A Maldição do Lobo Vermelho - Capítulo III - Desejos e promessas
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— O menino se foi. Saiam logo daí antes que eu perca a paciência — disse o lobo um pouco emburrado.
Dois grandes pares de olhos brilhantes se destacaram entre as árvores.
— Mestre Ílios parece muito bem para alguém que deveria estar morto — provocou a voz grave em tom zombeteiro.
O outro que acabara de sair da escuridão retrucou:
— Eu não concordo. Talvez não lhe restem muitos dias de vida, nem mesmo conseguiu comer aquele garotinho que estava praticamente entrando em sua boca por vontade própria …hahahahaha.
Dois enormes lobos saíram das sombras da floresta.
O primeiro a aparecer, era ainda maior que o grande lobo vermelho. Os olhos eram amarelos vivos, mas o que mais se destacava em seu rosto era uma profunda linha que descia do lado direito da testa até a bochecha peluda. Aliás, todo o corpo castanho avermelhado, era marcado por cicatrizes de batalha.
O segundo lobo era um pouco menor, mas não menos impressionante. Seus pelos tinham um tom acobreado mais escuro, que contrastava perfeitamente com os grandes olhos azuis que adornavam o cenho presunçoso.
— Muito engraçado, Kardia — disse o lobo vermelho — Se eu estivesse esperando por vocês provavelmente teria sucumbido. De toda forma o menino não é minha presa, aliás, ele está fora do cardápio, entenderam?
— Ah! Então meu mestre encontrou um bichinho de estimação? Que curioso, não achei que humanos fizessem o seu tipo. — Riu o lobo com a cicatriz.
— Não seja ridículo, Dásos. O mestre está moribundo e não louco — bufou o lobo menor.
— Humanos podem ser extremamente divertidos, Kardia, você precisa apenas dar uma chance a eles — respondeu Dásos.
— Lá vem você com essa história de humanos…
As duas feras estavam prestes a iniciar uma batalha quando Ílios interrompeu:
— Basta! Podem me dizer por que demoraram tanto? Mesmo tendo dois grandes comandantes, tive que depender da compaixão de um filhote de humano para não perecer… isso é no mínimo motivo para um espancamento público, não concordam?
Os dois animais deram de ombros:
— A culpa é realmente sua mestre, como o senhor veio parar aqui? Esta floresta é realmente difícil de ser explorada — resmungou o lobo maior.
— Infelizmente terei de concordar com esse idiota. Não paramos de procurá-lo um minuto sequer durante esses dias, porém, perdemos o seu rastro repentinamente.
— Sim, existe uma barreira poderosa nesse lugar, eu notei assim que cheguei. Aparentemente, ela dificulta o contato entre o mundo exterior e o interior desta floresta, por isso resolvi me recuperar por aqui mesmo — explicou Ílios.
— Uma barreira forte como essa deve estar protegendo algo importante. O senhor desconfia de alguma coisa? — perguntou Kardia.
— Não tive chance de explorar, apenas agora estou conseguindo ficar de pé. Mas isso é algo que vale a pena ser investigado futuramente, por hora, vamos ao mais importante. Qual a situação da alcateia? Vocês conseguiram estabelecer um local seguro?
— Sim senhor! — respondeu Dásos — Graças ao plano, conseguimos evacuar a cidade a tempo.
Com um grande suspiro de alívio, Ílios falou:
— Eu sabia que podia confiar em vocês.
— Mas não conseguimos proteger nosso reino, senhor — murmurou Kardia — Nossos domínios foram tomados por aquelas panteras desgraçadas.
Os dois lobos recém chegados abaixaram a cabeça.
— Não fiquem assim, eles podem estar em nossas terras, mas não tomaram nosso reino e isso graças a vocês — encorajou Ílios.
— Como assim senhor? Agora mesmo aqueles patifes devem estar profanando cada canto de nosso território com suas patas pestilentas — argumentou irritado o lobo menor.
— A fome e a dor devem ter desajustado ainda mais os miolos do grande mestre… veja… já não diz coisa com coisa… — zombou Dásos.
Ílios ignorou a última sentença:
— Kardia, um reino não é formado pelas terras que ele ocupa e sim pelo povo que ali habita. Pense bem, se nosso povo está a salvo, qualquer bocado de terra poderá ser chamado de lar.
Enquanto Ílios falava, uma névoa brilhante encobria todo seu corpo felpudo. Era como se todas as estrelas do céu tivessem descido a terra e, em sincronia, dançassem ao redor do lobo. Por onde os pontos de luz passavam deixavam um rastro perolado que rapidamente era dissipado mostrando não mais a figura de uma fera e sim a de um charmoso homem de longos cabelos vermelhos.
Apesar de ser a mesma pessoa que outrora estava caída aos pés do jacarandá, seu rosto estava infinitamente mais encantador. O tom pálido foi substituído por uma cor levemente bronzeada, quase dourada, que ornava perfeitamente com os tons vermelhos dos longos cabelos que desciam volumosos pelas costas e peito nus.
Seus olhos estreitos estavam resolutos e um sorriso feroz marcava a face:
— Além do mais, terras não se movem e assim que recuperarmos nosso exército voltaremos para aniquilar aqueles bastardos de uma vez por todas!
Um novo brilho pairou no ar enquanto Dásos e Kardia deixavam suas formas animalescas, se tornando dois belos homens.
Dásos, com toda certeza, estava próximo aos 2 metros de altura. A vestimenta não contemplava o lado esquerdo de seu dorso, exibindo assim um peitoral musculoso e bem definido, marcado por cicatrizes de batalha. Os cabelos castanho avermelhados estavam semi presos em um coque desleixado que permitia que parte das madeixas escapassem em direção ao pescoço.
Kardia não negava que era um guerreiro. O corpo atlético estava mais bem protegido dos olhos alheios, mas mesmo assim, podia ser visto parte do forte peitoral pela fenda central da roupa escura. Um comprido xale negro cobria o longo pescoço e os cabelos acobreados estavam presos em um alto rabo de cavalo, o que lhe dava um aspecto ainda mais imponente.
O som agudo do atrito do ferro com ferro foi ouvido enquanto Ílios estendia uma enorme espada em direção aos outros dois que retribuíram o gesto apresentando suas respectivas armas.
Dásos empunhava um machado de lâmina larga enquanto Kardia estendia sua haladie, uma arma com duas lâminas conectadas a um punho central.
— Eu prometo a vocês, não descansarei até que nosso reino seja lavado com o sangue de todas aquelas panteras desgraçadas! Juntos, eu sei que podemos extirpar essa raça miserável da face da terra.
As três armas se tocaram e o pacto foi firmado, renovando o espírito dos guerreiros.
— Senhor — disse Kardia recolhendo sua arma — agora que nos reunimos, precisamos encontrar um local mais seguro para alocar a alcateia. O lugar em que estão possui bons recursos e é isolado, mas não servirá para ficarmos por muito tempo.
— Kardia tem razão, estamos em um vale cercado por montanhas baixas, fácil de ser emboscado, difícil de ser defendido. Se as panteras encontrarem nosso rastro temo que não tenhamos soldados suficientes para a defesa.
— Compreendo. Na atual situação, precisamos encontrar um lugar que anule a vantagem numérica do inimigo — Ílios concluiu guardando sua espada.
— Sim, mestre, e é por isso que precisamos ser rápidos. Se o senhor não estiver conseguindo se mover, Dásos poderá levá-lo nas costas.
— Por que eu? Desde quando me tornei montaria, Kardia?
— Você tem que servir para alguma coisa além de ocupar espaço.
Os dois guerreiros se encararam enquanto rosnavam um para o outro.
Com um grande suspiro, Ílios interrompeu a discussão:
— Não se preocupe Dásos, eu não montarei em você, além dos mais, parece que você já possui um cavaleiro, não é mesmo?
Os homens arregalaram os olhos.
— Ílios, não fale dessa forma… isso faz parecer mais estranho do que realmente foi — respondeu Kardia irritado.
— Senhor? Combinamos que não tocaríamos mais nesse assunto, além do que, foi uma situação extrema que com toda certeza nunca mais se repetirá — completou Dásos envergonhado.
— Então parem de reclamar e me levem ao encontro de minha alcateia.
— Sim senhor.
— Sim, meu mestre.
Com os ânimos apaziguados, o grupo iniciou a jornada montanha abaixo.
A floresta era densa e emanava um sentimento sombrio que até então Ílios não havia percebido. A sensação de perigo se aprofundava à medida que os três se afastavam do jacarandá.
— Ílios, uma barreira como essa só pode ter sido feita por um Urutau. Você está sentindo? — indagou Kardia.
— Sim, mas tem algo de estranho. Ela não estava tão densa antes.
— Bom, eu não entendo da magia dessas aves, mas isso significa que o que a barreira está protegendo está em perigo não é mesmo? — perguntou Dásos.
— Sim, possivelmente em grande perigo — respondeu Kardia — devemos investigar, senhor?
— Não temos tempo, primeiro vamos encontrar a alcateia, preciso conversar com Geros.
— Sim senhor.
Urutaus eram criaturas extremamente raras e poderosas, consideradas por muitos como os verdadeiros protetores das matas e florestas. Mas sua magia também podia ser usada em pactos de proteção de objetos, ou seres vivos. Porém, por serem muito difíceis de se encontrar, pouco se sabia sobre seus poderes ou intenções.
Descendo a montanha, os três chegaram à pequena vila, que estava em polvorosa.
“É o cheiro do garoto”, pensou Ílios.
Kardia notou a hesitação do mestre e perguntou:
— O que foi meu senhor?
— Nada, mas parece que alguma coisa aconteceu aqui recentemente. Dásos, você que gosta de se misturar, descubra o que está havendo.
— Ah meu senhor, humanos são assim mesmo, qualquer coisa é motivo para tumultos e rebeliões, mas se meu mestre deseja aprender mais sobre essas criaturinhas eu ficarei feliz em ajudá-lo.
Andando despreocupadamente, Dásos se infiltrou na multidão que ainda estava muito exaltada:
— Minha ilustre dama, poderia dizer a este humilde forasteiro o que de tão interessante está se passando por aqui?
Dásos é um homem extremamente forte e temível em batalha, mas seu campo preferido de combate era o da conquista, nele sim poderia mostrar a completude de suas habilidades.
— Oh! Sim, claro. Um grupo de homens valentes está perseguindo um ladrãozinho floresta adentro — disse a jovem mulher enquanto analisava o voluptuoso recém chegado — Você é um forasteiro, então não deve saber, mas aquela floresta é amaldiçoada e o pequeno larápio mora lá…
— Ah! Entendo! Pelas marcas de sangue no chão, houve uma luta… — Dásos ergueu uma sobrancelha enquanto arqueava a boca em um sorriso sedutor. — Acertei?
— Sim! Meu senhor é muito perspicaz! — disse a mulher com um tom dissimulado — Mesmo depois de apanhar feio aquele moleque ainda conseguiu arrancar o nariz de um homem antes de fugir. Uma coisa horrorosa de se ver.
Percebendo o movimento furtivo atrás de si, Kardia desviou o olhar a tempo de ver o líder do grupo disparar, voltando pelo caminho que haviam acabado de fazer:
— Mestre Ílios?
Mas ele já estava fora do alcance de suas palavras.
O coração do ruivo estava apertado e um mau pressentimento passou por sua cabeça: “Ele disse que ninguém mais andava por essa floresta, apenas ele, não poderia ser coincidência.”
Em poucos segundos, Ílios refez metade do trajeto percorrido para descer a montanha, mas ainda não haviam sinais do garoto. Se ele estivesse por ali, seria impossível não tê-lo notado, a menos que essa floresta exercesse alguma confusão em seus sentidos, o que não poderia ser descartado se a barreira fosse mesmo obra de um Urutau.
Ílios já havia enfrentado inúmeras batalhas sangrentas em sua vida, mas em nenhuma delas experimentou esse sentimento de impotência. Olfato, audição, visão, seus sentidos sempre tão aguçados se tornaram inúteis de repente.
Ele parou algumas vezes pelo caminho, girando ao redor do próprio corpo, buscando algo incomum, algo que pudesse lhe dar alguma pista do paradeiro da criança.
Ignorando a dor aguda dos ferimentos recém abertos pelo esforço da corrida, Ílios saltou em um galho maciço de uma frondosa árvore. Do alto, ele deveria conseguir enxergar boa parte desta ala da floresta, mas, ao contrário do que se imaginava, sua visão estava ainda mais nublada, como se uma fina cortina estivesse cobrindo todo o horizonte.
Extravasando a angústia e a frustração, o belo homem ergueu sua cabeça e gritou aos céus:
— VAMOS LOGO! SEJA LÁ QUEM VOCÊ É, DESFAÇA A BARREIRA, ME PERMITA ENCONTRÁ-LO ANTES QUE SEJA TARDE DEMAIS!
A sensação de perigo era sufocante dentro da floresta, era como se a gravidade tivesse sido multiplicada em dez vezes, tornando o ar pesado e difícil de ser respirado.
Abaixando a cabeça sussurrou:
— Não vê que eu também desejo protegê-lo?
Em um estalo, um cheiro forte de sangue permeou suas narinas indicando claramente a direção do alvo.
Como o fogo que se alastra pelo vento, Ílios correu ferozmente, saltando pelas árvores; nada poderia ficar em seu caminho. O cheiro de sangue estava ficando cada vez mais forte e, por alguns segundos, era como se apenas esse odor existisse em todo o mundo.
“Eu estou chegando! Aguente firme!”
Publicado por:
- GSK
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Escrevendo, desenhando, editando e fazendo mais algumas artes por ai.
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