor de sangue e dejetos misturados ao calor escaldante, exauriam não apenas a força física dos guerreiros como também seu ânimo de combate.
A volumosa horda felina foi dizimada pela metade em um único e certeiro ataque e a tropa restante vinha sofrendo baixas consideráveis ao longo da batalha. Já o exército dos lobos tinha permanecido firme até ali, mas as consequências do árduo embate estavam ficando cada vez mais nítidas.
Dentro das muralhas, os valentes soldados sacrificavam suas vidas, arrastando consigo o maior número de bestas negras que conseguiam. Vendo que os novatos não aguentariam muito mais tempo, Fides uivou de forma entrecortada, mudando a orientação de seus subordinados.
Entendendo a ordem, os arqueiros tentaram compensar as espadas a menos, concentrando esforços para proteger a retaguarda da carapaça de escudos.
Do lado de fora, Ílios permanecia apoiando o flanco direito da formação, enquanto que, Dásos e Kardia, haviam assumido os lugares de soldados muito feridos na vanguarda. Já Ténebris, observava a uma distância segura o desenrolar do confronto enquanto a frequência das flechas diminuía drasticamente.
Com um número cada vez maior de inimigos cruzando as montanhas, as setas aliadas pararam de rasgar os céus de fora da muralha. Aproveitando o momento em que os dardos cessaram, o rei golpeou com os calcanhares a gigantesca fera em que estava montado, rumando violentamente na direção dos escudos.
Prevendo a intenção do adversário, Dásos gritou:
— FORMAÇÃO DE CONTENÇÃO!
Na mesma hora, os guerreiros da segunda fileira largaram as lanças e se viraram, apoiando o dorso contra as costas dos soldados da primeira fileira. Estes, por sua vez, sustentaram os escudos com ambas as mãos, deixando a função de ataque para os lobos das últimas filas.
Como um demônio das profundezas da terra, o pesado animal marchou cegamente mirando o flanco destro do arranjo; empurrando e pisoteando todos que estavam pelo caminho sem fazer distinção de inimigo ou aliado. Era assim que Ténebris tratava os demais, como peões descartáveis que possuem apenas um objetivo, cumprir as vontades do rei.
E a vontade do rei era clara.
Esmagando aqueles que permaneciam em sua rota, a besta sombria, instigada pelos golpes de seu cavaleiro, atingiu com uma força descomunal a defesa de madeira que se estraçalhou com o impacto monstruoso. Graças ao julgamento rápido de Dásos, a criatura não atravessou por completo a formação, mas infelizmente, a parede de escudos havia sido comprometida.
Valendo-se do impulso gerado na colisão, Ténebris saltou na direção de Ílios, e assim, em um piscar de olhos, o cenário mudou completamente.
A tropa dos lobos recuou para dentro das muralhas, mas já era tarde demais. O exército negro ainda possuía vantagem numérica e rapidamente cercou os oponentes. A partir daí, uma batalha generalizada inrrompeu na entrada dos domínios dos Guarás.
Preso do lado de fora do paredão rochoso, Ílios travava uma luta pessoal contra o rei inimigo. Apesar do cansaço, o líder dos lobos lutava com todas as forças. O ódio que fluia de seu coração preenchia de energia todos os músculos.
Consumido pelo mesmo sentimento, o rival possuía a vantagem. Além do fato das panteras serem superiores em tamanho e força, Ténebris não havia se envolvido na batalha até o momento, enquanto Ílios, permanceu ao lado da formação de escudos durante todo o confronto. Entretanto, isso não foi o suficiente para apagar o brio daquele que tinha tanto a defender.
— Finalmente! — Sorriu o rei com sua larga espada a postos.
— Se estava tão ansioso para morrer deveria ter se juntado à luta a mais tempo — provocou Ílios enquanto erguia suas armas gêmeas à frente do corpo, em posição de ataque.
Os dois se encaravam ferozmente enquanto andavam em direções opostas, formando um círculo no chão enlameado. Não havia chovido nos últimos dias, mas a quantidade de sangue vertido desde o início do cerco, foi o suficiente para tornar a terra molhada e pegajosa.
Alargando seu sorriso, de forma quase doentia, o rei retrucou:
— AH! Sua língua afiada será um troféu que adorarei exibir!
Com um brilho diabólico nos olhos, Ténebris saltou em direção ao rival.
Correspondendo à provocação, Ílios impulsionou o solo com o pé de apoio, levantando uma grossa camada de barro viscoso enquanto corria de encontro ao inimigo.
Um som alto e estridente marcou o encontro das lâminas que, refletindo o campo de batalha, assemelhavam-se a dragões de fogo, prontos para consumir o que tocassem.
Com uma força descomunal, o rei brandia uma pesada lâmina com extrema destreza, fazendo com que Ílios precisasse se defender com ambas as espadas. Cortando e estocando, Ténebris não abria brechas para que o ruivo revidasse, assumindo assim, o comando da batalha.
— Estou decepcionado! — Riu o líder inimigo enquanto desferia outro pesado golpe. — Seu velho pai me deu muito mais trabalho!
Enfurecido com a provocação, Ílios se defendeu, cruzando as armas gêmeas sobre a cabeça e apoiando um dos joelhos no chão.
— Seu maldito! COMO OUSA? — praguejou o lobo enquanto usava todas as forças para contra atacar — Você nunca mais falará dele com essa boca imunda!
Com um impulso repentino, Ílios descruzou as espadas, recebendo de bom grado o maciço golpe em seu ombro esquerdo. A ação pegou Ténebris de surpresa e, antes que o rei pudesse se recompor, o líder dos lobos usou o restante da energia para lançar um ataque derradeiro.
Com a destra livre, Ílios brandiu ferozmente a espada na horizontal, desenhando um corte limpo e agudo no ar, impossível de ser defendido.
Ainda em choque, o rei inimigo soltou sua arma, cambaleando alguns passos para trás. Mesmo segurando fortemente o próprio rosto, nada impedia que incessantes rajadas de sangue escapassem por entre os dedos. Seus olhos estavam arregalados e era impossível distinguir se o motivo era a dor lancinante ou a incredulidade no que acabara de acontecer.
Porém, o ímpeto heróico de Ílios custou caro. A força monstruosa do golpe de Ténebris retalhou couraça, tecido, pele e músculos do homem; desenhando um caminho escarlate do ombro até o abdômen.
O líder dos lobos permanecia com um dos joelhos apoiado na terra enlameada, mantendo a lâmina que se partiu erguida diante de si. Mas, apesar da pose ameaçadora, sua cabeça pendia suave à direita enquanto o sangue irrompia vertiginosamente ao chão.
Um longo uivo ressoou melancólico sobre o topo da torre de observação central: o reino dos Guarás havia caído.
Publicado por:
- GSK
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Escrevendo, desenhando, editando e fazendo mais algumas artes por ai.
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