Ai No Kusabi - The Space Between - Capítulo 2
Midas. Cidade do Pecado. Era como um tirano que desprezava a passagem silenciosa e pacífica da meia-noite.
Ou talvez um demônio mais malvado do que qualquer soberano manipulador. Ou a encarnação de um paraíso terrestre que erguia as saias néon brilhante, seduzindo almas enquanto uma risada desenfreada escorria dos cantos de sua boca.
A vontade, o coração e o intelecto apodrecidos de Midas se acumulavam aqui e ali em poças estagnadas e reinavam sem questionar uma escuridão que não devia a ninguém.
Por todas essas razões, foi apelidada de Distrito do Prazer. A infame cidade era um satélite urbano da metrópole central de Tanagura, que era governada por Lambda 3000, o gigantesco supercomputador conhecido como “Júpiter”. Seus recintos virtuais eram dotados de todos os tipos imagináveis de diversão, respondendo aos desejos e necessidades da carne mortal. Ali se encontravam cassinos, bares, bordéis e todas as facetas da indústria do entretenimento.
Dentro dos limites de Midas, a moral e os tabus não existiam. Apenas a noite cheia de brilho lascivo, suspeito e superficial. Ali, as horas barulhentas e espalhafatosas definhavam até o amanhecer.
Mas sob sua aparência deslumbrante escondia-se outro rosto mais repulsivo: o rosto grotesco de Midas jantando em uma mesa de banquete interminável de prazer, onde os instintos mais baixos, expressos sem restrições, e o desejo humano, eram expostos.
Os feixes de luz infinitamente promíscuos e sedutores flutuavam na escuridão e, ao pé desses gigantescas e tentadoras armadilhas para rato, a multidão banhava-se na brisa morna e lenta. O ar grudento de Midas enrolando-se nos membros apáticos dos homens não era nada além de um afrodisíaco, entorpecendo a racionalidade e transformando o coração e a mente em geleia.
Mas ao atravessar os viadutos, afastando-se dos dois anéis centrais que formavam o núcleo de Midas — Área 1 (Lhassa) e Área 2 (Flare) — essas sensações inebriantes desapareciam. No tempo que levou para o ar frio da noite dissipá-los, a paisagem urbana mudou completamente.
Os arredores de Midas. Área Autônoma Especial 9. Ceres. A desprezada “Virilha de Midas”. As favelas. Mesmo os proprietários do Distrito do Prazer franziam as sobrancelhas em desgosto e nunca ultrapassavam seus limites.
Não havia paredes separando Ceres das áreas adjacentes, nem lasers de segurança para bloquear invasores. No entanto, as avenidas que separavam aqui de lá marcavam uma mudança abrupta de cenário óbvia para todos até para os cegos.
Nenhum sinal da presença humana podia ser visto nas ruas cheias de escombros e lixo. Desnecessário dizer que a enxurrada de néon espalhafatoso manchando as noites de Midas estava a um mundo de distância, incendiando as paredes em ruínas dos prédios com um brilho marrom sujo.
Sua aparência estranha e dissoluta sugeria que a passagem indiferente do tempo de repente se refratou sobre si mesma, distorcendo passado e futuro em uma direção inesperada.
Assim como o entusiasmo implacável emergindo dos Bairros do Prazer. Assim como as vozes elegantes, abafadas de bajulação, espalhadas pelo vento. Nada chegava àquele terreno baldio, exceto os perdidos que se entregavam à confusão de cores sinistras e medonhas.
Ceres era o lar da escória deixada para trás na poeira da época. Qualquer determinação de limpar as pilhas fumegantes há muito se exauriu. E qualquer capacidade de reforma ou purificação que a comunidade tenha ressuscitado, havia morrido há muito tempo.
O único som que chegava aos ouvidos eram as ocasionais agitações de ressentimentos profundos e suspiros depravados, dia e noite espalhando o fedor da podridão e da morte. Nada poderia prosperar neste solo envenenado, nem pessoas e nem uma cidade. Acostumado à constante chuva de desprezo, os sonhos das pessoas apodreciam e morriam nas favelas.
Para os cidadãos de Ceres, a metrópole central de Tanagura (onde tudo era e seria perfeito até o fim dos tempos) estava muito, muito longe. Um mundo inimaginavelmente diferente. Ali não lhes era permitido nem lamber as botas de Midas, aquele ditador vaidoso da noite.
Eles viviam em Ceres com as dolorosas realidades do presente e os sonhos fantasmagóricos do passado destruído. Ninguém nunca lhes prometeu um jardim de rosas.
Naquele dia, as nuvens pesadas de chumbo moveram-se pelos céus com uma rapidez inesperada. O tempo de alguma forma se manteve durante toda a manhã, ficando ruim pouco depois do meio-dia. No espaço de dez minutos, uma chuva repentina se transformou em uma violenta tempestade.
A chuva tamborilava incessantemente no chão como se quisesse destruir as favelas. Os ralos das ruas cheias de lixo entupiram e transbordaram. Sem ter para onde ir, o escoamento se transformou em um rio turbulento que levou tudo com ele.
Então veio a noite.
Tendo destruído com caos e recuado, a tempestade abandonou um céu repleto de estrelas. Somente nesta noite, a escuridão tipicamente monótona estava estranha e refrescantemente clara.
Só o ambiente da noite provou ser revigorante. Em homenagem ao aguaceiro da tarde, os jovens das favelas passavam as horas isolados em seus casebres. Agora eles exalavam ativamente todo o calor armazenado.
Amigos se embriagavam e se envolviam em sessões obrigatórias de sexo estimuladas por drogas. Não havia nada de incomum em bandidos rondando esse território apertado, batendo cabeças e causando problemas.
O equilíbrio de poder na Área 9 mudou com as estações. Ou seja, apesar da aplicação generosa de pesticida, algumas novas espécies de ervas daninhas acabariam ganhando vida depois que as chuvas acabassem. No entanto, a maior parte deles possuíam tão entusiasmo e interesse que até as fofocas sobre golpes e rivalidades internas raramente eram levadas a sério. Dificilmente esses conflitos eram levados a sério.
O lugar estava cheio de homens desonestos e animais de carga, mas ninguém tinha a força de vontade para arrastá-los para a linha de frente e começar a conquistar algo. No final, porém, não havia como negar essas contínuas guerras por território, cuja violência poderia ser em grande parte culpada pela deterioração da ordem pública nas favelas.
Recentemente, a luta pela supremacia na Área 9 surgiu entre Jeeks (um da nova geração de “Hyper Kids”) e Mad Dog Maddox, lutando para manter sua base de poder perdida. Dizia-se que isso se tratava de uma batalha entre o velho e o novo regime, e enquanto isso, terceiros poderosos ficavam nas sombras, esperando o momento certo para atacar.
Foi dessa maneira que, por quase quatro anos, em vez de colocar suas próprias vidas e credibilidade em risco e simplesmente pegar o que queriam para si mesmos, foi a busca por migalhas — a garantia de contenção mútua por meio de covardia mútua — que tornou-se prática comum.
Há muito tempo, Bison havia conquistado a zona de guerra da Área 9, também conhecida como “Hot Crack”. Mas, no auge de seu sucesso, eles se separaram abruptamente, e ninguém os havia substituído desde então.
Agora se resumia a Jeeks ou Maddox.
“Só resta dar o do golpe de misericórdia”, gabavam-se os fofoqueiros. Mas, para isso, faltava um elemento decisivo: uma força de vontade que juntasse seguidores e multiplicasse o poder coletivo de suas forças individuais.
As favelas uma vez conheceram um homem que possuía aquele carisma tão extraordinário. O menino deixou o centro adotivo Guardian aos treze anos sem nenhuma posição especial ou privilégios, mas em um tempo surpreendentemente curto ele fez um nome para si mesmo nas favelas.
Não foi por causa de sua aparência marcante. Nem porque ele havia bajulado desnecessariamente alguém, nem por ser um babaca, nem sua confiança era conquistada facilmente. Todos que o conheciam concordavam que era por causa da natureza superior de sua personalidade tão incomum para a sua pouca idade.
“Ele é um diamante bruto”, disseram. “Ele não se curva a ninguém.”
Todos os moradores de Midas conheciam a besta mítica chamada de Diamante das Favelas, também conhecido como Ragon, Deus Demônio do Submundo, ou Grendel, O Destruidor De Almas. Uma fera precatória que poderia esmagar um membro até o osso com uma única mordida de suas mandíbulas de aço e presas afiadas. Uma quimera desdenhosa voando com as quatro asas nas costas, sua pelagem brilhando com um brilho negro encantador.
Por um lado, ele era comparado a esse Diamante por causa de seus cabelos negros e olhos de obsidiana, características únicas mesmo nas favelas que o reduziam a um vira-lata e um mestiço.
Por outro, era devido à ferocidade calculada que ninguém esperaria vir de uma aparência tão delicada. Se “a sobrevivência do mais forte” era a lei da selva, então o fraco buscar o patrocínio do forte e aproximar-se dele era uma peculiaridade particular do comportamento humano.
No entanto, ele não se importava com aqueles elogios exagerados e sem sentido sobre ele. E, embora bem relacionado, ele não exigia nada em troca. Foi porque ele sempre teve ao seu lado um “parceiro”, alguém que poderia ser chamado de sua “cara-metade”. Não era exagero dizer que ele não tinha olhos para ninguém menos que aquele jovem.
Supondo que uma pessoa amadureça ao longo dos anos à medida que as provações da vida se acumulam, há também aquelas cujo caráter superior não cede nem à idade nem ao gênero. Cada movimento que ele fazia era estudado com um interesse e uma curiosidade quase evidentes, e ainda assim, ele pouco se importava com toda aquela atenção recebida no decorrer de sua vida cotidiana.
No entanto, não havia reserva nem misericórdia na mão que tão modestamente afastou as faíscas que iluminaram sua pessoa. Mesmo assim, o círculo dos encantados por seu carisma continuou a se expandir e, com ele comandando as tropas, era lógico que Bison tivesse subitamente subido ao sucesso.
Mas então naquele dia. Como um raio do nada, Bison se desintegrou no ar. As favelas olhavam incrédulas, completamente sem palavras e em choque. Acabou, simples assim.
Não havia dúvidas sobre isso. A notícia de que Riki havia se aposentado da Bison se espalhou.
Por quê? Quais foram os motivos?
Um choque extraordinário correu pelas favelas, acompanhado por uma enxurrada de obscenos e exagerados rumores disfarçados de conjecturas. A verdade do dissolvimento da Bison permaneceu envolta em mistério.
Só ele poderia liderá-los. Independentemente da verdade por trás do fim, Bison não tinha o centro de gravidade feroz de Riki e simplesmente deixou de existir. E assim a Bison praticamente foi extinta, deixando apenas histórias espalhafatosas para trás em seu rastro.
Quase quatro anos se passaram desde então.
Os membros originais da Bison haviam tentado se restabelecer à sua maneira (embora fosse difícil dizer que fizeram um bom trabalho), e o bairro ficou inquieto.
Naturalmente, ao longo desses quatro anos, muitos tentaram conquistá-los e aumentar a credibilidade de seus próprios grupos nas ruas. Bison podia ter se dissolvido, mas sua forte presença continuou a ser sentida, e sangues jovens ansiosos para agarrar até mesmo a menor parte dessa glória fizeram tentativas transparentes de conquistá-los.
Enquanto havia aqueles que, tanto publicamente quanto privadamente se proclamavam remanescentes do restos da Bison, o antigo parceiro de Riki e o resto dos veteranos da Bison resistiam a tentação, não importando o quão solícitos os elogios se tornavam. Depois de provar a emoção de ficar ombro a ombro com Riki e fazer parte de sua gangue, nada poderia tomar seu lugar.
Da mesma forma que a água parada fica ruim, as qualidades de um conflito mudam com o tempo. Aqueles que não conseguiram aproveitar a maré crescente da época estavam destinados a ficar para trás e beijar a bunda de outra pessoa.
Visto sob essa luz, a escolha dos ex-membros da Bison foi sincera. Suas glórias passadas foram cruelmente reduzidas a escombros. Evitar a humilhação de se tornar a cadela de outra pessoa poderia pelo menos ser considerado uma conquista.
E, no entanto, agora surgiram aqueles que mantinham sua presença em puro desprezo. Do lado da extrema-direita estavam Jeeks e Maddox. Jeeks dos Hyper Kids e Mad Dog Maddox. Não importava o quanto eles estendessem seu poder e influência nas favelas, os outros grupos os ignoravam.
“Eles não são nada como a Bison!”
“Posers! Nada além de impostores!”
Chamando-os e comparando com a Bison — sempre a mesma reação repugnante, odioso.
Bison! Bison! Bison!
Sem dúvida, aqueles que se viam como os dois poderosos das favelas se cansaram do som desse nome. Eles não podiam se orgulhar de enfrentar as pretensões de uma lenda que agora era uma sombra do que costumava ser. E foi por isso que eles prometeram de uma vez por todas que iriam esmagar os restos apodrecidos do nome “Bison” e tudo relacionado a ele.
As duas luas circulares nunca tinham sido tão bonitas, tingindo o céu noturno em relevo brilhante.
“Haa-haa-haa-“
Ofegante, Kirie pressionou o rosto contra uma parede em ruínas em um beco vazio e respirou fundo. Ele saiu de seu quarto e foi para o ponto de encontro habitual, com a intenção de ficar com seus amigos. Então o que diabos estava acontecendo?
Filhos da puta! Bando de cuzões, baixos-
O ataque surpresa veio do nada. Ele de alguma forma aparou o primeiro golpe, e depois disso saiu correndo, correndo como um louco, tentando se livrar de seus perseguidores. Agora, ele não tinha a menor ideia de onde estava.
Merda!
Seu coração batia como um tambor e o suor escorria dele. Tudo o que escapou da armadilha de ferro que era sua boca foram os gritos abafados de raiva.
Merda! Merda! Merda!
Xingar era a única coisa que ele podia fazer em seu estado de espírito atual. Kirie enxugou o suor que escorria pela testa. Foi então, enquanto ele examinava seus arredores, que um ponto de chama vermelho inesperadamente surgiu na escuridão.
Ele abaixou a cabeça instintivamente, assustado. Ao fazê-lo, lançou um olhar rápido para a parede e observou vagamente alguém sentado nos escombros do prédio destruído à frente. O beco corroído estava pintado nas sombras da noite, iluminado apenas pela precária luz azul das duas luas que giravam no alto.
O ponto de luz vermelho provavelmente era de um cigarro aceso. O que diabos aquele cara estava pensando, fumando em um lugar assim? Ao levantar as sobrancelhas para a pergunta, o som de passos que se aproximavam ecoaram pelo beco.
— Ele está aí?
— Não. Parece que ele fugiu de repente.
— Eu disse a você que não deveríamos ter enrolado daquele jeito. Deveríamos ter ido direto pra ele.
— Que merda você está falando? Aquele pequeno bastardo que foi muito rápido.
As vozes agudas mostravam que eram garotos jovens o suficiente para que suas vozes ainda não tivessem sequer mudado. As figuras sombrias continuaram irritadas.
— O que vamos fazer agora? Ele nos viu.
A atmosfera que os rodeava estava densa de medo e ódio.
Kirie estava em menor número. Se ele fosse descoberto ali, teria uma chance em dez de sair sem danos consideráveis da briga. Ciente da realidade ao seu redor, ele afundou ainda mais na escuridão, só agora conseguindo recuperar o fôlego.
— Grande coisa. Nós o assustamos ao ponto de fazê-lo fugir. Isso deve ser bom o suficiente, não? Não vamos hesitar da próxima vez. Nós vamos dar uma surra nele.
Kirie cerrou os punhos e cerrou os dentes ao som dessas declarações ousadas. O próprio Kirie era um garoto que morava na colônia a apenas 3 anos, mas os boatos na rua diziam que os membros da gangue Jeeks eram todos adolescentes com menos de quinze anos de idade. Em outras palavras, eles eram crianças destemidas apenas começando a se acostumar com as diferenças entre a vida no orfanato e a vida nas favelas.
Pelas mesmas razões, Bison em seu auge tinha sido ainda mais precoce e extrema do que a Jeeks. Aos treze anos, gostando ou não, os garotos da Bison saíram do Guardian. Deixados por conta própria, eles não tinham escolha a não ser se juntarem, e rápido.
Foi só por essa razão que os membros sobreviventes da gangue se tornaram para Jeeks uma dor de cabeça constante. Eles nunca desperdiçaram a oportunidade de insultar a Bison, que vivia como uma pálida imitação de seu antigo eu, porque enquanto Bison existisse, tudo o que Jeeks fazia seria comparado a essa “imagem esculpida” que os mestiços idolatravam.
O fato de Riki não ser um ídolo caído só piorava as coisas. Crescer em uma sequência ininterrupta de vitórias fez dele um fantasma com referências e um currículo.
Mas, independentemente do que tinha sido então, apenas andar com a Bison esses dias significava uma facada nas costas em um beco escuro, e Kirie estava ficando cansado de como as coisas estavam. Independentemente disso, ele sabia que dar desculpas esfarrapadas ante ao problema que havia se metido não ia adiantar de nada.
Os garotos que andavam com os Jeeks não iriam ficar tranquilos até que arrancassem qualquer pessoa associada a Bison pela raiz.
Um dos garotos do Jeeks de cabeça quente finalmente notou o cara com o cigarro aceso em cima da pilha de tijolos.
— Ei, filho da puta! O que você está fazendo aí?
A insolência e a arrogância na pergunta foram a maneira do garoto extravasar a raiva por deixar sua presa anterior escapar. Mas a resposta não foi o que ele esperava.
— Este não é um lugar para crianças ficarem vadiando a essa hora da noite. Então, vá pra casa.
O cara respondeu inesperadamente em um tom de voz autoritário, e por baixo de seu tom esportivo havia uma ameaça que devia ter soado ainda mais nítida para aqueles garotos imprudentes. Kirie se viu rosnando baixinho. “Esse cara é algum tipo de idiota.”
Ele sabia que as crianças na frente dele andavam com os Jeeks. Se esse cara estava querendo brigar com eles, então ele deveria ter culhões do tamanho de âncoras de barco. Se não, ele era o maior idiota do planeta.
— Se você soubesse com quem está falando, velhote, pensaria duas vezes antes de abrir essa sua boca grande. — O garoto continuou tentando salvar sua honra machucada como membro da gangue Jeeks. — Mas se não, então ficaremos felizes em ensiná-lo. Tente não se molhar. — Obviamente sentindo que tinha sido insultado, o garoto ia devolver o dobro do que recebeu. — É tarde demais para ir chorar para a mamãe.
Agora eles estavam determinados a terminarem o que haviam começado. Procurando extravasar, o cara deve ter parecido o alvo perfeito.
— Sim, isso mesmo. Você está falando com a gangue Jeeks.
— Jeeks? — o cara respondeu com uma falta de interesse que beirava a decepção. — Desculpe, não conheço. É quem troca suas fraldas todas as noites, então?
Mesmo sem o sarcasmo, sua maneira de falar sugeria que isso não era uma piada de mau gosto, e Kirie não pôde deixar de ficar boquiaberto com ele. Ele devia ter algum problema na cabeça, pensou, as palavras quase saindo em um suspiro de descrença. “Você não conhece? Você não conhece a gangue Jeeks? Quão estúpido você é?”
— Está tudo bem. Se ele não sabe, então vamos mostrá-lo.
— Vamos ensinar uma lição para esse fodido.
O cara falou novamente.
— Vocês acham que conhecem as favelas. Isso é diferente. — Ele estava levando as coisas em seu próprio ritmo, até o fim.
— Cai dentro, velhote. Vamos calar essa sua boca e abrir uma nova.
— Certo, certo. Vamos brincar, então. Estão desperdiçando tempo. — O homem desceu da pilha de escombros.
Uma faca de laser rasgou a escuridão. Em vez de cambalear para trás em pânico, ele agilmente deu um passo para o lado, agarrou o braço do garoto e deu um golpe sólido em retorno. Então, pegando o garoto desequilibrado, ele impiedosamente deu um chute circular contra seu corpo.
Uma sombra estranha caiu ao redor deles. Sem chance. Puro espanto. De jeito nenhum! Eles deviam estar delirando.
Não era simplesmente uma diferença nas constituições físicas. Esse tipo de defesa e ataque precisos pegou todos de surpresa. Eles cambalearam para trás e ficaram boquiabertos. A maneira “Jeeks” de fazer as coisas era encontrar e encurralar suas presas, atacar onde era mais fraca. Eles não se envergonhavam disso. Eles compensavam suas deficiências físicas com números e a dor transmitida, de modo que aquele que implorava por misericórdia, choramingando como um bebê, rastejando para longe em uma confusão deformada, era sempre a presa.
Mas aquele plano de jogo bem praticado foi facilmente revertido por um único cara…
Envolto na escuridão, Kirie murmurou para si mesmo. “Puta merda.”
“Olho por olho”, essa é a lei das favelas. O cara despreocupadamente entrou na luz do poste sujo, como se estivesse saindo das asas da escuridão e entrando no palco.
— Tanto faz pra mim. Se vocês planejam fugir, agora é a hora. — Ele curvou levemente os cantos da boca. — Caso contrário, que tal fazermos isso até que estejamos cuspindo sangue? — perguntou, rindo com alegria.
Noite de sexta-feira.
Um arco-íris lunar incomum formou um arco no céu da noite profunda e silenciosa. Em uma sala no prédio em ruínas que eles usavam como esconderijo e quartel-general, os agora lendários membros da Bison passavam as longas e tediosas horas.
Um dia, esses malandros haviam feito nomes para si mesmos, correndo soltos nas favelas, virando o lugar de cabeça para baixo. Mas, por enquanto, eles estavam aposentados, não mostrando mais garras e dentes a cada provocação. Ou pelo menos era assim que os casuais espectadores agora os viam.
A taxa de emprego era miserável para os garotos que passavam dia e noite perseguindo rivalidades de gangues, deixando as favelas cronicamente sem mão de obra. Deixando de lado a qualidade real dos empregos, colocar comida na mesa como “pessoas comuns” não era um problema.
É verdade que, como moradores de favelas, eles não tinham ideia do que as “pessoas comuns” esperavam em termos de padrões de vida.
Mesmo sem sonhos ou desejos, trabalhando sob o peso da impotência e da estagnação, os seres humanos tinham que comer. A fome constitui o fundamento da hierarquia das necessidades do homem. Ninguém nas favelas desejava refeições servidas e jantares chiques, mas também ninguém desejava morrer de fome como um cachorro.
A comida não era distribuída igualmente, mas sim de acordo com o trabalho árduo, e era apenas quando chegavam aos vinte e tantos anos, quando o alto astral da juventude se tornava obsoleto, que eles enfrentavam essa dolorosa realidade. Embora esse acerto de contas, sem dúvida, tenha chegado a eles mais rápido do que esperavam.
Passando uma garrafa de Tripper, uma cerveja preta forte e alucinante, Kirie fez uma pausa e falou, como se de repente lhe ocorresse o pensamento:
— Você ouviu? Tem um mercado abrindo em Mistral.
— Um mercado? — Sid perguntou, surpresa evidente em seus olhos. — Um leilão de animais de estimação, você quer dizer? — Kirie assentiu brevemente.
— Estão dizendo que desta vez são os animais de estimação fabricados pela Academia. Eles estão saltando de entusiasmo, até os homens ricos Kahn e Regina. Há rumores de que os preços dos lances serão dez vezes maiores do que o normal.
Onde no mundo ele tinha ouvido isso? Todos eles se consideravam bastardos da rua, mas Kirie era sempre o primeiro a saber das coisas.
— Sangues puros com pedigree, hein? — Guy disse a si mesmo.
— Não tem nada a ver com a gente. — Luke retrucou.
— Não querendo nos comparar com aqueles bichos de estimação fabricados pela Academia ou algo parecido, mas se tivéssemos tempo e dinheiro, mais um pouco de polimento, e nós também não nos sairíamos tão mal. Exceto, é claro, um pequeno problema de atitude. Não é, Riki?
Kirie virou seus olhos cinza e azuis incompatíveis em Riki e riu. Como que para expressar sua falta de interesse no assunto, Riki tomou um gole de cerveja. Essa demonstração aberta de atitude fez Kirie franzir as sobrancelhas. Afinal, ser ignorado na frente de todos era mais irritante do que ser discordado.
Mesmo quando Bison o havia jogado de lado como um estranho precoce, eles nunca o insultaram do jeito que Riki fez. O comportamento de Riki em relação a ele parecia um tapa na cara.
Filho de uma-
Rangendo os dentes de trás, Kirie se lembrou da noite em que Guy inesperadamente levara Riki para seu ponto de encontro habitual. Todos ficaram surpresos demais para dizer qualquer coisa por um ou dois segundos, e então, no momento seguinte, todos estavam repetindo seu nome em vozes calorosas e estranhamente elevadas.
Riki-!
Riki?
Eles disseram Riki? Sério?
Kirie o conhecia. Diante de seus olhos estavam os cabelos e olhos negros que sugeriam a qualidade real fabricada pela Academia. Este era o homem que uma vez foi chamado de “Carisma” das favelas.
Kirie ainda podia se lembrar da sensação inexprimível, quase inebriante que o dominou, e tudo por causa daquela noite três dias atrás. Tinha sido queimado em suas retinas, fosse por puro acaso ou destino inevitável: o homem que liderou a Bison era aquele que enfrentou as crianças que se diziam dos Jeeks — os mesmos Jeeks que se diziam ser os exterminadores da Bison — e posteriormente chutou seus traseiros.
“Irônico”, ele teria que dizer. Não, uma dádiva de Deus. Ver essa lenda viva pela segunda vez, essa lenda que ele nunca acreditou que encontraria novamente, emocionou Kirie no âmago de seu ser de uma maneira diferente dos outros membros da Bison.
Mas ele não deu muita importância ao que aconteceu naquela noite na frente de todos. Então, por que Riki era frio apenas com ele? Era porque, entre os membros da gangue, Kirie era o único rosto que Riki não conhecia? Talvez a lenda não se sentisse à vontade para iniciar uma conversa familiar em seu primeiro encontro.
Mas mesmo depois de levar esses fatores em consideração, Kirie não se acalmou. Como resultado, ele se esforçou e se retirou da conversa também. Ele não entendia, no entanto. Talvez Riki não gostasse dele; ele tinha essa sensação desde a primeira vez que se conheceram. Ou talvez alguém tivesse sussurrado algo em seu ouvido. Ninguém tinha dito nada na cara dele.
A severidade do olhar que Riki lançou para ele tinha uma frieza que não podia deixar outra impressão se não essa. Um comentário sarcástico ou mordaz teria sido mais bem-vindo, porque nesse caso, seria possível rebater. Mas Riki não lhe dava qualquer abertura.
Longe disso. Kirie estava sendo completamente esnobado, um fato que ele achava completamente deprimente. Ele estreitou os olhos com raiva. Aparentemente alheio a tudo isso, Riki não fez nenhuma tentativa de abaixar o olhar enquanto olhava para longe. Kirie fez uma careta enquanto considerava uma resposta cortante, ainda mais irritado.
Nesse momento, como se esperasse exatamente o momento certo, Guy falou baixinho.
— O que há com você, Kirie? Você quer seu próprio colar personalizado?
Kirie estalou levemente a língua com a oportunidade perdida. Ele respirou fundo para recuperar os sentidos e respondeu com uma risada forçada.
— Sim, claro. Acrescente um dono que possa me manter abastecido com esta cerveja forte de Dublin e eu lamberei as solas dos pés dele.
Esse comentário puxou Riki de volta ao presente. Sua expressão indiferente de repente ficou tão fria que Kirie inconscientemente cerrou os punhos mesmo quando se encolheu. Por razões que ele não conseguia entender, o olhar de aço de Riki fez seu sangue gelar. Sentindo todo o peso do irritação de Riki, suas frustrações reprimidas estavam prestes a explodir em chamas.
O que há com esse filho da puta!
Kirie estava preso por aquele olhar gelado e silencioso, e ele simplesmente não conseguia encontrar sua voz apesar de sua sufocante sensação de indignação. Tudo o que restava era o desprezo pessoal por sua própria falta de jeito, e isso estava queimando um buraco na boca do estômago.
Nesse ponto, sentado à sua direita, Luke falou com o sussurro de um sorriso vincando seus lábios.
— Ei, acorde, seu bastardo idiota. Você não está pensando seriamente em se tornar um animal de estimação mestiço da favela, está?
Ninguém riu. Porque era a verdade honesta de Deus, não algo que as pessoas brincavam ou faziam comentários sarcásticos. Em um esforço óbvio para dissipar a atmosfera desagradável, Norris interrompeu em um tom de voz acanhado.
— Para o inferno com isso. O que há com os Jeeks e aqueles pequenos idiotas deles?
— Sim, sim. Eu não tenho ideia do porquê, mas ultimamente eles estão importunando.
— Mas eu ouvi que no outro dia eles encontraram um cara que deu uma surra neles. — Chamando isso de boato, Kirie relatou a informação casualmente enquanto dava uma olhada em Riki.
Riki não reagiu nem um pouco.
— Bem, isso seria uma dádiva de Deus. De qualquer forma, devemos aproveitar a oportunidade para chutar algumas cabeças. Para começar, isso resolveria as coisas por aqui.
Sem nenhuma indicação de que estava ouvindo ou não, Riki baixou os olhos e esvaziou o resto da cerveja da garrafa. O álcool tocou sua boca com uma amargura particular que esfaqueou sua língua, mas desta vez a sensação áspera lhe atingiu de uma maneira diferente do habitual. Desta vez foi cruel e pesado e escuro, de uma forma que era difícil de descrever.
Deve ser apenas minha imaginação.
Riki engoliu lentamente a cerveja enquanto revirava o pensamento em sua mente. Quando se tratava de aquecer o peito, era melhor ficar um pouco mais chapado, mas aquela cerveja era o melhor que ele podia esperar ali.
Entre os ataques de guerra de gangues, ele recuou e colocou uma certa distância entre ele e os garotos de olhos arregalados que rondavam o Distrito do Prazer em busca de emoções e lucros. Mas isso não significava que ele havia abandonado “a causa” e passou a ganhar o pão de cada dia com o suor do rosto.
Todos os anos, mais sangues jovens se derramavam na Área 9, mas as favelas, correndo como artérias pelo coração de Ceres, já haviam endurecido, e nenhum deles possuía força de vontade para rasgar o peito e drenar a infecção de seus órgãos vitais.
Sem um sugar daddy generoso, não havia ninguém para tirar dinheiro. Esses caras, que mal conseguiam extrair qualquer tipo de prazer de sua própria juventude, descobriram que a cerveja luxuosa e alucinante não passava de um sonho.
Um sonho. Até mesmo a cerveja preta que estavam bebendo. Três dias antes, Luke havia encontrado um estoque de produtos com suposta “boa qualidade” em algum lugar, mas isso não significava que ele havia provado a mercadoria primeiro para verificar seu verdadeiro valor. O licor adulterado foi fabricado com um estimulante não autorizado.
Se precipitar e ir com tudo ao invés de se embriagar lentamente era um negócio arriscado. Se a sorte de um sujeito estava contra ele, com certeza ele iria experimentar mais do que uma mera “brisa ruim”. Depois de muito se debater e se contorcer de dor, o resultado era a morte por asfixia.
Isso explicava a má reputação da cerveja preta entre os narcóticos à base de alcalóides e, sem dúvida, era a razão pela qual os piores eram perfeitos para as favelas.
Ainda assim, uma vez que um sujeito ficava completamente bêbado, era uma viagem sem nada para lhe prender, mas ainda sem saída. Ele se sentava — cheio de euforia, seus lábios formando a mera forma de palavras, a respiração escapando de seus lábios tensos soando como pedra esmagada sob os pés.
O álcool carregava os fardos de crianças de favelas que não tinham outros meios de desabafar suas frustrações. Mesmo falando em nome da verdade, suas almas permaneciam insaciáveis. E sempre havia o problema de ser levianamente deixado de lado, de ser resumido a simples frase: “É assim que a porra do mundo é.”
O álcool os libertava, ainda que temporariamente, daquela existência. Ninguém havia lhes ensinado que não se deve usar produtos farmacêuticos não autorizados só porque “podiam ser perigosos”.
Esgotada a conversa, os silêncios vazios que se seguiram lentamente começaram a represar os espaços entre eles.
Naquele momento, alguma faísca de repente despertou Luke e ele voltou seus olhos vidrados para Riki.
— O que há com você, cara? Sentado aí, com a cara de merda. Quero dizer, você parece patético.
Algo parecia estar à espreita no olhar turvo de Luke enquanto seus olhos rastejavam sobre o corpo de Riki como a língua de um gato lambendo seu pelo.
— Não me diga que você se tornou um velhote que conta as mesmas velhas histórias de guerra o dia todo.
Sempre foi assim. Havia uma aspereza na voz e um olhar nos olhos que era suficiente para queimar seu cabelo. Riki não lhe deu atenção.
Os batimentos cardíacos lentamente mediram o tempo, a virilidade gradualmente retornando à medida que a força finalmente fluía de volta para os membros com um ritmo estranho e ondulante. Sentando-se no sofá de maneira relaxada, Riki esticou os braços e as pernas e respirou fundo.
Ele fechou os olhos. Não podia ver nada, ouvir nada. Ele sentiu apenas os leves movimentos de algo semelhante ao sono. Seu corpo e alma ficaram encantados com as sensações hipnotizantes, e ainda mais alegremente seduzidos a cada respiração.
A escuridão atrás de seus olhos se agitou. Quando um caleidoscópio colirido saltou em sua visão, Riki perdeu todo o interesse em tudo, exceto na agradável dormência que o enchia.
E então Guy, olhando por cima do ombro para Riki, pareceu ver no leve sorriso que atravessava seu rosto um vislumbre daqueles três anos perdidos, e baixou o olhar.
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