PELE DE JADE - Capítulo 15
Volume 1
Capítulo 15: Família Yin
Odor de putrefação fizera o nariz do homem transmigrado contrair-se como o focinho de um coelho do mato.
Por ter cursado três anos árduos de enfermagem em sua vida passada, era de conhecimento memorável o cheiro de morte onde quer que fosse. Das muitas vezes em que vira um cadáver enrijecido na ala hospitalar em que ficava por meio período, os olhos estreitavam-se em desamparo e expressar a solidariedade que sentia não era permitido ao estagiário, que pela primeira vez questionou se seu lema um dia poderia ser colocado em prática: cuidar e ajudar incondicionalmente, cultivar bondade e colher humanidade.
Não existia sentimento mais gratificante no mundo do que acolher de braços abertos os enfermos, mas, até quando seria necessário dar o veredito da morte e vê-los trilhar o curto caminho até suas sepulturas, não sendo possível cobrir os nariz e tendo que acostumar-se gradualmente com o cheiro cadavérico envolvente e nada almiscarado?
Talvez a resposta fosse “nunca” e compreender que, enquanto houvesse vida haveria morte, era o prelúdio para conviver entre datas de aspirações e mortos-vivos.
Shen Shining estava familiarizado com odor de putrefação e, quando erguera as pálpebras carregadas de sonolência, a visão à frente não fizera seu coração palpitar como a saída triunfal de um pássaro cuco do relógio, e a mente tampouco ficara em branco. Por já estar ciente de que o aguardava era a entidade barqueira do submundo, que transportava almas penadas para o outro lado da Ponte da Irreparabilidade[1], ele não recuou.
Adiante, o terreno inóspito a céu aberto era de clima serrano, e nada agradável aos olhos humanos. O sol marcava o ponto mais baixo na cúpula do céu avermelhado e vasto, pronto para se pôr a oeste. O avanço da vegetação mostrou-se ser lento na área, como se as vinhas, treliças de uva, árvores e plantas estivessem em reclusão, se negando a favorecer o solo abatido de terra enquanto aqueles cadáveres em fase de decomposição, onde a carne já estava se desprendendo dos finos ossos estivessem estirados sem nenhum respeito ali. Uma família de urubus voavam a quatro mil pés sobre eles, às vezes demonstrando interesse em se reunir em volta das carcaças. Por mais que não conseguissem suportar a ideia de comê-las, aterrissaram de forma implacável no chão, e tentaram fisgar insetos nas sombras do que um dia foram torsos masculinos, belas omoplatas e cabeças pensativas.
Não se sabia como o aglomerado de mulheres, homens, e até idosos e crianças estava conseguindo permanecer ali, sem esboçar incredulidade nas faces depauperadas. Os mais próximos dos cadáveres juntaram as mãos com contas de oração budistas presas entre os dedos sujos de fuligem e se puseram a recitar alguns mantras espirituais. Os homens em timbre barítono e profundo; tão grave que poderia promover terremotos durante o crepúsculo alaranjado. A angústia na canção tibetana sobrepondo o talento que tinham, para nunca retornar ao estado original.
Diante do nível daquele morticínio inesperado, como não deixar a face contrair-se de repúdio e não ficar estarrecido? Shen Shining não conseguira disfarçar. Segurar o embalo do estômago, não deixando-o dar voltas e voltas contínuas, causou-lhe incômodo interno. O alastramento putrefato fora capaz de deixá-lo paralisado. Era tão difícil suportar a fedentina de decomposição, que fora preciso erguer o braço trêmulo e usar a curvatura do cotovelo para tampar o nariz, bloqueando pelo menos um pouco o cheiro.
“Para ser bastante sucinto, essas pessoas de época pouco memorável estão tão calmas porque já estão acostumadas com esse ambiente mórbido.” ele pensara, permanecendo em mudez absoluta ao passar reto por algumas delas, temendo chamar atenção desnecessária para si.
– Até quando pretende ficar me observando como se fosse um cachorro abandonado? – Um senhor de idade que usava chapéu feito de palha limpou o suor que deslizava pelo rosto enrugado, ao mesmo tempo em que resmungava descontente por algo em sua mira: – Tamanha é a sua falta de educação com os mais velhos…
Devido ao fato da afronta, alguém através de Shen Shining pigarreou alto em constrangimento. Ele olhou pelo canto do olho sem mover a cabeça, e vira a fisionomia lateral de um semblante alegre tomar forma. O interlocutor se tratava de um homem viril, de pele beijada pelo sol que parecia estar prosperando com seus quarenta e poucos anos. Tendo os fios prateados de cabelo bem cuidados e amarrados em um rabo de cavalo alto com o auxílio de dois grampos de jade em formato de libélula, os olhos se mostraram afiados e atraentes, semelhantes a duas nêsperas em sol poente.
Charmoso além da conta, como a pequena pintinha sob a pálpebra inferior e os lábios finos bastante chamativos, ele seria alvo de muitos olhares maliciosos; isso se não fosse pela mulher de aura sombria na retaguarda dele, vindo em em linha reta, não se deixando ser levada por distrações e nem pelos mantras sendo recitados alto pelas pessoas nas proximidades. Numa primeira impressão, a arrogância dela chamaria atenção primeiro que a beleza. Devido ao fato da face não estar carregada de camadas finas de ruge, e o cabelo negro como azeviche não estar preso em um coque nó de lírio, acompanhado de ornamentos de jade e jóias de ouro e prata, sua aparência seria considerada intolerável e nenhum homem de boa família desejaria se casar com ela.
As três crianças que os acompanhavam se pareciam com ela em termos de aparência. A jovem dama, segurando sua mão esquerda sem intenção de largá-la tão cedo, de certo era a integrante mais nova da família; em uma faixa etária de talvez nove anos, enquanto os gêmeos idênticos pareciam ter em torno de dez anos ou mais. A educação que demonstraram ter se via sendo imensa em tão tenra idade, quando, pela trilha formada até aquele senhor de idade, foram cumprimentando o tanto quanto puderam de pessoas ao longo da estrada com um acenar de cabeça. Sem ter sido a pedido dos mais velhos, eles tomaram esta escolha como a precisa. Perseverando assim, poderiam abonançar as preocupações temerosas dos refugiados.
– Esses três diabinhos que você e Mei Zi chamam de filhos estão aqui para se desculparem pela história da tina de lavagem? – O senhor de idade deu continuidade na bronca e estreitou o olhar descrente em direção ao homem viril. – Marechal Yin Lu, acredito que mereço uma justificativa.
A princípio, o atordoado Shen Shining tivera a ilusão do senhor de idade estar falando em tom ardente com ele, a fim de cobrar satisfação pelas olhadas nada furtivas que eram direcionadas sobre a sua pessoa, e preparou-se para respondê-lo com uma dúzia de desculpas pouco cabíveis e nada coerente, apenas para desbaratiná-lo ao ponto de enlouquecê-lo. Contanto que a situação fosse esclarecida, atrito desnecessário não seria criado, e, pouco a pouco, o que com certeza teria sido considerado motivo de intriga entre eles, poderia tornar-se o começo de uma conversa esclarecedora. Mas depois, com a chegada daquela família de cinco membros, não demorou notar que, não importa o quanto tentasse gritar e espernear, o grupo diante dele não conseguia vê-lo ou ouvi-lo durante a enturmação.
– Desculpe-me pela minha ousadia, velho Gon – O pedido do marechal Yin Lu saiu entre dentes rangentes, como se, na verdade, ele não quisesse se desculpar de fato pelo ocorrido e estivesse sendo obrigado por alguém. – Venho pedir que o senhor não guarde rancor dos meus filhos.
O silêncio entre as crianças perdurou resoluto, até a jovem dama arrastar a túnica cor pastel esfarrapada e se ajoelhar. Não esperando por essa reação, o coração do velho Gon errou uma batida e ele pôs-se a segurá-la de antemão.
– A filha do marechal Yin Lu está me lisonjeado além do necessário agora – Ele nem se esforçou para estabelecê-la e suspirou desgostoso. – A senhorita Yin Zi deve se recompor e jamais ousar assumir as punições dos homens.
– Meus irmãos mais velhos são inocentes e não merecem ser punidos por você, ao contrário de mim – A exatidão na voz da jovem dama prosseguiu sem nenhuma variação vocal: – Sagui-Imperador Xiao é muito entojado e aceita unicamente banhar-se em tinas fundas de lavagem, como a sua por conta do acúmulo abundante de água. Meus irmãos são tolos, e só puderam obedecê-lo.
– Por consideração ao marechal Yin Lu, não irei puni-los desta vez – Velho Gon estava mais do que indignado ao recordar-se do ocorrido, mas não poderia ser ingrato com o seu salvador. – Retorne para a vila Qin de imediato com os seus irmãos e partam sem preocupações. O campo de batalha não é um lugar seguro para vocês.
– Eu concordo com o velho Gon.
A mulher de aparência rude tomou a frente pela primeira e lançou-lhes um sorriso fervoroso apesar da situação.
– Yin Lu, o campo de batalha está longe de ser um lugar seguro para a nossa família – Em tese, a partida não incluía os adultos, mas ela corrigiu a situação desfavorável:
– Vamos retornar juntos para a vila Qin, assim teremos tempo de assar alguma carne antes da hora do jantar.
Estava bastante claro para todos que a face dela não estava carregada de camadas grossas de maquiagem, porque estava coberta de muitas camadas de cinismo. Velho Gon ficara indignado além do limite posto, que até sentiu que poderia correr até o carpinteiro mais próximo da redondeza e comprar todo o estoque de óleo de peroba dele.
– Mei Zi, tamanha é a sua ousadia! – Apontou o dedo sem temer desencadear uma discussão com ela. – Acha que eu sou leigo o suficiente para acreditar em você? Em toda a vila Qin, não há um único animal de carne comestível!
Mei Zi era do tipo de mulher mais perigosa que existia; não fazia questão de guardar os pensamentos para si, e agia sem medo de ocasionar reações adversas nas pessoas, e até seus próprios filhos estavam incluídos nessa. Tempos cruéis e palavras severas os transformariam de crianças tolas e inocentes a adultos fortes em época de guerras territoriais. Seus modos operantes poderiam incentivar debates, serem questionados, desencadear traumas e gatilhos, e até mesmo apaziguar as preocupações da velha geração, mas não poderiam ser considerados ineficazes.
– Quando eu digo que iremos assar carne no jantar, é porque temos quase quinhentos gramas de carne de Sagui-Imperador em casa – enfatizou suavemente. – Há uma grande diferença entre a carne de Xiao com a carne bovina ou suína? Claro que não. A carne dele é comestível como qualquer outra, e será uma iguaria e tanto.
– A mãe está falando como se toda carne fosse comestível – Uma voz monocórdica soou. – E quanto aquela?
De súbito, um dos gêmeos deixou de estar em estado de submissão. Abriu mão do silêncio que se manteve em respeito ao falatório dos adultos, e marchou impassível até Mei Zi em busca de defender o Sagui-Imperador da jovem dama, e da pior forma possível; apontou o dedo para os muitos cadáveres que aos raios solares eram expostos, para demonstrar que nem toda carne era comestível. E, caso não soubessem interpretar bem as suas palavras desagradáveis, repeti-las seria missão viável.
Pouco se notava em como a face mal esboçava a fúria que sentia, enquanto o outro gêmeo se mantinha empalidecido, centrado em enxugar as lágrimas que eclodiram nas bordas dos olhos angulados. Não se ouvia mais o soar farfalhante do vento ou o crocitar dos corvos acima, apenas seu choro lamentável.
– Xiao não será o nosso jantar! – declarou consternado. – Prefiro passar fome do que comê-lo. Ouviu-me, mãe?
– Vocês são realmente filhos do marechal Yin Lu! Mais dois traidores à pátria! Ele abandonou o maior posto do âmbito militar humano, e agora os filhos ousam desafiar a própria mãe – Mei Zi estava gargalhando quando abraçou-os. – Vocês só podem estar buscando pela própria morte!
Os meninos não correram como o esperado, e apenas ficaram petrificados em seus devidos lugares enquanto eram massacrados por braços fortes, num aperto de fazer os dentes enraizados na profundidade das gengivas se desprenderem e saltarem para fora da boca. Não sentindo diferença entre músculos masculinos e femininos, a criança que chorava vozeou aflito por ajuda ao marechal Yin Lu:
– Meu bom pai, não está vendo que está acontecendo uma tentativa de assassinato? Nos ajude, rápido! – E continuou, desta vez se dirigindo ao irmão: – Vamos, chore comigo.
A outra criança não se queixara ao ouvir tamanho absurdo sendo preferido por alguém idêntico a si, embora quisesse. Suas salientes bochechas estavam pelando por conta do constrangimento, ficando ruborizadas de leve, parecidas a quando se aplica ruge com um pincel de cerdas espessas. A expressão aos poucos se tornara apresentável, não mais carrancuda. E apesar das maçãs bem acentuadas do rosto marcante não terem sido erguidas por causa de um sorriso que nunca apareceu, era evidente que ela estava feliz.
Testemunhando por si próprio como as semelhanças entre gêmeos univitelinos poderiam sim ser tratar somente da aparência, Shen Shining não conseguiu conter os cantos dos lábios quando conseguiu distinguir Yin Chang do outro.
– Bah, pude compreender o que está acontecendo agora – comentou para si mesmo, desapaixonadamente. – Não sou nada além de um espectador do passado do protagonista.
Semeando solitude em um coração impossibilitado de ser cicatrizado pelo tempo, o protagonista havia avançado em linha reta, sendo o primeiro a girar a roleta de Xima Wei. Parado estático em frente a ela, a única resposta dele fora o silêncio zombeteiro ao aguardar a seta central indicar seu resultado depois de ultrapassar sete dos layout de apostas; azul, presente. Aquela cor intensa, mas agradável, pela primeira vez mostrou-se ser instável.
Na visão periférica de Shen Shining, as costas de Yin Chang tornaram-se cada vez mais distantes e não houvera nem a oportunidade de desejar-lhe boa partida…
– Quem é o “Protagonista”? – perguntou alguém de repente.
No equinócio, os raios solares não eram tão intensos, ainda mais marcando o horário em que o sol iria se pôr a oeste. Quanta lentidão nesta partida insignificante, tanto que a rotação da terra em torno de seu próprio eixo se via sendo infinita naquele momento. Se o sol ao menos pudesse retornar ao ponto mais alto do céu, a temperatura do ambiente seria mais deleitosa, mesmo se houvesse gotículas cristalinas de suor eclodindo na lateral das têmporas de Shen Shining. Porque, devido ao fato da criança circunspecto que era Yin Chang na infância estar observando-o sem o resquícios de intimidade e consideração de antes, o frio invadiu o corpo dele, sendo capaz de deixá-lo congelado.
– Quem é o “Protagonista”? – A ecolalia soou impaciente desta vez. – Por que parece que ninguém consegue lhe ver além de mim?
Apesar dos indícios de estranheza que tinha, o semblante da criança não esboçava nenhuma alteração e ele nem se dava ao luxo disso. O vento contundente soprou forte em direção a eles dois, atacando com empenho seus rostos desprotegidos como se fosse uma alabarda pouco maleável, dotada de intenção maquiavélica do haste de metal até o gume em formato de meia-lua.
– Você pode me ver? – A rouquidão tomou conta da voz de Shen Shining. – Não acredito…
Embora tivesse em mente que nada do que fizesse ou dissesse chegaria a alterar o futuro de Yin Chang, escolhera não lhe dizer a verdade, pois seria inoportuno escutar sobre as peripécias do destino que os aguardava em prontidão para desanimá-los. Mas isso estava longe de conseguir impedir Shen Shining de brincar com ele!
– Sim, ninguém além de você consegue me ver! E não é óbvio o porquê? – Apoiou as mãos na cintura, empinou o nariz como se sentisse ele crescer e adicionou pacífico: – Porque sou sua fada madrinha e vim abençoar você.
A convicção durante a fala sem cabimento fizera toda a diferença. Elas vieram em cheio, desbaratinando todas as concepções que Yin Chang tinha sobre o homem estranho em sua frente, fazendo a pose sistemática mantida cair em esquecimento no momento seguinte. O mundo aparentou estagnar em volta do sol e o som ambiente tornou-se algo muito além de um ruído vago e incomodativo para ele. O olhar calmo que tinha tornou-se espavorido, seus cílios, mais finos quanto as asas de cigarra, tremeram e de seus lábios entreabertos um arfar surpreso escapara.
Quem um dia poderia imaginar que aquele ser era capaz de ter tais expressões? Fora quando Shen Shining se dera conta de que o protagonista iria criar alarde desnecessário, sem lhe dar a oportunidade de assimilar o acontecimento.
– Espere! – gritou. – Eu não sou sua fada madrinha. Eu sou um fantasma!
O menino de características marcantes se dirigiu rumo ao marechal Yin Lu em velocidade alarmante e encontrou o olhar do estranho sem hesitar em sua decisão, até permanecer encarando-o sem menção de parar tão cedo.
– O quê? Eu sou bonito? – Shen Shining brincou.
Yin Chang fuzilou-o com um olhar mortal, como se não tivesse gostado da brincadeira e respondeu:
– Depende do ângulo.
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Ponte da Irreparabilidade: entrada e saída para o submundo no taoísmo e nas crenças populares chinesas. Os fantasmas devem passar por esta ponte antes de poderem reencarnar.
Publicado por:

- Bllau
- “Escritora amadora de C-Novels, escrevendo histórias para satisfazer-se, em uma busca incessante para fugir da realidade medíocre em que, infelizmente, vive lamentavelmente…”
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