Ai No Kusabi - The Space Between - Capítulo 15
A cidade metálica de Tanagura.
A escuridão cobria a cidade; a fantástica, grotesca cidade que nunca dormia. A metrópole monstruosa do outrora empobrecido sistema estelar de Amöy agora intimidava até mesmo a Comunidade. Era uma cidade que não conhecia a diferença entre dia e noite, que não dava um respiro que não fosse cronometrado ao milésimo de segundo. Não permitia nada imprevisível em seus limites, como se o abuso do tempo em si fosse reservado como o mais doce dos prazeres.
Tanagura era exquisita. Enorme em escala e ainda assim governada com um funcional esteticismo livre de excessos, sua aparência por si só irradiava um poder avassalador.
No entanto, reinando em seu próprio direito estava Midas, em guerra com Tanagura no extremo oposto da “beleza”. Entre os dois havia um abismo intransponível.
***
Os arredores de Tanagura. Área 3 de Midas. Mistral Park. Doze e meia da noite.
Kirie aguardava dentro de uma suíte de hóspedes de alta classe, empoleirada acima do aglomerado de prédios. Fora da janela, os faróis e lanternas traseiras dos carros aéreos lançavam seus feixes através da escuridão sombria.
— Então, isso é Tanagura. — murmurou Kirie. — Esse lugar é enorme pra caralho. — Ele estava impressionado. A extensão interminável da noite se abria diante de seus olhos. — Faz toda aquele néon de Midas parecer coisa de criança. Acho que não importa o quão alto você suba, sempre tem alguém mais alto.
Em um lugar e tempo diferentes, outro vira-lata da favela havia expressado exatamente o mesmo sentimento. Kirie não podia dizer se isso constituía um bom ou mau presságio.
Ele estava em um grande quarto cercado por paredes de marfim e espessos tapetes. O branco realçava o tom azul escuro dos móveis e conferia um sentido de luxo ao espaço. Cada centímetro do recinto estava impregnado com uma aura limpa e antisséptica, e um silêncio agradável preenchia o ambiente.
Ainda havia algum tempo até o compromisso deles… mas Kirie tinha chegado cedo antecipando uma visita do homem. Embora Kirie desejasse um contato mais frequente, não havia como. As chamadas eram breves e unilaterais. Tudo o que Kirie tinha para se agarrar eram esses poucos fios que poderiam ser cortados a qualquer momento.
Vir até aqui para receber o tão aguardado comunicado deixou Kirie com uma sensação arejada de exaltação. Um sentimento de conquista brotou dentro dele. E ainda assim…
À medida que o tempo passava, Kirie inevitavelmente percebia o quão insignificante era sua própria existência. Como se para repentinamente desviar o olhar dessa realidade, ele soltou um pequeno suspiro. Acostumado apenas com as ruas sujas e sombrias da colônia de Ceres, cada imagem refletida em seus olhos se tornava outra sedução.
Este era o lugar ao qual ele pertencia. Kirie estava muito consciente disso. Mas quando dirigiu sua atenção para a janela oposta, encontrou o rosto cintilante de uma noite pouco familiar. Iluminações alegres tingiam a escuridão, e os Bairros do Prazer se exibiam sem vergonha como de costume. O brilho bem-acostumado de Midas permanecia uma visão excepcional, sua luminosidade cintilante permanecendo com ele, por algum motivo.
Que se foda essa merda, preciso de uma boa cerveja preta.
Kirie estreitou os olhos sonhadoramente. Esta era a terceira vez que ele ficava diante das janelas deste arranha-céu, olhando para as luzes de Midas. O local designado para a reunião era diferente das vezes anteriores, mas a floresta de néon cintilante abaixo dele continuava a deslumbrar e enfeitiçar.
A primeira vez que ele viu os redemoinhos de luz nunca visíveis de Ceres, Kirie ficou sem palavras diante do espetáculo avassalador a sua frente. Ele nunca tinha entrado em contato com uma beleza tão magnífica. Isso fez seu coração acelerar e arder em seu peito. Seu primeiro verdadeiro choque cultural o deixou sem fôlego; ele ainda se lembrava da tremenda excitação que o fez estremecer.
Mas na segunda vez, as belas vistas cativantes de Midas alcançando a distância só o irritavam. Ele podia ver as vastas diferenças que separavam sua terra natal, Ceres, de Midas, e essa disparidade o enchia de raiva.
“Por que apenas nós?”, ele se perguntou. “Por que somos condenados a vidas sem valor como escórias miseráveis?” Ele não conseguia afastar os pensamentos de sua mente. Mas, mesmo assim, suas convicções vacilavam suspeitosamente.
Nunca antes ele desejara tanto sair das favelas. Havia raios de luz que ofereciam o atrativo de um mundo diferente, um mundo à parte da vida sufocante que ele conhecia. O complexo de inferioridade que vinha de ser um mestiço da favela nunca seria apagado — mas o peito de Kirie ardia com o desejo doloroso de pelo menos tentar. Em breve, ele subiria no mundo! Ferozmente, incansavelmente, esse desejo penetrava na mente de Kirie.
Uma voz chamou, pegando-o desprevenido. “Obrigado por esperar.”
Kirie, absorto em devaneios, congelou no lugar. A voz baixa e tranquila o trouxe de volta à realidade em tons ressonantes que de alguma forma o tranquilizaram. Enquanto seu coração se acalmava, Kirie virou lentamente o olhar na direção da voz.
Ali, diante dele, estava um semblante gracioso, composto e atraente que parecia atraí-lo mais e mais. O traje belo e chamativo, diferente de seus encontros anteriores, fez o coração de Kirie palpitar novamente. Ali estava uma elite de Tanagura. Ali estava Iason Mink.
— De nada. — Kirie abaixou a cabeça mesmo sem ser necessário. Era como se a dignidade e a autoridade de Iason não deixassem outra opção para ele. Diante de seus olhos estava o tipo de nobreza que, em circunstâncias normais, nunca reconheceria sua existência.
— Alguma novidade desde a última vez? — Iason caminhou elegantemente até o sofá e afundou nele.
— Ah, não…
As primeiras palavras de Kirie saíram anormalmente roucas. Controle-se! Ele estalou a língua e se repreendeu, lambendo os lábios ressecados.
— Muita especulação absurda, muita confusão. Falam sobre algo suspeito acontecendo…
Iason sorriu inesperadamente. Era um sorriso tênue, usando apenas os cantos da boca. Isso adicionava algo mais ao terrível fascínio de seu rosto lindamente malicioso. Impressionado pela força de tal charme físico insondável, Kirie engoliu em seco.
— Entendo. Não deveria ter esperado que fosse fácil.
— Claro que não. Eu tenho que ser cuidadoso.
Iason não repreendeu Kirie por falar tão francamente fora de hora; isso levou Kirie a imaginar que ele tinha privilégios especiais com o Loiro. Ele permitiu que suas expectativas subissem um pouco mais, mas manteve seu ego sob controle. Não ia deixar sua oportunidade escapar.
— Não, eu acho que ele não teria sido conquistado tão facilmente. Acho que ele não perdeu todos os seus instintos básicos.
Ele havia sido o segundo no comando da gangue mais forte da favela, mas isso era passado. Com essa fofoca nas ruas, o medo certamente tomaria conta da cidade antes que as coisas saíssem do controle. Kirie não duvidava disso nem um pouco.
Havia um homem entre os membros originais da Bison que ele não havia conquistado, porém. Esse homem continuava agindo como se não se importasse, e Kirie estava alheio ao ressentimento que ele nutria em troca.
— Não tenho reclamações até agora. Mas qual é a realidade da situação?
— Não ficará assim por muito tempo. — Kirie falou com convicção. — Todo mundo quer sair das favelas, só não têm coragem de dar o primeiro passo. — E assim, ninguém nas favelas era estúpido o suficiente para jogar fora um bilhete para o paraíso. — Um pouco mais de tempo e eu fecho o negócio. O único problema é ele.
— Ele? — questionou Iason, com um lampejo repentino de interesse. Kirie estalou a língua em um gesto de exasperação.
— O garoto de cabelos pretos que costumava andar com o Guy. Sempre dando dicas e plantando ideias sorrateiramente. Ele tinha uma birra comigo porque eu não pendurava em cada palavra dele.
— Quer dizer que vocês não eram amigos de verdade? — disse Iason com um toque de riso na voz. Isso sugeria que um fino fio de sangue quente ainda corria em suas veias, apesar de suas características friamente belas.
Os olhos de Kirie se alargaram brevemente em surpresa.
— Não é engraçado. Isso foi antes, mas o boato é que os dois estavam juntos.
— Juntos? — O tom da voz de Iason mudou abruptamente.
Merda, não devia ter deixado isso escapar.
— De qualquer forma, — Kirie acrescentou um pouco rápido demais, — Já é passado.
— Mas eles eram um casal, você diz? Um parceiro como aquele…?
— Não é nada incomum nas favelas. Dificilmente se encontra uma mulher por lá, sabe.
— Sim, uma a cada nove crianças, não?
— Sim. As mulheres só dão à luz homens aqui. É por isso que os haréns de Midas lhes dão tratamento especial. As favelas fedem a caras excitados que nunca estarão com alguém melhor do que uma bruxa velha.
— Como uma mulher é um bem raro, acho que os homens aceitariam qualquer coisa que pudessem conseguir, mesmo que fosse velha e bem usada.
— Mas, se você for fazer isso com uma mulher, é melhor que ela seja jovem e apertada.
Kirie soltou a frase com um ar cansado do mundo. O fato era que ele nem sequer tinha visto uma velha acabada. Nas favelas, a chance de se conectar com a raridade que era o sexo feminino vinha possivelmente uma vez na vida. Kirie conhecia apenas as histórias incoerentes balbuciadas por bêbados em bares.
Mas Kirie ainda tinha um ou dois pontos de sabedoria que desejava compartilhar, mesmo que esse conhecimento não significasse nada no mundo real. Se nada mais, ele queria deixar Iason com a impressão de que era mais do que uma criança estúpida.
— Todo mundo sabe que há escassez de mulheres. — acrescentou Kirie. — Eles deveriam estar usando inseminação artificial. Homens e mulheres nascem em Midas usando úteros artificiais, certo? O parto natural é a porra de uma relíquia.
— Ceres é conhecida por seus princípios inflexíveis. Dar o primeiro passo para longe de uma tradição profundamente enraizada requer uma energia enorme e causa grande sofrimento.
— É, bem, Ceres pode sufocar em seus princípios. Não temos dinheiro, não temos sonhos. Além disso, não há uma bucetinha jovem à vista. Basicamente, não temos motivo para viver. O que vocês de sangue azul sabem sobre o sofrimento?
A única resposta de Iason foi um sorriso incrivelmente sutil que lhe enrugou uma bochecha.
— Mesmo que você faça uma mudança de sexo e se transforme em uma gata gostosa, — Kirie continuou, — isso ainda não significa que você conseguiu. No final, todo mundo acaba com quem está mais perto e disponível.
— Suponho que aceitam o que vier nas favelas. E quanto a você?
— Eu não me vendo barato. Tenho meus princípios. — Enquanto falava, Kirie lançou um olhar para Iason com os olhos virados para cima, como se estivesse pedindo. Você quer tentar me domar?
Mas, como antes, Iason apenas olhou de volta e não insinuou nada com seu olhar.
Kirie baixou os olhos, sua expressão auto-depreciativa enquanto corava levemente. Quando se tratava de Iason, por que era sobre Guy que ele queria saber? Por que não era sobre Kirie? Era constrangedor. Kirie era mais bonito e mais jovem do que Guy.
Então, por quê?
Mas Guy tinha algo que Kirie não tinha — um passado na Bison com Riki. Kirie sabia que estava buscando algo que sempre estaria fora de seu alcance, e isso o fazia sentir-se deslocado. Deixava um gosto amargo em sua boca.
— Sabe… — disse Kirie — você não é muito normal. Você mesmo disse que os vagabundos das favelas não passam de delinquentes inúteis com os parafusos soltos. Você não pode dizer muita coisa boa sobre nós. Para elites como você, qualquer coisa que não seja um animal de estimação criado na Academia não vale a pena, certo?
Kirie usou deliberadamente a linguagem das favelas. Posar a essa altura não enganaria Iason, então ele falou com orgulho; ele preferia mostrar sua herança mestiça a fingir ser algo que não era só para lamber o rabo de alguém.
Essa pureza simplista era a virtude redentora de Kirie.
— Acho que é tudo uma questão de gosto. — disse Iason com um pequeno sorriso, desviando das perguntas que Kirie lhe fazia.
Por que um Loiro estaria interessado em um vira-lata da favela? Era natural que Kirie estivesse morrendo de vontade de saber. Mas hesitou em insistir no assunto. Se ele fizesse muitas perguntas ou se recusasse a aceitar um não como resposta, ele poderia acabar vendo o lado ruim de Iason. O medo segurou sua língua.
Para Kirie, encontrar Iason naquele dia no Mistral Park em meio à multidão fervilhante era sua oportunidade única na vida. Ele sabia que suas chances eram pequenas, mas tinha tido um encontro com um Loiro, e isso havia aberto um novo mundo para ele — para o bem ou para o mal. Kirie nunca tinha tido uma oportunidade assim antes. Simplesmente esperar que a vida começasse garantia que ela nunca começaria. Mas ele não tinha a menor ideia de para onde estava indo, e sua frustração crescia.
Ainda assim, o encontro com Iason havia dado a ele algo pelo qual viver, então Kirie se agarrou tenazmente aos frágeis e incertos laços que Iason lhe oferecia. Ele pedia pouco e observava cada passo do caminho. Afinal, um homem saindo das favelas não podia se dar ao luxo de correr grandes riscos. Mas, apesar das precauções de Kirie sobre até onde pressionar e quando, foi Iason quem deixou de lado seus preconceitos sobre os mestiços da favela e levou Kirie para o negócio.
Nas favelas, Kirie era um rato que vendia seus amigos para os bastardos dos androides e embolsava os lucros. Kirie não se importava se o xingavam — eles só estavam com inveja do dinheiro que ele estava ganhando, e latiam como cães choramingando. Não valia a pena pensar demais nisso.
“Não é o lutador mais forte que acaba no topo; é o mais inteligente. Apenas tolos e Zés ninguém reclamam da própria derrota.” Sid disse isso uma vez, e Kirie estava vivendo desde então.
A Bison se desfez quando estavam no topo. O que restou nem mesmo conseguia fazer mau aos malditos novatos dos Jeeks. Como os poderosos haviam caído.
Kirie não podia acreditar que já tinha admirado Riki quando ele era o líder da Bison — ele era um covarde que o enojava. Kirie não era mais o mesmo garoto que um dia havia recolhido os restos da Bison. Para provar isso a Riki e a todos os outros, ele expulsou os fracassados do esconderijo dos Jeeks com uma bomba de gás lacrimogêneo para ensiná-los uma ou duas coisas. Naquele momento, eles mal valiam seu tempo. Seu verdadeiro valor como homem ainda estava por se mostrar, mas pois ele sabia que tinha o que era preciso.
O que você acha disso, hein? Esse é o tipo de poder que tenho agora. Você não passa de lixo. Uma nova tradição começa comigo, e as coisas serão diferentes.
Ele poderia realizar qualquer trabalho, não importa qual, se tivesse a chance. E ele já tinha tido tanta má sorte que as coisas só poderiam melhorar. Desde que mantivesse esses pensamentos em sua mente, sua confiança nunca diminuía.
Ele não era arrogante o suficiente para acreditar que desfrutava da plena confiança de Iason. Mas o Loiro não parecia desprezá-lo. Por enquanto, Kirie disse a si mesmo que isso era o suficiente. Ele entendia a única condição que regia a conexão entre eles:
Não pergunte nada, não conte nada.
Depois disso, Kirie se levantou e saiu. Iason só conseguiu encontrar dez minutos em sua agenda lotada, mas Kirie contou aquele tempo sozinho com o Loiro como uma sólida vitória.
Iason observou a figura de Kirie se retirando até que ele desapareceu. Ele riu para si mesmo. O garoto estava blefando o melhor que podia. Embora viessem das mesmas favelas, a diferença de caráter era notável.
Entregar recados é a única coisa para a qual este aí serve. O sorriso cruel e frio refletia sua dúvida em voltar a ver Kirie. Mas… essas coisas eram sempre difíceis de dizer.
Seus pensamentos foram interrompidos pelo som da voz de Raoul.
— Cheguei cedo? — perguntou Raoul. Embora tentasse disfarçar com um tom de voz brusco, o sorriso em seus olhos revelava sua profunda curiosidade. Ele deve ter passado por Kirie no caminho.
Um sorriso irônico apareceu nos lábios de Iason.
— Não exatamente. Certamente nada com o que você precise se preocupar.
— É mesmo? Porque acho que senti o cheiro de pessoas tramando algo ruim às escondidas.
— Você está imaginando coisas.
— Pensei que você não tivesse tempo para perder com mestiços da favela hoje em dia.
A borda serrilhada de sarcasmo na declaração de Raoul não perturbou o comportamento de Iason.
— Por que você não tenta brincar com um, Raoul? Talvez você goste.
— Diferentemente de você, — disse Raoul casualmente enquanto se sentava no sofá — Vasculhar lixeiras não combina com meu paladar. Um animal de estimação de Midas cuidadosamente cuidado tem mais a oferecer do que domar algum vira-lata selvagem. Eu prefiro analisar vírus com um microscópio eletrônico antiquado.
Raoul Hamm era um dos especialistas em biotecnologia de Tanagura. Os burocratas obstinados da Comunidade — e especialmente aqueles que se autodenominavam “religiosos” — o chamavam de cientista louco que não temia nem mesmo a Deus.
Segundo Raoul, os mistérios da vida já não eram mais da competência de Deus. Ele preferia aquilo que pudesse ser cientificamente comprovado. Se ele realmente era um cientista louco, então pelo menos não era tão ruim quanto aqueles que conduziam seus semelhantes ao erro em nome de Deus. Embora Raoul não fosse alguém que escolhesse brigas de forma imprudente, esta era importante e precisava ser completamente respondida.
— Mas não precisa interpretar isso como algo mais do que a expressão de meus medos desnecessários. Interromper sua agenda lotada para marcar encontros com vira-latas me faz pensar que você está adquirindo maus hábitos novamente. Por que você insiste em fazer o que é proibido? Você gosta disso? — A voz de Raoul estava carregada de compreensão implícita.
— Não é nada parecido com a primeira vez.
— Mas você desenvolveu um gosto por isso agora?
— O que é isso? — Iason contra-argumentou suavemente. — Por que todo esse interesse de repente? — Raoul deu de ombros.
— Estou sabendo de um boato estranho sobre um homem nas favelas que se parece com ele.
— É lógico que sim. É ele mesmo. No entanto, essa é uma notícia muito antiga. Já faz quase um ano que ouvi isso pela primeira vez. — O sorriso desapareceu do rosto de Raoul.
[Nt let: Iason é o sarcasmo em pessoa 😂 inimigo das regras]
— Isso não é engraçado, Iason. Os animais de estimação devem ser descartados e vendidos em Midas. Você não pode ignorar esses regulamentos.
— Você nunca quebrou as regras? Tudo o que fiz foi tirar o anel dele. Ele só precisava de um pouco de liberdade.
— Remover o anel serve apenas para apagar seus registros do sistema. Não há exceções.
— Ele é um vira-lata de favela. Ele nem sequer tem um registro PAM de Midas. A Lei dos Animais de Estimação só diz respeito a animais de estimação criados por Midas. Qual é o problema de remover o anel da criatura e devolvê-la às favelas?
Enquanto Iason apresentava seu caso, Raoul não conseguia encontrar palavras para responder. Mais do que sua atitude de “não se preocupe com nada”, o que perturbou Raoul foi o fato de Iason ter distorcido a Lei dos Animais de Estimação para seus próprios fins.
— Sem nenhum controle externo e nenhuma impressão psicológica em jogo, peguei um mestiço da favela e passei três anos treinando-o. Três anos, Raoul! Depois de tudo isso, você realmente espera que eu o jogue fora?
— Então você realmente não eliminou os dados de registro de animal de estimação dele?
— Claro que não! Removi seu anel de estimação para dar a ele um pouco de espaço. Ele é um vira-lata teimoso e rebelde; mantê-lo algemado dia e noite só o sufocaria.
Raoul se inclinou para trás, emitindo um gemido rouco. Seu rosto ficou ainda mais feroz.
— Pensei que você tivesse aprendido sua lição depois do que aconteceu.
Os olhos de Iason se estreitaram ligeiramente quando ele se lembrou do escândalo do ano anterior. O chamado “incidente Daryl”. O móvel de Iason havia invadido a rede de segurança e permitido que Riki escapasse. A segurança da Eos foi invadida por um móvel. Só isso já foi um golpe sério que abalou a confiança da elite como um todo.
Mas, mesmo naquela época, Iason reagiu ao estado agitado das coisas em Eos com sua calma habitual. Embora aceitasse a responsabilidade por seu papel na questão, ele resolveu as coisas da forma mais lógica e impassível possível.
Raoul ainda conseguia se lembrar de todos os detalhes.
Naquele dia, Iason estava trabalhando na sala de segurança da Eos. As salvaguardas impostas lá eram tão rigorosas quanto em qualquer outro lugar em Tanagura. Ele acabara de terminar uma tarefa quando Raoul o convidou para um almoço particular e abordou o assunto:
— Aquela coisa sua ainda está se comportando mal.
Um sorriso puxou um lado do rosto de Iason.
— Que orelhas compridas você tem, Raoul. Você não estava no laboratório de Keeler até ontem?
— E voltei para encontrar Eos em alvoroço. Claro que eu percebi imediatamente. O que foi dessa vez? — Iason relatou em tom neutro:
— Ele passou por sua equipe de segurança e conseguiu sair de Eos.
Mas até Raoul — que há muito tempo havia considerado o comportamento de Riki como produto de treinamento ruim — ficou surpreso com o novo problema.
— Eu pensei que você o tivesse domado depois daquele incidente todo com a Mimea. Mas ele continua tão obstinado quanto sempre; afinal de contas esse tempo todo, ele ainda mantém sua reputação de vira-lata da favela.
— Você acabou de voltar e já está rindo de mim. Por que você fica tão incomodado sempre que o nome do Riki é mencionado?
— Eu não me importo com ele, Raoul cuspiu, franzindo a testa. — Mas não suporto ver aquele lixo fazer você parecer um idiota.
Nos últimos três anos, independentemente de qualquer comentário mal-humorado que Raoul pudesse fazer, a determinação de Iason não havia mudado nem um pouco.
— Foi só isso que você veio dizer?
— Presumo que ele foi preso?
— Naturalmente. Ele não poderia ter fugido de fato. O anel de animal de estimação garantiu isso.
E somente seu animal de estimação idiota faria tal proeza enquanto usava um anel tipo D com um GPS embutido. Esse comportamento tenazmente desviante colocou Riki muito além dos limites da compreensão de Raoul.
— No entanto, ele chegou até Prage. Todos ficaram bastante impressionados. — Iason soltou um suspiro dramático. Por alguma razão, ele parecia bastante satisfeito consigo mesmo. Para Raoul, isso era mais uma prova de mau gosto.
— Pare de sorrir, Iason. Seu animal de estimação rompeu a segurança de Eos e fugiu. Ninguém está rindo. Ele deve ser punido. — Raoul falou com um tom de voz particularmente desagradável, mas Iason não deu importância.
— Não diga coisas assim. — respondeu Iason. — Graças a ele, descobrimos uma brecha nos supostamente impecáveis protocolos de segurança de Eos. Pense no quão pior isso poderia ter sido. — Raoul soltou um longo suspiro.
— Você sai ileso de todos os desastres, Iason. Você sempre distorce os fatos para se adequar ao seu propósito.
Iason não mostrou nem mesmo a menor indicação da pressão que pesava sobre ele como guardião de Riki. Nessas horas, Raoul ficava impressionado com a habilidade de Iason em virar completamente o jogo com seus próprios argumentos.
—Eu apenas lido com as coisas conforme elas vêm. Se eu não conseguisse fazer isso, não estaria qualificado para gerenciar os mercados.
— Mas será que o temido Homem de Gelo consegue lidar com um animal de estimação indomável?
Raoul havia usado essa frase muitas vezes, e isso estava começando a desgastar Iason. Por que Raoul não podia agir como os outros Loiros e ficar de fora?
— Eu não quero mais debater sobre Riki com você. — disse Iason, injetando um ar adicional de frieza em sua voz, deixando claro sem palavras que certas coisas eram inegociáveis.
— Mas você pode realmente deixar isso passar desta vez? Isso não se trata apenas de um conflito entre um animal de estimação e a segurança. Hackear o sistema é um crime real.
— Não há como um simples animal de estimação acessar um terminal de segurança e fazer alguma coisa. E se um animal de estimação pudesse fazer algo assim, precisaríamos trabalhar e implementar medidas de segurança muito mais detalhadas.
— Esse seu animal de estimação tem mais astúcia e esperteza do que precisa.
De fato, quando se tratava de astúcia e artimanha, o QI de Riki estava fora dos padrões. Alguns atribuíram isso à sua educação no Guardian. Mas considerando que todos os mestiços eram expulsos daquele ambiente decadente e forçados a sobreviver aos treze anos, talvez suas habilidades não fossem tão impressionantes assim em comparação. Um alto QI não necessariamente resultava em uma mente afiada.
Sem dúvida, Riki tinha inteligência para comandar uma organização criminosa de primeira linha. Sua arrogância permanecia inalterada, mas a educação que Iason tinha proporcionado a ele tornava essas qualidades ainda mais evidentes.
Raoul queria acreditar que Iason tinha simplesmente trazido material bruto para Eos para provar que poderia lapidar uma pedra e transformá-la uma joia… mas talvez Iason estivesse apenas exibindo Riki com um sorriso zombeteiro e de desprezo. Aquela criatura tinha maldade nos olhos e um gosto horrível para roupas. Era impensável para qualquer outro animal de estimação de um Loiro. Desfilar com aquela criatura na coleira só deixava claro para todos as diferenças entre ela e os outros animais de estimação.
Acostumados à falta de inteligência da população de animais de estimação, isso pareceu uma completa perversidade para a elite. Os gritos de choque e surpresa explodiram novamente. Eles ficaram tão ofendidos com essa qualidade única do animal de estimação de Iason que o alvoroço inicial sobre as origens de Riki foi abafado.
Ainda assim, eles estavam fascinados pela criatura e não conseguiam tirar os olhos dela. Era o animal de estimação de Iason, e era um delinquente e tanto. Eles diziam que era por isso que acompanhavam todas as suas ações.
— E depois há essa questão de ele estar trabalhando com os móveis. — disse Raoul. — Você precisa lidar com isso imediatamente.
— Com quem você pensa que está falando? Eu não vou fechar os olhos para isso.
— Desculpe, — Raoul respondeu de maneira displicente. — Claro que não quis insinuar o contrário.
Iason havia terminado com Raoul. Mas a conversa claramente havia deixado Iason perturbado, pois ele exibia uma expressão feroz no rosto.
Iason não era tão clemente a ponto de ignorar um crime tão grave como o de invadir o sistema. Como prometido, ele condenou à morte o móvel chamado Daryl. Além disso, Iason finalmente desistiu de Riki por estar igualmente envolvido no crime e ser a causa de tantos problemas. Riki foi descartado.
Ou assim acreditavam Raoul e muitos residentes aliviados de Eos. Com um único golpe, a infecção havia sido finalmente eliminada. Eos poderia voltar ao seu modo normal e pacífico.
Iason vinha comparecendo com mais e mais frequência aos leilões recentes da Midas. O consenso era que ele estava procurando por um novo animal de estimação. Naturalmente, isso se tornou o novo foco de atenção em Eos. Mas quando as pessoas ouviram rumores de que Iason estava empregando outro mestiço da favela em busca de novas experiências…
Ele nunca aprende, disseram uns aos outros com um riso consciente.
Depois, houve o rumor inesperado de que um homem parecido com Riki havia aparecido nas favelas. Raoul ficou chocado. Certamente Iason não iria tão longe.
No entanto, ele não conseguia eliminar as dúvidas de sua mente. Para ver com seus próprios olhos, as investigações de Raoul o levaram ao Mistral Park. Mas antes que ele pudesse ter certeza, Iason mesmo lhe confirmou a verdade. Raoul ficou ainda mais irritado quando Iason distorceu o significado da Lei dos Animais de Estimação para atender às suas necessidades.
“Eu lhe dei uma “folga” por um ano” explicou Iason. “Deixei-o correr livremente por um tempo. Um limite de tempo generoso, eu acreditava. Não imaginei que ele voltaria a ser o que era antes. Mas como ele voltou, trazê-lo de volta para cá era a única coisa responsável que eu poderia fazer como seu dono, você não concorda?” Iason exibiu um sorriso encantador.
Raoul não tinha a menor ideia do que passava pela mente de Iason.
— O que você pretende fazer com essa criatura?
— Nada, na verdade. Estou apenas curioso para ver como ele vai reagir diante da escolha entre seu antigo parceiro e seu orgulho. É só isso.
— Ele não passa de um vira-lata de favela. Não é de seu feitio levar algo tão a sério.
— Não é? — Iason olhou para baixo e respirou fundo. — Se ele fosse apenas um animal de estimação, eu não teria passado três anos mantendo-o sob controle. Talvez eu tenha começado agindo por impulso, mas me envolvi mais do que esperava. Especialmente depois daquilo com a Mimea. Apenas meu cérebro é orgânico, mas isso ainda me faz meramente humano no final das contas.
Raoul gostava de se gabar de que, no final das contas, nenhum mistério se escondia nas verdades eternas do universo. Mas agora seus olhos se arregalaram de surpresa. Para Raoul, a mente de Iason era um enigma maior do que todos os segredos ocultos do cosmos.
— Se eu disser que eu… Que eu amo o Riki, você provavelmente iria rir, não é Raoul?
Raoul ficou tão perturbado com as palavras que saíram da boca de Iason que ficou sem palavras. Ele não conseguia decidir se deveria desviar essa confissão surpreendente com uma risada ou um palavrão.
Iason lançou um olhar de soslaio para Raoul, com um sorriso sardônico que distorceu suas feições. Ele estava lutando contra um dilema que surgia de emoções contrárias ao seu orgulho de Loiro. Para clarear a mente por um momento, Iason se recostou, imaginando os dias complicados que estavam por vir.
Há um ano, no dia em que Riki foi detido em Prage, Daryl foi levado para uma cela separada no centro de segurança. Daryl não mostrou nenhuma inclinação à fugir ou resistir. A expressão em seu rosto era de uma mansidão incomum. Ao observar mais de perto, porém, era uma expressão que Iason nunca tinha visto antes — talvez uma de confiante satisfação.
— Você entende por que foi trazido aqui, Daryl?
— Como está o Mestre Riki? O que aconteceu com ele? — perguntou Daryl, ignorando a pergunta de Iason.
— Ele foi detido em Prage.
Os olhos de Daryl tremeram por um momento. Iason mal podia acreditar. Será que Daryl honestamente acreditava que Riki escaparia? Uma sombra cobriu o rosto de Daryl, um reflexo da estupidez que ele agora lamentava.
Já é tarde demais para esses arrependimentos. Iason, é claro, não pôde deixar de perceber como essas palavras voltaram a ele envoltas em desprezo e crítica.
— Riki está em uma cela de detenção agora. Ele estava difícil de controlar, então deram-lhe alguns sedativos.
— Ele não está machucado, está?
— Os segurança de Eos são treinados para deter animais de estimação sem causar danos desnecessários.
Daryl suspirou visivelmente aliviado.
Na realidade, Riki resistiu mais do que o esperado e acabou sendo ferido tanto quanto feriu os seguranças. Mas não havia necessidade de contar isso a Daryl. Não era um ato de bondade humana, mas simplesmente porque a preocupação não faria bem a nenhum dos dois.
— Então me diga, por que ele teria arranjado um cúmplice tão fraco? — Daryl levantou os olhos baixos e disse em voz clara e distinta:
— Não. Foi ideia minha. O Mestre Riki não sabia de nada.
— Ele te ameaçou e você estava indefeso para resistir. Diga isso e as coisas serão mais fáceis para você. — Mas Daryl recusou a saída fácil.
— Sou eu o responsável por hackear o sistema de segurança dos pets. Não fui ordenado e nem ameaçado.
De certa forma, Iason estava satisfeito por ver Daryl sendo tão corajoso. Mas ao mesmo tempo, o que Daryl disse mexeu com emoções desagradáveis profundamente em seu coração.
— Por quê? — Iason perguntou novamente.
— Porque Riki estava obcecado com aquelas portas — respondeu Daryl simples e claramente.
Iason rapidamente deduziu que Daryl estava se referindo às portas no saguão principal de Eos. Era a única conexão entre Eos e o mundo exterior. De vez em quando, Riki descia para o saguão apenas para fixar seu olhar naquelas portas. Ele encarava as portas, sem mover um músculo, até que o guarda de segurança o arrastasse de volta para seus aposentos. Isso acontecia com frequência suficiente para que mal valesse a pena mencionar. Sem dizer uma palavra, os pensamentos passando por sua mente eram tão claros quanto o nariz em seu rosto: Um dia esse anel de estimação vai sair e eu vou passar por aquelas portas.
Passar pela porta e entrar no mundo exterior nunca havia passado pela cabeça de nenhum outro animal de estimação além de Riki. Passar pela porta significava a exclusão de seus registros, que iam para a sucata. Somente Riki era perverso o suficiente para desejar tal coisa.
— Ele foi criado na mesma jaula que você. Você está dizendo que sentiu pena do estado em que ele se encontrava?
— Não. Eu só…
— Você não deveria estar particularmente insatisfeito com o seu status como móvel de um Loiro. A punição por hackear é severa. Você deve está ciente. Então, por que fez isso?
Iason precisava saber. Como esse móvel — que deveria ter sido inabalavelmente fiel a ele — poderia fazer algo tão estúpido? No que Daryl estava pensando? O que aqueles olhos viram?
— Será que o Mestre Iason não percebeu? Recentemente, o Mestre Riki não tem sido muito falante. Depois de dormir com o Mestre Iason, ele fica com febre, é o preço que ele tem que pagar.
Iason havia percebido, embora tivesse fingido não perceber.
— Nada apareceu nos exames médicos dele. Nos últimos três anos, nada foi encontrado em seus check-ups. Os médicos dizem que é graças aos seus cuidados tão atenciosos.
Não era exagero — quando se tratava de cuidar da saúde de Riki, Daryl era mais atencioso do que a maioria dos móveis. Seu senso de obrigação como móvel por si só não poderia explicar isso. Não importava o quanto Riki se irritava, Daryl não recuava.
Ser teimoso e irritável eram as especialidades de Riki, mas Daryl tinha paciência e perseverança para se igualar. O peso do raciocínio de Daryl o silenciou. Esse havia se tornado o padrão repetitivo por dois anos.
Mas enquanto ele guardava sua língua, seus olhos mostravam uma gama complexa de emoções. Riki via algo em Daryl, algo que até mesmo Iason não conseguia entender. Era algo mais do que simplesmente se familiarizar com seu rosto. Iason nunca antes observara entre pet e móvel um senso de aproximação mantido entre esses dois sem que isso levasse a algum tipo de conflito.
— O Mestre Riki disse que não é nada, mas eu não acho que seja o caso.
— Você não é médico. Você é apenas um móvel, Daryl. — Iason enfatizou o ponto com sua típica franqueza displicente.
— Não sei que tipo de vida o Mestre Riki levava nas favelas, mas sei como ele era quando estava no Guardian.
Não houve um único sinal de emoção no rosto de Iason em reação à revelação surpreendente. Não era impossível. Os móveis em Eos eram todos fornecidos pelo Guardian, um segredo conhecido apenas por alguns poucos da elite. Era por isso que Iason não ficou particularmente surpreso ao descobrir que Daryl e Riki poderiam ter cruzado seus caminhos antes.
— Quão mais velho você é?
— Três anos. Mas fomos designados para blocos diferentes.
O Guardian era meticuloso em diferenciar a educação por bloco. Crianças designadas para blocos separados raramente tinham a chance de se misturar. Além disso, com uma diferença de três anos, as chances de se conhecerem eram mínimas.
E ainda assim, Daryl disse que conhecia Riki do Guardian. Antes que Iason pudesse perguntar como, Daryl prontamente deu a resposta.
— Embora tenhamos sido designados para blocos separados, a maioria dos móveis daqui se lembra de Riki.
— O Riki não conhece nenhum de vocês. — Iason disse. Ele podia perceber que Riki não estava fingindo não conhecer os outros móveis. Eles eram estranhos para ele.
— Mas nós o conhecíamos. Era difícil não notar o Riki de cabelos e olhos pretos. Era como se algum alienígena estranho tivesse descido no Guardian. Riki tinha uma natureza diferente do resto de nós. Ele não se aproximava de ninguém. As pessoas diziam que ele nem mesmo se lembrava de seus próprios colegas de bloco. Mas, sendo Riki, isso não era surpresa para nenhum de nós.
— Como agora?
— Sim. Ele não bajulava ninguém por nada. Não importava o que acontecesse, ele nunca mudava quem era. Era por isso que, sempre que nosso tempo livre mensal chegava, competíamos entre nós para dar uma olhada no garoto-problema com quem as Irmãs não sabiam lidar. E quando um de nós conseguia, nunca esquecíamos. Ele era tão incomum.
— Ele se destaca, mesmo agora. — Iason quase podia imaginar Riki no Guardian.
— Ele não mudou nem um pouco. Mesmo que esteja amarrado por uma coleira, ele preferiria viver sua vida como um vira-lata de favela a ser reduzido à vida de um animal de estimação. É por isso que eu o invejo e sofro por ele. Não podendo fazer nada além de observar e se maravilhar, ele se torna uma visão ainda mais dolorosa.
Até certo ponto, Iason podia ver o ponto de vista de Daryl. Tendo o mesmo Riki diante de seus olhos, não era difícil imaginar a inquietação nos pensamentos de Daryl. Sem mencionar o fato de que Iason havia ordenado a Daryl que fizesse boquete em Riki.
“Daryl, você ensinará a esse lixo da favela, com sua boca, o que toda essa luta fútil vai trazer a ele. Divirta-se, mas não deixe que ele goze. Eu darei o golpe final.”
Os móveis eram obrigados a obedecer a seus mestres. Essa era a única regra que garantia a continuidade de sua existência em Eos. Reprimindo um olhar de dor, Daryl enterrou o rosto entre as coxas do vira-lata da favela, chupando o que ele nunca poderia ter.
Apesar da humilhação, Daryl atendia Riki de forma desinteressada e direta. Exceto por uma vez. Uma vez, as emoções de Daryl se libertaram.
Foi quando Riki estava resistindo às ministrações orais de Daryl, como de costume, o xingando com qualquer palavrão que sua mente pudesse reunir. Mas então Riki disse ou fez algo que tocou o senso de proibição de Daryl. Inesperadamente, Daryl ficou furioso.
“Você é apenas um móvel, Daryl. Lembre-se do seu lugar.”
Iason havia repreendido Daryl gentilmente, o que o impediu de agredir Riki. Ter que repreender essa ação significava que Iason tinha superestimado o valor de Daryl como móvel.
Os animais de estimação eram ninfomaníacos de mente simples — era assim que foram criados. Mas ter móveis igualmente simplórios poderia ser problemático. Nesse ponto, Daryl era realmente exemplar. Iason não pôde deixar de admirar Daryl por ter a determinação e as habilidades mentais para hackear o sistema de segurança.
— Se o Mestre Riki cedesse, ele poderia ser feliz. Mas quando penso no jeito que o Mestre Riki costumava ser, sinto tanta inveja que isso dói no peito. A menos que eu consiga me livrar dessa inveja, não consigo funcionar como móvel, e ainda assim… — A voz de Daryl falhou enquanto ele lutava para pronunciar as palavras. — … Por isso, eu não vou bajular ninguém, não suporto a ideia de que o Mestre Riki se torne algo diferente do que ele costumava ser. É por isso que…
— Você queria ver se ele ainda tinha algum orgulho ou se tinha sido reduzido a nada mais do que um animal de estimação?
A única resposta de Daryl foi encarar Iason de volta.
— Apenas por esse propósito, você está disposto a condenar um ótimo móvel de um Loiro a ser jogado no lixo?
Iason sentiu que a ação tinha sido tola, mas isso foi o pior que ele poderia chamá-la, já que ele simpatizava com o sofrimento de Daryl. Ele ficou surpreso por se pegar pensando essas coisas sobre móveis. Precisou fazer uma pausa para reunir seus pensamentos.
— Em Eos, — Daryl respondeu, — Os móveis são bens descartáveis. Estamos sujeitos aos caprichos e acessos de violência de um animal de estimação — não é por isso que temos uma vida útil tão curta?
— Há cinco anos, você não fez nada para ofender sua posição como móvel. Riki vale tanto a pena que você está disposto a jogar sua vida fora?
— O Mestre Riki não é um bem descartável como eu. Ele me tratou como outro ser humano. É verdade que ele nunca falou comigo gentilmente ou tentou conquistar meu afeto; eu nunca vi o desejo de fazer isso em seus olhos. Mas ele não me desprezou como outros animais de estimação fizeram. Talvez eu tenha me tornado um pouco convencido, mas ainda quero fazer algo por ele. Só para que, por um momento, pudéssemos compartilhar algo. Não poderia pedir mais nada.
— Você está me dizendo que prefere ser como um vira-lata da favela?
Por um momento, uma expressão de tristeza alegre surgiu no rosto de Daryl. Com a mesma rapidez, ele se recompôs.
— Foi o primeiro e último risco que eu corri, com o destino do Mestre Riki e seu orgulho em jogo. Então, naturalmente, ofereço tudo o que tenho como garantia. Nada poderia me trazer mais felicidade do que o Mestre Riki ser curado novamente.
— Riki não ficaria feliz ao ouvir sobre o seu sacrifício. — As palavras surgiram abruptamente nos lábios de Iason, fazendo os cantos de sua boca se curvarem para baixo. De fato, Riki ficaria triste com o que Daryl havia feito. Ele não choraria por si mesmo, mas certamente se sentiria responsável pelo destino de Daryl, e a lembrança seria enterrada em seu coração como expiação pessoal pela morte.
Iason não podia permitir isso. Ninguém poderia ser gravado no coração de Riki, exceto ele.
Daryl olhou para Iason com os olhos arregalados.
— A culpa é toda minha, portanto, tenha piedade do Mestre Riki. Por favor, eu lhe peço.
— Se você está disposto a assumir toda a culpa e poupar Riki, saiba que nenhuma forma de disciplina está descartada no que diz respeito a você.
— Sim.
— Nesse caso, você servirá como exemplo para todos em Eos do que aguarda aqueles que cometem uma ofensa tão grave.
Mesmo ao dizer isso, Daryl não demonstrou arrependimento. Ele apenas se virou para Iason e baixou a cabeça.
De vez em quando, as criaturas das favelas faziam coisas surpreendentes — foi o que seu tempo com Katze lhe ensinou. As pessoas evoluíam de acordo com seus ambientes, por autopreservação, como produto do desejo ou até mesmo como resultado do desespero. Mas uma coisa sobre elas nunca mudava.
Eles sempre podem surpreender você.
Iason Mink era um dos aristocratas de elite escolhidos por Jupiter para ser o alicerce de Tanagura. Ele era um novo tipo de homem que havia surgido do próprio sentido de Jupiter. Durante muito tempo, Iason viveu com um senso de orgulho e lealdade da vontade coletiva que compartilhava com seu criador. Por causa disso, ele tinha uma convicção inabalável de que sua existência superava a dos outros mortais. Antes de conhecer Riki, ele nunca duvidou que sua mente permanecia intocada pelas emoções humanas que assombravam aqueles seres de carne e osso.
Ele acreditava que a existência contínua daquela criança deformada, Midas, era necessária para exibir os esplendores de Tanagura. A criação e o descarte de seres humanos como animais de estimação eram um reflexo da dignidade e da majestade da elite. Eles estavam apenas cumprindo seu dever.
Mas então ele conheceu Riki, e essas convicções desmoronaram.
Antes de Riki, Iason achava que raças como os vira-latas das favelas eram lixo, sem esperança de um futuro respeitável. Mas o movimento vivo e vibrante dos membros de Riki agradava aos olhos. O calor de seu corpo, aceitando todos os prazeres oferecidos, impressionou Iason com o direito especial dos descendentes de carne e osso da raça humana. Além disso, Riki tinha um senso de orgulho insubordinado que o levava a problemas. Seus preciosos olhos negros perolados revelavam todas as emoções sem compromisso.
Iason sentiu todo o impacto do que significava crescer sem condicionamento comportamental ou programação educacional. Sempre que Riki preenchia sua visão, Iason experimentava uma renovada sensação de irritação, uma nova sensação de surpresa. Ele sentiu gavinhas quentes profundamente dentro dele serpenteando por seu corpo.
Como um androide criado por bioengenharia a partir da essência destilada de um cérebro biológico, Iason sabia que não deveria estar experimentando aquilo. Mas o leve pulsar de algo chamado “emoção” não desaparecia. Tinha se esculpido em sua mente. Aquilo que não deveria estar ali latejava como uma dor fantasma.
As emoções eram tão intensas que despertavam nele um sentimento de repulsa. Uma febre surgia de sensações sorrateiras e frequentemente incompreensíveis, que queimavam sua alma. Isso o fez questionar sua razão para ser membro da elite de Tanagura, e ele duvidava de seu orgulho como um Loiro.
Entrelaçado pelos redemoinhos do entorpecimento, às vezes sentia uma fome que a razão não conseguia conter. Ele queria Riki mais do que poderia ter? Existe alguém entre nós que não invejaria uma alma tão brilhante?
Rugir de raiva e negar tudo era fácil — mas Iason havia aberto uma porta que não podia mais fechar. Seus impulsos mataram a razão. Iason já estava ciente de que em algum lugar dentro dele, por mais fracos que fossem, ele havia sido dotado dos instintos de um humano comum.
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