PELE DE JADE - Capítulo 14
Volume 1
Capítulo 14: Expressar Modéstia
– Tio, exatamente quem foi o imortal Xima Wei?
– Xima Wei deveria ter sido um ser errante, sem sensação de pertencimento em terra, incapaz de amar a si próprio. A força vital, a vida imortal, direcionada a passar lentamente dentro de um templo dourado, impregnado com o cheiro de um incenso de Osmanthus, não poderia ter sido impedida de acontecer. Segundo o sumo sacerdote taoísta Xima Zu, que tinha a cabeça desprovida de um único fio de cabelo branco, Xima Wei, sendo o único imortal do mundo, já havia aceitado seu destino solitário. Ajoelhado perante uma escultura de Lao-Tsé empoeirada, ele não encontrava motivos para se levantar. Não se erguendo e não sentindo os joelhos latejarem, afirmar que ele permaneceu curvado por anos não seria um absurdo. A voz dele há muito havia se perdido. A imortalidade causou nele um sentimento de mágoa e insatisfação, e ele escreveu ao seu irmão que existiam controvérsias demais dentro de seu coração. Ele não encontrou a paz tão almejada, não encontrou todas as respostas do mundo. Mas, quando se deparou com uma tempestade de outono, se levantou e caminhou sob as gotículas de chuva, encontrando o ser responsável pelo temporal no sol das seis. Por causa deste evento especial, escreveu seu poema mais famoso: sua aparição trouxe a mim, que não tem sensação de pertencimento, fragrância de um lar, mudando quarenta de minhas estações.
Apenas uma única escultura do ser existia no mundo, para que sua aparência graciosa não caísse em esquecimento. Numa ala do templo, rodeado por muitos loureiros estava. As sobrancelhas em formatos de espadas foram traçadas por mãos delicadas, como o sorriso de escárnio, e as duas profundas covinhas que se afundavam sobre os bigodes chineses rasos – vendo tanto apreço, o irmão mais novo de Xima Wei, Xima Zu, se atrevia a dizer que se o ser fosse um antídoto potencializado por demônios, Xima Wei seria incapaz de oferecê-lo às vítimas do veneno.
– Com toda certeza, ele é um herói anárquico – Ming Cheng suspirou a plenos pulmões. – Mas meus ouvidos estão zunindo por culpa dos rugidos bestiais dele.
– Mova-se para o lado – Para que pudesse aplainar o problema por completo, Lorde Ming pediu. – Irei ajudá-lo.
Aguardando pelo amparo antiprofissional que viria a seguir, a criança permaneceu de maneira bem comportada e, em pleno andamento, notara como o comprimento do ataúde de chumbo limitava em muito as ações de seu tio, que se esforçava para levar as mãos até às orelhas dele. Apenas quando os sons farfalhantes, de seda fina sendo esfregada contra seda fina pararam, palmas ásperas cobriram com força moderada sua cartilagem, a parte tenar das palmas gentis levemente massageando em movimentos circulares os tragos e as conchas das orelhas. Apertando a maioria dos músculos que pulsavam de dor, a tensão e os zunidos agudos desapareceram tão rápido quanto vieram.
– A fera não ousou nos atacar no aposento onde os três abades encontraram a paz – murmurou abatido, quase inaudivelmente: – Me atrevo a dizer que a mente de Xima Wei ainda tenha resquícios de memórias. Tio, como você acha que ele tornou-se aquele monstro digno de pena?
– Por que diabos teorizou que a fera lá fora é Xima Wei? – disse Lorde Ming com um sorriso gentil: – Ele honrou o ser responsável pelo temporal, o sumo sacerdote taoísta, seu único irmão Xima Zu, quando eles dois deixaram o mundo. Em escrituras antigas que decifrei junto com o meu irmão mais novo em nossa juventude, haviam cinco poemas que davam a entender que o taoista imortal descobriu todas as respostas do mundo, e que conseguiu passar pelo portão do Reino Inferior, mesmo sem encontrar a morte.
– Tio, com todo respeito digo que sua concepção pode estar errada. – Ele queria empurrar as mãos de seu tio para o lado, mas também estava relutante em fazê-lo. – Pude escutar a fera choramingando entredentes, clamando por dois nomes: Qianqiu e Xima Zu.
– Tem certeza? – questionou, embora não houvesse tantas incertezas. – O que mais você escutou de esclarecedor?
A criança inconscientemente apertou as mãos, fazendo as unhas perfurarem a carne tensa das palmas rígidas.
– A fera implorando pela morte. – A resposta profunda soou baixa na escuridão.
[…]
Um ruído arrastante cortou o silêncio absoluto.
Um dos três ataúde fora aberto num estrondo de machucar os tímpanos, levantando terra para o alto quando a tampa de chumbo com metade da largura de um um sofá-cama arhat caira no chão batido. O chilrear dos pequenos insetos que estavam lá dentro se tornaram mais altos e urgentes, como se estivessem a comemorar a abertura dele e louvar a claridade repentina que iluminava os cantos estreitos.
Como fora mencionado outrora que o aposento monástico era bem iluminado por pérolas cor pastel incrustadas nas quatro paredes cobertas de poeira, era possível enxergar claramente o interior desprovido de riquezas. Se via que o espaço sinuoso entre as acomodações fúnebres permitia a passagem de uma única pessoa, então Lorde Ming tivera que recitar um mantra budista da cura para acalmar seu espírito selvático, enquanto aguardava o lento Ming Cheng se retirar das profundezas do ataúde de chumbo em que eles dois permaneceram deitados por menos de um quarto de horas. Ele se recompôs em pé do lado de fora, com os cabelos prateados desgrenhados e o rosto sujo.
– Essa lentidão em seus movimentos prova que você não faz parte da minha prestigiosa família de sangue nobre. – Lorde Ming expressou em voz alta os seus pensamentos poucos insensíveis, à medida em que erguia a cavidade torácica de forma solene para se levantar também.
Ao ouvi-lo, Ming Cheng encarou-o estando perplexo.
– Você é uma lesma terrestre. Naturalmente faz parte da família Limacídeos – Ele não mediu esforços para salvar a face do sobrinho e olhou em volta. – Enfim, parece que a fera realmente não ousou nos atacar aqui. As previsões do monge careca são sempre certeiras e verdadeiras!
– Tio, não comemore tão cedo – Lançou-lhe vários olhares questionadores, demonstrando querer mais detalhes sobre as lesmas terrestres. – Consigo ouvir uma respiração do outro lado da porta. Parece que estamos encurralados.
– Acorde os outros e resolveremos este problema.
O aposento dos três abades se encontrava na mesmíssima condição monótona de outrora; sem nem mesmo nenhum dos móveis estarem fora de seus respectivos lugares, e até a espessura grossa de poeira incrustada nos quatro cantos das suas extensões continuavam, como se nem o vento de outubro pudesse arrastá-las para se perderem na altitude imensurável do teto dourado, onde padrões esculpidos se encontravam em união; lamentável perceber que, inclusive as mais belas artes, possuíam rachaduras compridas, onde musgos escorregadios cresciam prósperos e sem controle.
A acomodação protetora em que o monge havia se deitado possuía os mesmo padrões profundos de conchas do mar esculpidos no chumbo escuro, e o ideograma “贼” no centro, finalizado em azeviche. O acabamento nas bordas da tampa contavam com gravuras pretas em formatos de ondas espumantes. Bem frisado eram os relevos do artista, uma pena as rachaduras que se estendiam do começo ao o fim dela chamarem mais atenção do que a arte em si.
– Xima Wei se nega a entrar no aposento dos três abades, se abstém, mesmo que “inimigos” estejam aqui, sujando o solo sagrado onde seus três familiares descansaram? – No olhar relutante da criança se via admiração e respeito pelo artefato à frente, trabalhado com tanto apuro. – Temos que sair daqui o mais rápido possível. Deveríamos respeitá-lo.
O impulso das pequenas mãos dele na lateral da tampa do ataúde de chumbo tornou-se urgente além do desejo e da fraqueza. A respiração acelerou junto com o esforço físico, umedecendo as narinas estufadas e causando fadiga.
– Quanta força, quanta força! – Lorde Ming riu feliz com a rudeza dos movimentos dele, e resolveu ajudá-lo. – Assim que o monge acordar, diga a ele: já inspecionei os quatro baús de armazenamento e não encontrei as tais provas do crime que você comentou que teria. Há algo que queira me contar ou já posso mandar meu tio puni-lo por mentir?
– Tio, você é muito desonesto com nossos companheiros! – O chamado saiu como se um punhado de areia tivesse sido esfregado na garganta da criança. – A assassina de nosso tio não é de origem desconhecida para nós. Ela é a deusa da luxúria, vinda do Leste Celeste em busca de vingar-se dele, que financiava as expedições da ferreira Qing Wen nas imediações pertencidas à ela – resumiu sem mais tardanças: – Nosso tio foi assassinado de forma que evidenciasse o rancor da assassina por ele, e pela ferreira. Ambos haviam destruído reservas naturais por ganância e lucros. Como poderia ela não ter reagido? A sentinela Ah-Sui lhe explicou tudo no mesmo dia da morte deles. Por que você ainda insiste nessa vingança sem sentido?!
De súbito, uma sugestão de pura frieza explodiu nos olhos de Lorde Ming. Uma frieza da qual conseguiu cobrir grande parte da vastidão cinza-aço das íris — mencionar que nem três mil lanternas octogonais acesas durante o festival de primavera poderiam derreter a espessa camada de gelo que se formara, alastrando impiedosamente o que sempre aparentava ser caloroso, não seriam palavras vagas. Fora como vê-lo indiferente há oito anos atrás, largando o pincel de pena encharcado de tinta preta na ponta mais fina que pelo de boi e desistindo de escrever uma carta a seu irmão bastardo, o marechal Yin Lu. Ao descortinar o reflexo sem alma que o espelho de bronze refletia, levantou-se pronto para partir sem destino aparente, com a dor lancinante de incontáveis memórias distantes.
– Ming Cheng – O silêncio estava serpenteando entre eles dois. – Meu coração não é tão maléfico; não estou fazendo nada que irá nos machucar. Estamos aqui hoje justamente para evitar o pior dos cenários. Yin Chang quer comparecer na audiência do Imperador Zhou, o único responsável pelo sofrimento dele. Não acha razoável eu tentar atrasá-lo?
A curvatura do canto da boca dele estava atrás de milhares de tristezas inesquecíveis e incuráveis, enquanto o sorriso permanecia radiante em glória e explendor. Seu sobrinho deixou de lado todas as dúvidas e reclamações, atribuindo a figura sorridente e gentil do tio ao Buda Risonho [1] — se ao menos seu percurso de ações a seguir não tivesse sido abordado de forma imprudente, o sentimento acolhedor no coração de Ming Cheng poderia ter permanecido doce.
– Céus, o monge está morto! – bradou seu tio, sendo lacônico em suas palavras.
Ele havia estendido os braços em auxílio para arrastar a tampa de chumbo, até ela atingir o chão num estrondo de fazer os cabelos finos das têmporas eriçarem. E conforme a fresta fosse crescendo, o luzeiro que provinha da miríade de pérolas luminosas nas proximidades, difundia luz sobre o monge deitado com o tronco do corpo totalmente reto e as pernas esticadas. Como as mãos estavam entrelaçadas em cima do diafragma, dando uma aparência moribunda a ele, a mentira persistiu assombrando a criança inocente.
– Tio careca… – Não pôde evitar fungar e uma enxurrada de lágrimas deslizou por seu rosto abatido. – Sabe quantos taéis de prata são necessários para fazer um velório? Por sorte, você já está deitado em um caixão confortável.
Para afugentar a angústia que sentia e perseverar as boas e más lembranças que tinha, sussurrou “amitofo” de olhos fechados e levou o dedo indicador e o médio unidos até a testa franzida em confusão do monge budista, deixando as pontas rechonchudas dos dedos tocarem o ponto alto entre as sobrancelhas arqueadas em arcos perfeitos. O músculo empinado delas saltitando em pura descrença em direção ao indivíduo escorado na extremidade fria da base feita de chumbo, não se movendo nem mesmo um centímetro sem deixar os lamentos soarem livres, sem temer uma reação exagerada de desagrado por parte do sonolento.
– Confortável? – retorquiu de imediato.
Numa observação arisca e pouco ponderativa, o monge estava a caminho de atingir o nirvana à medida em que o alarde criado sem necessidade por Lorde Ming ganhava destaque. Como ele havia ficado de olhos fechados pelo que pareciam horas, a claridade do lado de fora chegou a machucar suas pupilas dilatadas; mas isso não o fez deixar de semicerrar os olhos em desgosto. Ainda que, achá-los jocosos lhe causasse diversão, tratou de permanecer com a face fechada em uma expressão dura de roer, para que
que entretenimento às custas da imagem digna dele não se tornasse frequente entre a companhia.
– Ressuscitou…? – Ao vê-lo vivo, Ming Cheng apertou a barra das mangas esvoaçantes, até os gomos dos dedos ficarem brancos e os soluços serem engolidos.
– Bom dia, querido – Lorde Ming sorriu em boas-vindas, e, com a rusticidade de sempre, aproximou-se devagar, querendo pressionar o outro a falar, ainda que sem força para isso. – Que peculiaridade está acontecendo com os membros do grupo; tanto você, quanto Yin Chang e o companheiro de viagem dele parecem querer pernoitar dentro dos caixões. O que há de tão bom ou de tão ruim aí dentro?
– Não se aproximem de mim! – Veio a restrição fanha do monge, soando de modo que expusesse o cansaço que sentia. – Estes caixões são grandes achados, mas dois deles foram amaldiçoados, um com a roleta de Xima Wei, e outro com lapsos de memórias – Houve pausa em suas palavras abatidas, e ele pareceu ponderar por um tempo, antes de concluir por fim: – Se vocês não estavam cientes antes, isso significa que o caixão em que ficaram foi o designado para o imortal taoista, que nunca morreu.
A reviravolta hodierna não era esperada por ninguém, nem mesmo por Lorde Ming. O temperamento despreocupado, cujo não era desmantelado nem diante de governadores que pediam sua cabeça decepada sobre uma bandeja de ouro, caiu sem poder ser reposto num pedestal outra vez quando “Roleta de Xima Wei” fora pregado.
– Aquela que tem como objetivo principal enviar invasores de mausoléus à perdição quando respiram os trilhões de fungo composto em pó de ossos? – perguntou, parecendo estar descrente. – É dito que maldição mais espantosa no mundo não existe. Afinal, se o invasor for fraco de mente e alma, ser manipulado não será nada complicado. E ficar preso para sempre em um passado ou futuro que a você não pertence será agonizante, pior que morrer.
– Felizmente não fui sorteado com essa geringonça inútil – O monge explicou a situação para se gabar, não sendo nada sucinto ou cirúrgico em seu relato: – Estive vagando pelas incontáveis memórias do sumo sacerdote Xima Zu, o falecido irmão mais novo do taoista imortal. Achei que não conseguiria me libertar do longo lapso, e fiquei confuso com as cenas; por muito tempo me vi sendo ele, em outro tempo, me recordava de quem eu era. Pude escapar…
— Se não foi você o azarado, isso significa que foram… – Se mostrando bastante agitado por todo o falatório, o interrompeu numa determinada parte sem importância.
Antes que a voz tremesse grave, como feijões caindo em uma panela de bambu, os olhos cinza-aço de Lorde Ming se voltaram para a única acomodação selada, onde Yin Chang permanecia pernoitando com seu companheiro de viagem. Os padrões rasos era o diferenciado daquele, não tendo conchas do mar esculpidas no chumbo escuro como turmalina, e o ideograma “贼” [2] no centro, mas sim “千秋” [3]. Os oito puxadores nas laterais eram ornamentos delicados, traçados em círculos infinitos, como o amor de Xima Wei pelo outono, ou por quem era o responsável por ele.
Se criou tal maldição, foi porque desejava ver o passado e futuro dele incontáveis vezes. Mas jamais quis se esquecer do presente, onde estava protegendo o corpo de Qianqiu.
Lorde Ming alegrou-se pelos pensamentos certeiros, e a adrenalina clareou suas feições. Em meio à conclusão, sua respiração contida era a única coisa que podia ser ouvida, até que um estrondo criou alarde, perturbando a paz que deveria ter reinado por anos longevos, mas solitários.
Oh, inacreditável. Esse foi o resultado do Yin-Coquinho?
– Bom dia, querido – Lorde Ming sorriu em boas-vindas ao vê-lo se erguer. – Venha comigo, iremos matar Xima Wei!
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Buda Risonho: de acordo com as lendas, o Buda Risonho adora entrar nas casas para afugentar todos os problemas sorrindo e por isso, esse Buda também é conhecido como o Buda da felicidade. Fonte
“贼”: significa Z no nosso alfabeto
“千秋”: ideograma: Qianqiu, significa Mil Outonos; uma referência descarada a novel de Meng Xi Shi.
Publicado por:

- Bllau
- “Escritora amadora de C-Novels, escrevendo histórias para satisfazer-se, em uma busca incessante para fugir da realidade medíocre em que, infelizmente, vive lamentavelmente…”
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