A Maldição do Lobo Vermelho - Capítulo 05 - Opiniões divergentes
- Início
- Todos Projetos
- A Maldição do Lobo Vermelho
- Capítulo 05 - Opiniões divergentes
Um dia e uma noite se passaram antes que a febre de Ílios cedesse. Nesse período, Kardia alimentava e cuidava dos acamados, enquanto Dásos se ocupou em retornar à alcateia.
— Meu amigo! Que bom que voltou! Estava preocupado — uma voz grave e rouca soou animada — Vocês o encontraram?
Um homem de longos cabelos e barba branca caminhava lentamente em direção ao recém chegado.
— Sim! — Dásos respondeu ofegante.
— Graças aos céus! E como ele está? Sinto cheiro do sangue de Ílios em suas roupas.
— Seu olfato sempre me impressiona, Geros.
— É como dizem: “quando se perde um dos sentidos os outros se aguçam” — o tom era gentil e exalava certa sabedoria.
Geros era um homem vivido, experimentado nas artes da guerra e da sobrevivência. Seu corpo, apesar de apresentar os declínios da idade, ainda era forte e capaz. Mesmo sem poder enxergar, conseguia descrever com perfeição a situação ao redor, sendo o primeiro a sentir a chegada ou a partida de alguém, além de poder identificar a diferença sutil entre uma erva medicinal e uma venenosa, sem ao menos tocá-las.
Na ausência de Ílios, era ele quem permanecia no comando.
— Sim, de fato. Ílios está gravemente ferido. Kardia permaneceu cuidando de suas lesões enquanto eu vim vê-lo, senhor.
— Entendo. Não poderia ser diferente — a voz tornou-se baixa e reflexiva — a última batalha foi um golpe que demorará muito tempo para ser superado.
Os dois caminharam na direção de uma abertura estreita em meio às rochas.
— Dásos, tente permanecer calmo, os ânimos aqui não estão dos melhores. Tudo bem?
— Hum…
Ao ultrapassá-la, uma comprida e escura caverna se mostrava preenchida por rostos desconsolados. Os que ali estavam, eram os sobreviventes da batalha sangrenta que mutilou e destruiu todo o reino dos Guarás. Graças ao audacioso plano de Ílios, apesar de abalados, haviam poucos feridos em meio aos civis refugiados. Isso, porém, não era suficiente para melhorar a moral daqueles que deixaram tudo para trás.
— O que há de errado com eles? — Dásos rosnou — não parecem nem um pouco agradecidos por estarem vivos!
— Vivos? Que tipo de vida é essa? — grunhiu uma mulher enquanto se levantava do chão pedregoso — Presos em uma caverna gelada e escura… mal sabemos quando é dia ou noite lá fora.
— Sim! — Um homem que mancava fez coro às acusações enquanto chegava mais próximo da mulher. — Além disso, a comida está cada vez mais escassa. Mesmo quem não está ferido está ficando doente por viver nessa imundície.
Geros suspirou cansado ao ouvir as reclamações repetidas. Enquanto isso, mais vozes se juntaram aos protestos:
— Vejam! Dásos está limpo, provavelmente bem alimentado. Esses dias que ficou sumido lhe fizeram muito bem!
— Aposto que nosso senhor está ainda em melhor situação! Vivendo tranquilo enquanto seu povo chafurda nesta lama podre e pestilen…
— CALE-SE! — Dásos ordenou suspendendo pelo pescoço o homem que acabara de falar.
Todos na caverna arregalaram os olhos enquanto se encolhiam diante da fúria do grande homem. Geros, que já previa que as coisas não acabariam bem, suspirou mais uma vez:
— Dásos, mantenha a calma, sim? Explique a situação a eles e irão entender.
— EXPLICAR A SITUAÇÃO? — O brutamontes apertou seus olhos suspendendo mais alto o homem que se debatia sem fôlego. — Eu não devo explicações, muito menos meu mestre! ESSES MAL AGRADECIDOS! Não fazem ideia de quantos perderam a vida para que essa corja conseguisse escapar. Reclamam por passar alguns dias nesta caverna… já se esqueceram dos anos que passaram presos aos grilhões das masmorras de Nychia.
— P-Por… por f-favor… — O refém implorava por misericórdia.
— Dásos, solte o pobre homem — Geros interveio com calma.
— AHHH! — O comandante grunhiu antes de arremessar o corpo quase sem vida em uma das paredes rochosas. — Vocês são todos uns ingratos. Ílios não deveria ter perdido tempo salvando vocês.
A caverna permaneceu silenciosa enquanto Dásos marchava até a saída.
— Você já foi mais diplomático, meu amigo. Parece que está passando muito tempo com o Mirrado — Geros sorria ao seu lado.
— Ah… Kardia consegue me tirar do sério, mas não é culpa dele desta vez…
— Entendo. Então, a situação de Ílios é grave assim?
— Ele está muito ferido, mas não é o estado de seu corpo físico que me preocupa… quando sai, ele ainda estava preso naqueles pesadelos. Você lembra da última vez…
— Dásos, o passado é como uma “dama rebelde”. Quanto mais você ignorar mais problemas ela lhe causará. Você pode a esquecer por um tempo, mas, cedo ou tarde, ela voltará exigindo atenção.
— Creio que conheço essa dama… — zombou.
— Conhece… conhece…
Os dois riram um pouco e o clima ficou mais ameno.
— De qualquer forma — Geros continuou — cabe apenas a Ílios lidar com seu passado.
— Sim… mas… eu me sinto responsável.
— Na época, não havia nada que você ou qualquer outro pudessem fazer. Não se culpe por aquilo. — O velho deu alguns tapinhas gentis no ombro do amigo. — Mas agora, os tempos são outros e nosso mestre e nosso povo precisam de você.
Entendendo o recado, Dásos suspirou e caminhou em direção a mata densa que se projetava por detrás das montanhas.
Não demorou muito até que ele voltasse e entrasse na caverna. Durante o curto período em que esteve fora, a comoção foi intensa, mas agora que viam o guerreiro retornar, as vozes diluíram-se em olhares silenciosos.
A tensão ainda era evidente quando o brutamontes desceu um grande veado de suas costas.
— Peguem! Acredito que seja o suficiente para hoje. Pela manhã trarei mais comida. — disse em um tom arrependido — Peço desculpas pela demora, aguentem só mais um pouco, em breve nosso líder estará de volta para nos guiar a terras melhores.
Como já diria um grande sábio, “um povo alimentado, é um povo feliz”. Até mesmo os mais rabugentos festejavam ao redor da fogueira acesa no interior da caverna. Crianças corriam e se amontoavam ao redor do guerreiro, admirando o seu largo e brilhante machado.
— Comandante, o senhor caçou o veado com essa arma? — uma das crianças perguntou.
— Não, essa é uma arma de guerra, pequenino. Cacei o animal e o matei, apenas com minhas mãos.
— Ohhhhh!! — Os garotos estavam impressionados.
Aproveitando o interesse, Dásos sentou e chamou para que elas se juntassem a ele:
— Vocês querem ouvir uma história?
— Sim!!!!! — todos assentiram.
— Então vejamos… vou contar como o nosso destemido líder conseguiu enganar o grande exército das panteras e salvar a todos nós!
Os pequenos sentaram e escutaram atentas as palavras do comandante.
— Naquele dia…
Sabíamos que as panteras viriam com tudo para cima de nós, mas Ílios tinha um plano preparado. Uma semana antes, um de nossos informantes se apresentou ao conselho, advertindo que as tropas de Ténebres estavam agrupando na Masmorra Cinzenta.
Ílios, Geros, Fides, Kardia e eu nos reunimos para traçar uma estratégia de combate apropriada, já que o número de soldados inimigos que fora relatado era três vezes maior do que havíamos imaginado.
A princípio, nossa maior defesa, eram as formações rochosas que rodeavam a entrada do reino. Por serem muito altas e íngremes, não permitiam que um exército se deslocasse de forma eficaz. Com a formação de batalha do inimigo desfeita, a diferença numérica se tornava um problema um pouco menor. Entretanto, nunca havíamos lidado com uma proporção tão desfavorável.
Somado a isso, uma porção baixa no relevo que podia ser transposta facilmente, destacava-se como a parte mais frágil da “Grande Muralha” que guardava o reino dos Guarás.
Por ser a zona mais vulnerável da defesa, sempre recebeu maior atenção.
Nas inúmeras vezes em que foi necessário defender as fronteiras, os soldados mais fortes e mais experientes deslocavam-se para esta pequena faixa, formando uma barreira praticamente impenetrável, enquanto os guerreiros mais novos ocupavam-se em aniquilar os invasores que conseguiam descer a montanha.
Essa organização permitia que os jovens adquirissem experiência em batalha, enquanto os guerreiros que já haviam atingido a maturidade de sua força física, que nos Guarás chega por volta dos 25 anos, usavam a totalidade de seu poder e habilidade para segurar a marcha adversária.
Foi com essa estratégia que Ílios manteve nosso reino protegido ao longo dos anos.
Mas, para que essa tática desse certo, era necessário que a nossa vanguarda permanecesse firme e que houvesse uma boa quantidade de soldados livres para interceptar os inimigos que conseguissem passar pela muralha. Todavia, após a última batalha, grande parte dos soldados experientes havia morrido e os novos recrutas ainda não tinham completado seu treinamento.
Ao redor de uma grande mesa talhada em madeira bruta, nós, os integrantes do conselho do reino, nos reunimos a fim de solucionar esse grave problema. Foi nessa reunião que nosso líder expôs o seu plano ardiloso.
Na cabeceira, estava Ílios, o mestre de nosso clã; na face oposta, Geros, seu braço direito e o segundo no comando. Fides, Kardia e eu nos assentamos nas laterais como de costume.
Ílios e Fides sempre se entenderam muito bem. Brincávamos que ambos compartilhavam as mesmas pulgas da inquietação. Nosso líder orquestrava planos absurdos enquanto a comandante dava vida aos mesmos, com suas geringonças excêntricas.
Aproveitando o tédio que normalmente se estendia aos demais, Kardia e eu sempre disputavam quem era melhor em algum tema específico; como qual dos dois era o mais veloz ou quem tinha a melhor mira, por exemplo. Geros era o responsável por julgar nossas habilidades e também tentar separar a briga que se seguia após a proclamação do vencedor.
Porém, desta vez, a urgência da ocasião não nos permitiu gastar tempo com besteiras. Após inúmeros planos apresentados e descartados, até mesmo Geros, que sempre mantinha a calma e o otimismo ao seu lado, não ousava ser leviano a respeito da situação.
Ao final de um dia e uma noite de discussões calorosas, chegamos a conclusão que seria impossível mantermos esta posição, e que, a única forma de salvar nosso povo era abrir mão de nossas terras. É claro que admitir isso não foi fácil, lutamos muito para nos libertar da escravidão e mais ainda para construir o que temos agora. Mas, não havia outra alternativa.
Mesmo após aceitarmos essa fatídica realidade ainda tínhamos um problema para resolver: precisávamos retirar os civis em segurança e sem chamar atenção das panteras.
Graças aos soldados que patrulhavam à paisana as cercanias do reino e aos infiltrados nas terras vizinhas, sabíamos que haviam inúmeros batedores inimigos escondidos nas florestas ao redor. Caso sentissem a movimentação da massa, não demoraria até que uma pequena parte do exército inimigo nos alcançasse e nos atacasse sem piedade. Com um número reduzido de soldados e em campo aberto, seríamos presas fáceis.
Alguns anos antes, Ílios já havia considerado essa possibilidade e como medida de segurança, iniciou seu projeto mais audacioso: um enorme túnel escavado sob as rochas da Grande Muralha, que interligava o reino do Guarás ao mundo externo.
Essa foi a ideia mais louca e a mais astuta de Ílios. O esforço para a conclusão da escavação foi insano. Trabalhamos dias e noites cercados pela escuridão claustrofóbica que serpenteava pelo subterrâneo da montanha. Mas todo o sacrifício valeu a pena e a “Saída leste” estava praticamente pronta quando o grande dia chegou, só havia um problema…
— Ílios! Ainda precisamos de tempo com o túnel, os últimos testes não mostraram bons resultados.
O Mirrado, digo, o comandante Kardia, estava muito preocupado em como selaríamos a entrada da galeria após todos terem passado, já que os mecanismos automáticos idealizados por Fides não estavam prontos, afinal.
Para que a estratégia não despertasse suspeitas, os habitantes do reino deveriam cruzar o túnel apenas quando a batalha começasse. Com o olfato apurado, caso o líder das panteras percebesse o êxodo precocemente, era certo de que desviaria seus esforços para a caçada do povo e, sem uma forma eficaz de fechar a passagem, todo o plano cairia por terra.
— Não se preocupe, Kardia. Os dispositivos estão adiantados. Irei realizar os últimos testes ainda hoje, tudo sairá conforme planejado — soou a voz firme da comandante.
Fides era uma mulher madura e, apesar de seus cabelos ruivos já exibirem vários reflexos prateados, sua tenacidade e habilidade em batalhas permaneciam inalteradas.
— Perfeito! — o líder assentiu — Dásos, como está a forja das lanças extras que solicitei?
— Estamos quase no fim, meu mestre. Acredito que tenhamos acabado a quantidade necessária em dois dias.
— Ótimo! Estamos dentro do prazo. E quanto ao canal? — Ílios continuou.
“O canal” era uma profunda linha que rasgava o solo, contornando toda a frente do reino. Esse comprido fosso, era responsável por represar a água abundante que descia das montanhas nos períodos chuvosos, evitando assim, alagamentos nas partes mais baixas.
— Alargamos as margens conforme ordenou. As cordas estão ocultas sob a terra da escavação e já começamos a reforma da ponte levadiça; desta forma, não haverá estranhamento quando os suportes forem montados — Geros respondeu.
— Bom… isso é bom. Kardia…
O inquieto comandante não esperou que o outro terminasse:
— Sim. Os medicamentos estão prontos e todo o óleo que o senhor pediu já está separado e armazenado nas torres, conforme orientou. Mas… ainda tenho dúvidas quanto ao restante do plano…
De todos nós, Kardia era o mais agitado. Seus dedos tamborilavam nas laterais dos braços cruzados de forma viciosa. Devo admitir que isso já estava me tirando do sério, então o provoquei:
— Não dê ouvidos a este imbecil Ílios, ele só está descontente com suas tarefas.
— Ora essa — o esquentadinho retrucou — irei lhe mostrar quem é o imbécil, seu troglodita estúpido.
Batendo o punho na mesa, o Mirrado levantou e apontou uma das lâminas de sua haladie em minha direção.
— Já basta! — Ílios exigiu — Não temos tempo a perder. Kardia, entendo seu descontentamento, porém, já está decidido. Sua função é de extrema importância.
— Como desejar, meu mestre — o comandante bufou .
— Certo! Agora voltem aos trabalhos, não podemos descansar — ordenou Ílios.
— Sim senhor! — todos assentimos.
Essa foi a semana mais longa da minha vida. Eram muitos preparativos e apesar do caos e do cansaço, precisávamos manter a calma para que os civis não entrassem em pânico. Eles não entendiam porque estávamos escondendo longas e afiadas lanças sob o mato rasteiro, ou porque recrutamos tantas pessoas para levar pesados baldes de óleo para as torres de vigia.
Na opinião da maioria, Ílios estava apenas perdendo um precioso tempo que poderia ser gasto escoltando a população para um local seguro. Não podíamos culpá-los, já que nosso senhor nos proibiu de explicar as estratégias que usaríamos. Com tantos batedores inimigos nas redondezas, todo cuidado ainda era pouco.
Então, o grande dia chegou.
Publicado por:
- GSK
-
Escrevendo, desenhando, editando e fazendo mais algumas artes por ai.
Se você está gostando da obra deixe um comentário, vou adorar saber 🙂
minhas outras postagens:
COMENTÁRIOS
Sua Comunidade de Novels BL/GL Aberta para Autores e Tradutores!
AVISO: Novos cadastrados para leitores temporariamente fechados. Se vc for autor ou tradutor, clique aqui, que faremos seu cadastro manualmente.