A luz no fim do mundo - I.
Brasa de Efrén
Um homem morreu na noite passada, por isso ninguém mais conseguiu dormir.
Quando eu acordei, ainda estava tudo muito escuro, as janelas estavam todas fechadas, mesmo assim, no breu, eu pude notar que não havia ninguém no quarto além de mim e de um outro rapaz.
Este já estava acordado, olhava diretamente para mim, já que nossas camas estavam na direção uma da outra. Em total silêncio. Ele não disse nada e eu também não, apenas senti que nós dois sabíamos que algo havia acontecido.
Eu olhei para a porta, aberta, uma luz amarelada vinha pelo corredor. Respirei fundo, mesmo que tudo indicasse uma desgraça, eu estava terrivelmente calmo. Acho que não havia acordado por completo. Parecia tão perdido. Meu corpo estava quente, tão entregue ao conforto da cama e do tecido dos lençóis que quase voltei a me deitar. Mas eu me levantei, e antes que me desse conta estava caminhando pelos corredores.
Pela manhã ainda estava atordoado. Muito sozinho como sempre, incapaz de pregar os olhos mesmo no meu único dia de folga.
Pensava muito, especialmente sobre a noite tempestuosa da qual me restará apenas vislumbres. Havia um homem, um Alfa, eu acho que havia, não tenho certeza pois às vezes eu desacreditava de tudo. Mas eu estava com muito sono e tinha um homem com uma bela voz, ele abriu o casaco, pude sentir o calor de longe, e então me aproximei. Lentamente, e me deitei sobre seu peito, ele me abraçou, e eu adormeci.
Embalado em seus braços fortes e calorosos, sobre o tecido fino de sua roupa. Mergulhado no aroma sutil de seus feromônios. Eu pensei que ele era apenas uma coisa da minha cabeça febril, seriamente afetada pela umidade do chão onde me encolhi. Mas então, ele começou a aparecer por toda a parte.
Acho que o vi pela primeira vez no hotel. Dentro do hall, em um fim de tarde, escuro e cinzento, eu já estava entediado, quando vi aqueles olhos tão claros e brilhantes, olhando — ainda que discretamente — para mim. Digo, pois estava de costas, com o pescoço para a esquerda, vi parte de seus olhos, mas quando percebi, me virei imediatamente. Fui atingido por uma sensação muito ruim, um desespero, interno, intenso.
Um pesar ficou em meu coração, de repente, já não era tão irreal assim. Um pouco enojado busquei ficar perto de Agha Rostam. O meu inspetor. Fiquei de cabeça baixa, olhando para o chão. Depois me senti meio mal, talvez aquele homem nem estivesse olhando para mim, talvez, eu, ainda estivesse meio febril, e começara a imaginar coisas para ocupar a minha pobre mente atordoada.
Eu não tinha com quem conversar então fiquei calado. Eu não falava com ninguém ali, ou talvez ninguém ali falasse comigo. Enfim, fiquei sozinho, da forma que eu já estava acostumado, com aquela mesma dor do silêncio incômodo.
— Rapaz. A voz grossa do inspetor me despertou de meus devaneios. — Vamos, logo vai começar a chover. E fomos. Eu bem que queria que um raio caísse sobre minha cabeça para que eu tivesse a desculpa perfeita para ser poupado de ir ao restaurante externo. Um dos estabelecimentos que funcionava dentro daquele resort.
É ruim ser ignorado, ao mesmo tempo estando sempre em evidência. Você ouve sua voz interior e não faz nada a respeito. Tentei diversas vezes, fui educado, gentil, leal, como um cachorro. Tudo foi em vão, no fim me olhavam com os mesmos olhos.
Voltamos debaixo de uma garoa fina, fresta, com gotículas geladas que molharam nossos corpos em uma velocidade impressionante. Rostam já era mais velho, nunca parecia se importar com a chuva ou com a terra molhada, lamacenta, que sempre gruda em nossos sapatos.
Ele nunca parecia se importar com nada, mas de alguma forma eu cultivava a sensação de que ele se importava comigo. Talvez porque ele era legal, no sentido da palavra. Para alguém que era ignorado, um simples “bom dia” ou um “tudo bem?” Poderia se tornar quase uma prece atendida. E de repente eu olhava para trás até o momento em que ele saía de vista, uma pontada de alegria me atingia e eu me sentia bem, durava pouco, mas valia a pena.
Depois eu voltava a minha melancolia, cheia de solidão, lágrimas e soluços abafados pelo travesseiro. Até que começasse a temer que alguém acordasse irritado e me mandasse calar a boca. Nunca aconteceu, mas quando se tem medo, às vezes cria seus próprios monstros e seus castelos assombrados.
É doloroso ficar sozinho.
Por isso eu trabalhava tão bem, na sombra do inspetor sempre que possível, uma vez disse este que eu seria um secretário eficiente. Não entendi ao certo, mas agradeci mesmo assim.
—
Um lindo dia havia se iniciado, com aqueles mesmos céus azuis intensos, cinzentos, com pouco sol, e uma ventania leve. Fazia frio.
Mesmo dias depois, ainda no café da manhã, falavam sobre o homem morto. Consegui coletar e conectar todos os boatos que havia ouvido, segundo eles, era um alfa dominante, e foi encontrado um pouco além do campo de golfe.
Estava caído no chão, estendido, pálido, e estava sem os olhos. A última parte, em especial, me fez levantar dúvidas, não acreditei nem um pouco, para mim era um bêbado, ou um cardíaco, mas nenhum desses perde os olhos.
Disseram que foram roubados, e que talvez um cachorro tivesse passado por lá e arrancado. O cachorro que tanto falavam era o Alastor. Um cão de porte, pelagem escura, brilhante, era de um dos hóspedes importantes que haviam vindo para o congresso. O animal destruiu o jardim, roubou a dispensa, cavou buracos e ainda por cima perseguia os funcionários. E ninguém nunca podia fazer nada a respeito. Afinal, ele não era apenas mais um vira-lata de rua.
Sempre tive medo de cachorros, desde muito jovem, e este, era com certeza um animal que eu lutava para evitar, até mesmo quando ouvia o latido de longe. Arrepios dominavam meu corpo e eu começava a olhar com cautela para todos os lados.
No restaurante — local onde eu trabalhava como um louco e detestava por moral — eu também ficava muito sozinho. Era o único ômega ali, e o pessoal da equipe de cozinha não parecia gostar muito de ômegas. Especialmente o chefe, o Sr Tempest, que parecia ser contra a minha presença lá, desde o início. Ele nunca olhou na minha cara, nunca falou diretamente comigo. O que fazia era me observar, de longe, com desdém, depois de um tempo suspirava, irritado, e por fim saía.
Odiava tudo aquilo do fundo do coração. Mas não podia chorar, não ali, não naquele lugar, não naquele momento.
Acho que eu estava guardando as facas quando senti um conjunto de aromas, adocicados, intensos, amadeirados, sensuais. Alfas.
Não conhecia nenhum. Mas sabia como agiam, sempre tão arrogantes, andando em bando, viviam vidas incríveis, dinheiro, conforto, estabilidade. O que tinha que fazer para ser tão sortudo assim?
São todos muito belos e vazios. Como flores, ou como peixes japoneses, com escamas brilhantes.
De toda forma. Eu jantava ao pé das escadas do fundo. Enquanto ouvia a voz deles, vozes grossas e firmes. Mordia um pedaço do meu sanduíche. Já estava começando a escurecer, o céu, com sua tonalidade azul escuro, cinzento, ameaça formar uma terrível tempestade. Já não tinha tanto medo da chuva. Mas não gostava dos sons altos dos raios ou trovões.
Me sentia enjoado, como sempre, com aquele pesar incômodo no peito. Uma infelicidade contínua que eu carregava comigo desde muito cedo.
Fiquei ali, sozinho, como de costume, ouvindo o som da corrente do vento — leve como uma infância — passando pela minha face, eu respirei aquele ar. Gostava de pensar naquelas coisas, sobre respirar o ar puro e expirar o sujo. Talvez, se o fizesse durante muito tempo, eu poderia me convencer de que estava começando a me sentir melhor. Talvez às vezes funcionasse.
Fui abatido pelo cheiro distante, porém intenso de feromônios. Sozinho, torci a face, afastando-me da porta, descendo mais alguns degraus da escadaria, me sentando onde a luz amarelada já não podia mais alcançar. Suspirei, tranquilo comigo mesmo. Alfas. Haviam muitos deles, especialmente naquele lugar, com seus aromas fortes, adocicados, amadeirados, sensuais, que tomavam conta do ar de forma nauseante. Ao menos o sanduíche estava bom, não fosse o gosto para me fazer vomitar. É que eu nunca fui muito acostumado com eles, sempre estive em lugares repletos de pessoas como eu, lugares tão diferentes daquele que pareciam ser de outro mundo, na qual as pessoas ao meu redor se pareciam mais comigo. E essas pessoas que se pareciam comigo, nem sempre eram como eu, mas diferente de agora, eu podia me sentir “incluso” naquele lugar de minhas memórias de crescimento e nascença, ainda que essa inclusão fosse distante. Por que eu sou diferente deles, sempre fui, eles têm até um nome para pessoas como eu, um nome que muito ouvi, desde o momento que pus os pés neste lugar.
O silêncio, incômodo, tomou conta, de forma inesperada, eu estranhei, e acabei me virando, fitando aquela porta. Outrora estava completamente fechada, eu tinha certeza daquilo, mas tentei não pensar demais, se terminasse o sanduíche naquele momento teria tempo o suficiente para ficar ali pensando na vida. E foi o que eu fiz.
Foi quando um aroma, doce e perfurante de repente distanciou-me do cheiro azul, de terra molhada e fria. Eram feromônios.
Olhei para os lados, buscando pelo dono, eu suspirei, tapando o meu nariz mal acostumado.
Já não havia mais ninguém lá fora além de mim, respirei fundo, olhando para meu sanduíche, já havia ficado enjoado o suficiente para não voltar a comer. Eu precisava entrar, ao menos para me certificar de que não precisavam de mim para mais nada, então, eu iria embora.
Caminhei até a porta dos fundos, entrando sorrateiramente, nunca me senti à vontade para entrar naquela cozinha, mesmo sendo da equipe não era como se eles quisessem a minha presença lá. E uma vez dentro olhei ao redor, a mesma iluminação amarelada e clara de sempre, muito diferente da escuridão com que eu havia me acostumado do lado de fora. Respirei fundo pegando um dos sacos de lixo. Ao menos deixaria tudo limpo para que quando voltassem não tivessem nenhum trabalho extra.
Ouvia as vozes do salão, talvez fosse o pessoal da equipe, talvez os clientes que haviam chegado, eu não sei ao certo, mas eu fui até a porta proibida. Proibida para mim, por eles. Ainda que discretamente. Não queriam que eu jamais cruzasse aquele limite. Já não bastava um ômega na cozinha, agora no salão, jamais.
Era quase uma regra de conduta entre os gêneros. E eles talvez mantivessem distância de mim por isso, ou fossem simplesmente induzidos ao tratamento do silêncio, por um bem maior, nunca questionei ninguém sobre isso. Eu já havia me acostumado com a solidão.
Mas não havia ninguém ali que pudesse me parar, eles nem falavam comigo, e talvez nem dessem conta desta pequena infração, eu só queria olhar para dentro. Talvez, internamente eu sentisse que eram os curiosos aromas sobre mim, aromas estes que eu estranhava com desdém, mas ainda sim seguia.
Paredes de madeira, polida, de um tom marrom intenso e brilhoso. Como se fosse revestido em ouro. Que beleza chamativa, está estruturada, que eu não estava nem um pouco acostumado, combinava tanto com a luz dourada que chegava até a dar gosto de ver.
De repente meu olhar caiu sobre uma figura em movimento leve. Era o cão. Ao pé da mesa, deitado ao pé de seu dono. “Que droga” pensei comigo mesmo. Não sabia que permitiam cachorros no salão, mas não havia muito que eu pudesse fazer a respeito disso. Tornei a olhar para cima.
Haviam cinco. Um deles eu já conhecia, o dono do animal, já havia visto ele algumas vezes, brevemente, sempre aparecia no jardim para se desculpar ironicamente pelos resultados das invasões do cão, não gostava de sua face arrogante, muito menos de seu cheiro. Mas foi sobre um homem específico que meu olhar pousou, quase que instantaneamente, havia sido guiado pelo cheiro daqueles feromônios, tão, ainda que estranhamente, familiares.
Eu já havia visto aquele homem, tinha certeza daquilo. Podia jurar do fundo do coração que ele não me era estranho, em alguma memória talvez, uma memória intensa, ele estava lá, pois eu me lembrava daquele rosto, só não sabia como.
Voltei a mim, olhando para dentro da cozinha, já havia escurecido por completo, era hora de voltar, então eu me virei para fechar a porta, não devia deixar vestígios de que estive lá, para não gerar problemas futuramente.
Infelizmente, antes que pudesse concluir o feito, nossos olhares se encontraram. Antes mesmo que eu pudesse virar meu pescoço ele já estava olhando para mim, como se tivesse me sentido em meio a todos os outros. Seus olhos. Esverdeados, cinzentos, tão belos quanto fatais, me fizeram hesitar, prendi a respiração, me afastando lentamente da porta, deixando aquela pequena freira aberta, me permitindo ser consumido pela escuridão, antes de dar as costas e sair, descendo a escadaria.
Eu conhecia aquele homem, eu o havia visto, em uma noite como está, tão fria e solitária. De repente aquilo pareceu ser parte de um sonho, o mesmo sonho estranho que eu havia tido dias atrás, sobre ser abraçado por um homem desconhecido — cujo rosto pouco podia me lembrar — de adormecer sobre seu peito, tão forte e caloroso. Podia jurar que ele tinha os mesmos olhos claros, verdes e cinzentos, olhos de um alfa dominante. Subitamente, aquela memória deixou de ser uma fantasia aos poucos, um sonho desvairado de um jovem solitário, e acabou, ainda que sem intenção, se tornando uma lembrança. Do quê ao certo? Eu não sabia, ou talvez soubesse, só tinha medo de admitir.
Aquele olhar me acompanhou até o meu quarto e esteve comigo em todos os meus sonhos. Desde a primeira vez, depois da tempestade, era pavoroso, ao mesmo tempo tentador. Fez meu coração bater forte. Eu fiquei muito receoso, e repentinamente um dia, cinzento e azulado como de costume, pela manhã, todos foram abatidos com a notícia de que um corpo havia sido encontrado. Aquele era um sinal de que algo estava por vir, ainda que muitos de nós, jovens, não soubéssemos exatamente o que. Tudo que eu sabia era que ele estava sem os olhos.
Publicado por:

- Ambroise Houd
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