Entre Espadas - Capítulo 42
Tendo, finalmente, uma noite de sono bem dormida em muito tempo, Ryo se sentia revigorado. Se não fosse pela fome e pelas manchas de sangue em suas roupas, ele facilmente poderia dizer que não havia passado mais de uma semana em completo surto mental e emocional. Sentado na cama, olhou ao seu redor e percebeu que o quarto estava completamente limpo, sem nenhum sinal do que havia acontecido anteriormente. Ao observar seus braços, notou que as feridas que havia se auto infligido haviam desaparecido, restando apenas pequenas cicatrizes ao redor de seus pulsos. Isso o deixou mais tranquilo, pois o fator de cura de seu corpo, após aprender a manusear sua própria energia espiritual, estava realmente melhor. Ele deveria se lembrar de agradecer a Masaru por tê-lo ensinado tão bem.
Suas memórias, no entanto, continuavam levemente confusas. Ele ainda se lembrava de uma vida falsa, na qual crescera ao lado da Xogum, mas também sabia da verdade: não pertencia àquele lugar. A única certeza que tinha era que os últimos quatro anos, durante os quais passara a maior parte do tempo sendo treinado pela ruiva e realizando missões relativamente simples, eram bem reais. Enquanto organizava seus pensamentos, a voz de Uroborosu ecoou, trazendo-o de volta à realidade.
— Toyosaki, está melhor? — A voz da serpente ecoou enquanto sua figura se materializava à frente do rapaz.
Ele levantou o olhar, se deparando com a expressão preocupada de Uroborosu, que nem sequer se esforçava para disfarçar. — Não se preocupe, está tudo bem por enquanto. Obrigado por cuidar de mim. Se não tivesse tomado meu corpo para me obrigar a comer… bem, as coisas seriam diferentes.
— Não me agradeça, não consegui ajudá-lo a colocar a cabeça no lugar. Sinto muito. — Uroborosu falou, fazendo uma reverência em respeito ao humano recém-recuperado.
Vendo a maneira estranhamente comportada e calma que o espírito, com quem estava acostumado a dividir seu corpo, agia, ele não pôde deixar de rir e rapidamente mudou o tópico da conversa. — Então, Uroborosu, me diga: naquele dia, no caminho antes de encontrarmos o Kishin, era sobre minhas memórias que você queria me contar, não era?
O espírito não respondeu de imediato, mas não demorou muito para dizer algo. — Sim… me desculpe, rapaz. Eu pensei que guardar esse segredo de você poderia acalmar a angústia do seu coração naquela época… Agora vejo que talvez tenha me enganado.
— Não, você não se enganou. Então, não se sinta culpado, Uro. Essa… perda de memórias, essa falsa vida… não foi de todo ruim. Eu fiz amigos, ganhei uma família e, pela primeira vez em muito tempo, tive dias e mais dias de paz, sem temer… Então, não se culpe. Mas não se esqueça: você ainda me deve um segredo. — O rapaz respondeu com uma risada descontraída e até mesmo de bom humor.
— Há algo que deseja saber? — O albino perguntou, um pouco mais calmo devido à resposta de Ryo.
— Sim, mas agora não é o momento. Antes disso, preciso cumprir algo que prometi ao terceiro general. Vou deixá-lo aqui e ir lá embaixo. Além disso, tenho muitas cartas para ler e responder. Nos vemos mais tarde, Uro. — O rapaz disse, tirando seu sobretudo manchado de sangue e vestindo uma camisa simples de tecido cinza. Em seguida, amarrou os cabelos em coque alto.
[…]
Somente após se considerar minimante decente para ser visto por seus companheiros, o rapaz saiu de seu quarto. No mesmo momento em que pisou para fora, sua coruja apareceu, voando em sua direção e pousando em seu ombro, o que o fez rir levemente e até acelerar seus passos. De vez em quando, ele se apoiava nas paredes devido à fraqueza.
Quando chegou ao primeiro andar da casa, o rapaz caminhou até a porta, abriu-a e confirmou que ainda era o início do amanhecer. Dificilmente algum de seus companheiros estaria acordado naquela hora.
Com essa certeza, ele não pôde deixar de sorrir enquanto se movia entre os móveis, procurando tinta, pincel e papel. Logo após encontrá-los, sentou-se em uma mesa qualquer no cômodo de entrada e começou a escrever uma carta. Fuyu o observava de tempos em tempos, sem entender o que seu dono estava fazendo. À medida que Ryo escrevia, a pequena coruja pulou de seus ombros e ficou o observando-o da mesa.
Quando o samurai finalmente terminou de escrever, utilizou outro papel para fazer um envelope. Após guardar a carta que havia escrito, ele buscou em seu bolsos um colar com duas joias diferentes: uma delas era um sol vermelho, que emitia uma luz fraca e constante; ao seu lado, havia um coração anatomicamente correto, de cor azulada e escurecida. À distância, Ryo podia até mesmo ouvir o som baixo das batidas daquele órgão.
— Espero que saiba o que me pediu para fazer, Gonkuro-sama. Espero que isso seja apenas um “até logo”. — Ele sussurrou enquanto colocava o colar dentro da carta e, finalmente, a selava com seu próprio sangue, escrevendo um feitiço de condição: “Apenas o dono do coração guardado nesta carta poderá abri-la.”
Após isso, ele pegou a carta e olhou seriamente para Fuyu, que, sem entender o que seu dono queria, soltou um leve piado confuso, movendo a cabeça para o lado. Com o passar do tempo e a exposição constante à energia espiritual dos youkais que andavam com Ryo — e também à sua própria energia —, as penas de Fuyu haviam mudado para uma penagem branca com poucas plumas pretas. Seu crescimento estava mais acelerado do que deveria, mas tudo bem; isso facilitava a tarefa que Ryo precisava dar a ela.
— Fuyu, preciso que leve essa carta até o terceiro distrito em segurança. Você sabe ir até lá? — Ele perguntou, balançando o envelope com a carta diante dos olhos da coruja, que ainda não parecia entender bem o que seu dono queria.
Notando que a coruja provavelmente não havia entendido, Ryo suspirou fundo e, após pensar um pouco, decidiu tentar algo. Levantando sua mão livre à frente da mesa, ele finalmente falou:
— Abrir sistema.
No mesmo instante em que ele terminou de falar, várias caixas de diálogo de cor azul começaram a se abrir à sua frente, como se, nos anos que haviam se passado, todas as notificações que aquele estranho sistema deveria ter entregado estivessem chegando de uma só vez. Antes que ele pudesse sequer olhar o que aquelas notificações significavam, uma tela vermelha apareceu, bloqueando seu acesso.
[O sistema do usuário está em reparo, tendo sido adiantado em seis meses pelo usuário 000070. O proprietário deseja utilizar metade dos pontos acumulados para o desbloqueio do sistema?]
[Total de pontos: 500.000]
[O usuário deve ser avisado de que os pontos acumulados podem ser convertidos em dinheiro, de acordo com a moeda do país, ou em itens que o usuário já possuiu nesta ou em vidas anteriores.]
— Tanto faz. Meu celular não seria útil aqui mesmo. Gaste os pontos. — Ele respondeu rapidamente, sem pensar muito sobre o assunto.
No momento em que concordou, ele finalmente conseguiu ver as diferentes notificações que havia acumulado em tanto tempo. Entre elas, havia uma habilidade inerte esperando para ser ativada, mas aquilo não o interessava no momento. Além disso, havia várias notificações sobre Leonardo. Aparentemente, Fuyu não era apenas uma corujinha qualquer que havia caído de uma árvore. Segundo o alerta do sistema, ela era um homúnculo de baixo nível, criado para observação e rastreamento do rapaz, e havia sido feita por Leonardo.
Sinceramente, se fosse qualquer outra pessoa, ele acharia essa atitude preocupante. Mas, sabendo o quanto seu noivo bobo se preocupava, ele não se importou tanto. Na verdade, até se aproveitou para olhar o painel de atributos da pequena coruja. Ele sabia que a chance de Leonardo ter se atentado a isso era mínima, então ele faria isso pelos dois.
— Certo, certo, vamos ver o que eu posso ajustar aqui para me ajudar… Fuyu-chan, o papai vai te deixar fortinha. — Em poucos segundos, o rapaz movia os dedos mais rápido do que uma pessoa normal conseguiria em um teclado de computador. Gastou seus pontos restantes para aumentar diferentes atributos da coruja: a força de suas asas, sua capacidade de voo, sua inteligência, a produção de sua própria energia espiritual e até acelerou seu crescimento para a fase a adulta. Além disso, concedeu-lhe algumas habilidades próprias. A essa altura, a coruja já se parecia mais com um youkai animal do que com uma simples coruja fofa de estimação.
Quando a janela do sistema se fechou e Ryo olhou novamente para a coruja, ela já aparentava ser mais velha, mais forte e até mais curiosa em relação a ele. — Fuyu, consegue me entender agora? Espero que sim. A partir de agora, trabalhe comigo. Sempre que o Leo tentar espiar algo com seus olhos, reprima-o, pelo menos até voltar para mim. Vá ao terceiro distrito, eu te mostrarei exatamente onde deve ir em um mapa. Leve a carta até a cidade que eu indicar. Caso se perca, me deixe ver por seus olhos, e eu te guiarei na direção certa. Voe com cuidado e fique atenta. Não pode perder o que está nessa carta.
[…]
Ao mesmo tempo, na vila em reconstrução no terceiro distrito.
Naquela noite, como muitas outras antes dela, Masaru não havia fechado os olhos nem por um momento. Durante o dia, a ruiva tentava se distrair ajudando na reconstrução da vila. Pouco a pouco, em algumas semanas, ela já havia reerguido algumas casas com a ajuda de Liu e Zhao.
Mas durante a noite, aquela dor parecia consumi-la de dentro para fora. Mais uma vez, ela havia perdido alguém que amava, magoado alguém que amava, e sido enganada e coagida a tomar atitudes que jurava ao seu povo jamais tomar. Huo estava desaparecida… Yanagi estava desaparecido há tantos anos, e eles nem ao menos haviam notado… Era como se o sentimento de perder sua família mais uma vez a assombrasse como algo inevitável. Aquela coisa maldita a havia a enganado, e a impossibilidade de sequer segurar Seiryuu em suas mãos só aumentava sua angústia.
Com o cansaço constante, observando a luz que adentrada seu quarto com o amanhecer, ela sabia que outro dia dolorido começaria. Ela havia perdido seu irmão outra vez, e talvez, dessa vez, ele nunca mais voltaria.
— Seu idiota… Havia tantas maneiras melhores de se fazer isso… Meu irmão… — À medida que falava para si mesma, em completa tristeza, uma voz grossa e obviamente rouca soou da porta de seu quarto.
— Masaru, sou eu… Posso entrar? — A voz de Liu soou enquanto o som da porta se abrindo suavemente se fazia presente.
Ela não respondeu, nem ao menos se virou para olhar para o nono general, mas sabia que ele já havia entrado. Sinceramente, pelo tempo em que não o via, ela quase havia se esquecido desse estranho costume do nono general de aparecer justamente quando mais precisavam dele, o que a fez soltar uma leve risada.
— Liu. — Ela chamou em voz baixa.
— Diga, Masaru.
Ela suspirou e virou seu rosto para o general, ainda sem forças para encará-lo. — Quando isso para de doer? Quando parou para você?
O general não a respondeu de imediato. Pelo contrário, ele andou de um lado para o outro, segurando um pergaminho fechado em suas mãos, e então sentou-se em frente à cama. — Parar de doer? …Eu não sei. Nunca parou de doer para mim. Mas, sabe, quando tudo aconteceu, não quis ser egoísta e prendê-lo a mim. Em vez disso, me apeguei a todas as boas lembranças… assim como ainda faço agora… Ele estará sempre conosco. O Gonkuro, a Hana, Himari e Saki… Eles podem não estar mais aqui, mas sempre teremos nossas memórias deles, nossos bons momentos… os dias calmos e felizes naquela casa simples à beira-mar, tantos anos atrás…
Ouvindo tudo o que o general falava, ela não conseguia conter as lágrimas e até mesmo o sorriso em seu rosto ao relembrar momentos passados. — Você ainda se lembra disso? Depois de tanto tempo?
— Se ainda me lembro? Às vezes, me vejo desejando que tudo volte a ser como naquele tempo, em que tudo era mais simples… — Enquanto falava, o general levou o pergaminho em suas mãos até as mãos de sua Xogum e, após entregá-lo, levantou-se para sair.
— Se manchar isso, eu te deixo fazendo essa reconstrução sozinha, Masu. — O homem concluiu e, enfim, saiu em silêncio, fechando a porta atrás de si.
Quando Liu Guang deixou o quarto, Masaru ficou ali, olhando para o pergaminho fechado em sua mão, secando suas lágrimas em seu braço. Somente então, com certa dificuldade, ela finalmente o abriu. No pergaminho, uma paisagem estava desenhada, junto a treze rostos conhecidos, além do seu. Gonkuro, com seus cabelos amarrados em um rabo de cavalo, era segurado nos braços de Liu com um sorriso brincalhão. Hana e suas irmãs estavam penduradas nos braços do sétimo general, Ito, que estava ao lado da sétima, Koharu, que mantinha as mãos em frente à boca, segurando uma risada.
Ao lado dela, a quarta general, Chiyo, segurava em seus braços o quinto general, Jo Shihei. Sentadas no chão, à frente deles, estavam Huo Liming, apoiando a cabeça no ombro de Masaru, e Kaoru, do outro lado, apoiando sua cabeça da mesma maneira que Huo. E, acima de todos, estava Yanagi, batendo suas asas enquanto segurava o oitavo general, Zhao Minyue, suspenso pelos braços, com aquele típico sorriso de alguém prestes a aprontar algo.
E, por fim, no canto inferior do pergaminho, estava a assinatura de seu irmão, junto a uma pequena frase: “Mais um lindo começo de dia com minha família. Minha irmã e meu amanhecer deixam tudo ainda mais bonito!”
Ver aquela pintura, sentir todo aquela mistura de sentimentos ao relembrar os bons momentos que passaram juntos, a fez chorar novamente após fechar o pergaminho. A Xogum, então, finalmente se levantou da cama, foi até uma mesa perto da porta e guardou o pergaminho com cuidado em uma gaveta. Uma pintura repleta de lembranças.
[…]
Mas, por mais que não soubesse, essa história se estendia a muito mais tempo do que o nascimento da própria Masaru. Essa é uma história que começa cento e trinta e quatro anos atrás, quando a nação ainda não era dividida entre distritos e a guerra entre humanos e youkais continuavam a todo o vapor, com muitas mortes e poucos momentos de calmaria. Essa história, sobre dois irmãos que acabariam com essa guerra milenar ao lado de sua família, inicia-se na antiga capital, em uma manhã especial para aqueles do Clã Furukawa e Katsura: o dia do nascimento do herdeiro de seu líder.
Naquela manhã, Daiki Furukawa, o atual líder do clã, um homem alto no auge dos vinte e cinco anos, com cabelos vermelhos escuros, curto e levemente bagunçados, vestindo roupas relaxadas e frescas, estava sentado nos corredores externos da casa principal. Ele segurava diversos papéis em suas mãos, a maioria deles concentrando-se em pedidos de mantimentos para os guerreiros, auxilio militar e, incrivelmente, propostas de casamento para seu filho ou filha que mal havia nascido.
Ele amassou rapidamente as propostas de casamento, descartando a possibilidade de um casamento arranjado. Sua criança mal havia nascido, e aqueles porcos interesseiros já mandavam propostas com valores exorbitantes, como se considerassem seu filho uma mercadoria à venda. Isso era realmente detestável.
Ao seu lado, de pé, observando-o organizar diversas cartas em diferentes pilhas, estava seu servo particular, um membro da segunda família, um homem de idade mais avançada, com cabelos loiros e um comportamento calmo e inexpressivo.
— Velhote. — Daiki chamou, claramente irritado.
— Sim, Daiki-dono?
— A partir de agora, peço que separe as correspondências entre assuntos realmente importantes e proposta de casamento. Traga-me apenas o que for realmente necessário. Nossa família não precisa vender nossas crianças para obter apoio financeiro de outros clãs. Responda todas as cartas desses clãs que já enviaram propostas e avise-os que, se insistirem nesse assunto, eu mesmo irei silenciá-los. — Ele falou de forma visivelmente irritada. A presunção de clãs mais fracos o deixava de mal humor. Após terminar de falar, o chefe se levantou e começou a se afastar com passos pesados.
O velho já acostumado com os modos de seu senhor, apenas sorriu e voltou a falar um pouco sem graça. — Meu senhor, para onde vai? Ainda temos muitas coisas para arrumar hoje. A previsão para o nascimento do seu filho é para hoje, e o imperador virá para dar suas bênçãos. O senhor deveria, ao menos recebê-lo…
— Como se eu quisesse a bênção daquele velho maldito! Como você mesmo disse, velhote, meu filho nascerá hoje. Ficarei com quem realmente merece minha presença: minha esposa. Não receberei nenhum verme do império hoje. Feche os portões principais. Apenas a família pode circular por aqui hoje. — Após encerrar o que considerava ser o assunto, Daiki seguiu seu caminho sem dar mais importância ao que havia sido dito. Passou primeiro pela cozinha da casa principal, onde descascou algumas frutas frescas e as colocou em um pote de madeira.
Somente após isso, o homem saiu com um sorriso que ia de uma ponta a outra do rosto. Por mais que pouco tempo tivesse se passado, as melhores horas de seus dias eram quando podia cuidar de sua esposa pessoalmente. Chegando ao quarto onde sua mulher descansava, sendo cuidada por diversas servas, Daiki parou na porta, observando o belo rosto de sua esposa. Seus cabelos loiros brilhavam em contraste com o sol, sua expressão de estresse era clara devido à quantidade de pessoas ao seu redor, e seus olhos negros, como uma noite sem estrelas, contrastavam com os constantes suspiros de cansaço que praticamente gritavam: “Saiam daqui!”
O homem sorriu encantado, conhecendo todos os trejeitos de sua amada. Olhando para as pessoas no quarto, tossiu levemente, chamando a atenção de todos no cômodo. — Podem sair agora. Eu assumirei os cuidados daqui.
No mesmo instante em que o homem deu sua ordem, as fileiras de empregados se retiraram, um após o outro, até que apenas marido e esposa ficaram ali, olhando um para o outro.
— Minha Ayame, não fique de mal humor. Isso faz mal para o bebê. Veja, eu trouxe algumas frutas para você. — O ruivo dizia de maneira calma, sentando-se ao lado de sua esposa na cama.
A mulher riu, parecendo finalmente mais relaxada com a presença do marido, e apoiou a cabeça no ombro dele. — Pela Deusa, marido, não aguento mais. Estou me sentindo sufocada com tantos servos me rodeando. Não sou frágil nem feita de vidro.
Daiki riu com as reclamações de sua esposa enquanto lhe dava frutas na boca. — Eu entendo que você está frustrada, meu doce lírio branco, mas acalma-se. Logo tudo isso passará. Nosso pequeno está quase chegando, e então momentos alegres serão mais constantes. — O homem falava de maneira calma, sempre buscando confortar sua esposa acima de tudo.
— Momentos alegres? Não seja bobo Daiki. Enquanto esse conflito contra os youkais não cessar, nunca haverá um dia de paz. Esse maldito louco… Por quanto tempo ele pretende estender essa guerra? Já perdemos muito. Humanos ou youkais, todos estão perdendo. — A mulher continuou, claramente bem-informada sobre toda a situação acontecendo ao seu redor. Diferente da maioria das mulheres que conhecia, que costumavam se esconder atrás seus maridos, Ayame Katsura não era assim e nunca seria. — Deveríamos matá-lo e encerrar essa loucura.
Daiki por um segundo, demonstrou uma leve preocupação em seu rosto e beijou rapidamente sua parceira. — Meu amor, não fale tão alto sobre matar o imperador. Seria ruim se alguém ouvisse. Mas devo dizer, se pudesse, eu com toda a certeza traria a cabeça daquele tirano para você, se isso a fizesse sorrir.
Os dois então se olharam ali por um breve instante, trocando sorrisos brincalhões, quase parecendo realmente cogitar dar um fim à vida do imperador. Mas, no minuto seguinte, ambos apenas começaram a rir sobre o assunto e logo voltaram a conversar sobre coisas mais bobas do dia a dia, alguns conflitos políticos relacionados aos samurais do clã e até ficarem em silêncio, enquanto Daiki limpava o quarto onde Ayame descansava.
— Se te virem limpando um quarto, vão começar a se perguntar se você seria a mulher da nossa relação. — Ayame brincou entre risadas, imaginando seu marido desta maneira.
Daiki pareceu não se importar com o comentário e apenas riu. — Deixem que duvidem. Diferente deles, eu cuido de quem amo e não preciso de consolo em concubinas e cortesãs, como esses “nobres.”
Parecendo se lembrar de algo, Ayame riu antes de voltar a falar. — Deusa, acabei de me lembrar de algo. Lembra quando nos casamos e aqueles chefes de estados vieram lhe perguntar se pretendia tomar concubinas para nosso lar, caso eu não pudesse dar um herdeiro? Ai, ainda me divirto me lembrar do medo nos olhos deles quando viram sua expressão, prestes a matar alguém…
— E como lembro! Tsk, porcos. Não é porque eles se casam apenas para procriação e linhagem que todos são desprezíveis como eles… Ainda me lembro de dizer que não me importaria em viver uma vida sem um herdeiro para tomar meu lugar na velhice.
— É, mas agora isso não importa. Nosso filho está vindo. Estou certa de que é um menino… Nosso pequeno, forte e valente Gonkuro Katsura. — A mulher disse, sorrindo acariciando sua barriga.
Daiki sorriu e, indo até sua esposa, a beijou e deixou um beijo em sua barriga. — Vou deixar vocês descansarem agora. Se as contrações começarem e sua bolsa estourar, a parteira da família já está aqui… Estarei na minha sala. Mande me chamar assim que começar. Não vou deixá-la só em um momento como esse.
Quando Daiki finalmente saiu do quarto, já era meio da tarde. Pelo resto do dia, o homem tentou se desocupar o mais rápido possível antes do pôr do sol, se apressando de maneira sobre-humana, assustando até mesmo aqueles que já estavam acostumados a trabalhar com ele desde que ele assumira o comando do Clã Furukawa.
No cair da noite, foi quando a bolsa de Ayame finalmente estourou, como sua parteira havia previsto. Naquele ponto, as dores das contrações já haviam começado, excruciantes, fazendo a mulher gemer e xingar de dor. Ela havia finalmente entrado em trabalho de parto. Enquanto tudo acontecia, Daiki estava do lado de fora do quarto, andando de um lado para o outro, agitado. Minutos, horas e mais horas se passaram, até que finalmente alguém saiu do quarto.
A parteira abriu a porta levemente, saindo para fora com um olhar cabisbaixo, quase como um sinal de que algo havia acontecido. A idosa então saiu, fechando a porta atrás de si. — Eu… eu sinto muito, meu senhor… O cordão umbilical havia se enrolado em volta do pescoço do bebê… Eu fiz tudo o que pude…
Daiki, por sua vez, nem esperou a parteira terminar de falar. Ele a empurrou para o lado e entrou no quarto correndo, indo direto de sua esposa, que estava molhada de suor e chorando baixinho, segurando contra o peito um pequeno corpo frágil e frio, enrolado em uma toalha bordada.
— Meu bebê… Eu matei meu bebê… Daiki, eu… matei nosso menininho… — A mulher dizia de maneira inconsolável, chorando entre lamentos e gritos, enquanto seu marido a abraçava, tentando confortá-la.
— Não, não diga isso, meu amor. Você não o matou… Não diga isso… — O homem dizia, agarrando-se à sua esposa, distribuindo beijos em sua cabeça e segurando-a enquanto tentava conter suas próprias lágrimas.
Os lamentos e a dor de Ayame eram demais para qualquer um dos que estavam do lado de fora do quarto, fazendo com que se retirassem, deixando apenas Daiki e sua esposa ali, chorando a perda do filho que acabara de nascer morto dentro do útero de sua própria mãe, fazendo-a se culpar pelo que havia acontecido. Por mais que seu marido tentasse constantemente lembrá-la de que aquilo não era culpa dela, o que havia ocorrido ali, sob a luz da lua que brilhava sobre o sofrimento do casal apaixonado, fez Ayame pronunciar sua última súplica para reaver seu filho.
— Eu imploro a você, ó Kami, herdeira da noite, que agora ocupa o trono de seu pai… Por favor, Dama, devolva-me meu filho! Salve-o, salve-o… Pois sei a verdade… Salve-o por amor àqueles que são humanos e fracos… Salve-o, pois sei que também é filha de um humano! — Ela continuou a implorar entre lágrimas, acariciando o rosto da criança em seus braços de maneira serena, quando uma voz doce e calma ecoou da janela de seu quarto, por onde a luz entrava.
— Não posso trazê-lo de volta, pelo menos não como um humano. Você o amaria mesmo se fosse um youkai, Ayame? Daiki o amaria? — A jovem de cabelos ondulados, castanhos e platinados, que voavam com o vento da noite, perguntou, sentada na janela olhando para a lua. A Deusa havia escutado as preces da mãe que lamentava e, agora, finalmente estava ali para ajudá-la.
— Mi-minha Deusa… Eu… Eu o amaria, humano ou youkai. Ele é meu filho, meu mundo, a criança que gerei em meu próprio ventre durante nove meses. Eu já o amo desde o momento em que me escolheu para ser sua mãe. Por favor, senhora, deixe-me ter meu filho de volta. — A mulher implorava entre lágrimas, falando até mesmo um pouco mais alto, o que acabou acordando seu marido. Ele se deparou com a visão da mulher na janela e, somente por olhá-la, soube em seu coração que se tratava da própria Deusa.
— Por favor… Hoshi-sama… Devolva nosso menino… não nos importamos como. Nós o amaremos. Por favor, devolva-o para nós! — O homem, que havia acabado de acordar, se levantou e rapidamente se prostou ao chão, implorando à Deusa.
Hoshi, por sua vez, não olhou para eles, apenas suspirou. — Tudo bem. Acredito em vocês. Eu darei a vida ao pequeno Gonkuro mais uma vez. A criança em seu útero não havia criado uma alma, nem mesmo havia uma alma para ocupar esse corpo. Mas tudo bem. A alma de seu filho agora é como a minha: uma alma mestiça, entre duas raças diferentes… Seu filho possui a alma de um honrado Baku, um protetor, misturada a uma alma humana recém-formada. Sua criança não poderá assumir a forma da besta devido à maneira como está nascendo, mas será um dos youkais mais poderosos que existirá de hoje até o fim dos tempos… — A Deusa continuou a falar, enquanto, do lado de fora, o vento parecia formar uma bela melodia em meio à escuridão da noite.
— Seu útero ainda será fértil. Vocês terão mais uma filha. Ambos os seus filhos serão aqueles que finalmente darão um fim a essa guerra. Amem e cuidem de seu filho, e lembre-se: por mais que ele não possua uma forma bestial real de um youkai, ele ainda será único e excepcional. O mais belo dos homens, com habilidades fabulosas e boas. E, quanto mais crescer, mais evidente se tornará sua singularidade. Com o passar dos anos, suas orelhas se tornarão longas e pontiagudas, e, em algum momento, o pequenino precisará se alimentar de pesadelos para sobreviver… E, se um dia seu pequeno morrer novamente, não se preocupem. Algo me diz que esse rapaz terá um dom para escapar da morte…
Quando a Deusa enfim terminou de falar, um vento forte adentrou o quarto, seguido de uma brilhante luz dourada. Em poucos segundos, a criança que antes estava sem vida nos braços de Ayame começou a chorar como qualquer outro recém-nascido, fazendo tanto Daiki quanto sua amada chorarem de alegria pelo presente o qual haviam recebido de sua Deusa. Aquela madrugada, que havia começado marcada por uma tragédia, se tornou o início de dias felizes e animados para o Clã Furukawa.
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