A Maldição do Lobo Vermelho - Capítulo 17 - O calor que aquece a alma
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— Eu acordei depois de alguns dias… — a voz embargada quase não saia da garganta de Kardia — e Ánesi estava sentada na beirada da minha cama… segurando minha mão… como se nada tivesse acontecido…
Dásos apertou mais forte o abraço que os unia, aconchegando o rosto desconsolado entre o peito. Só podia imaginar o quão duro foi para Kardia reviver o trauma e o quão corajoso o amigo precisou ser para guardar esse segredo por tantos anos. Por mais que soubesse que a história contada por Ánesi e Geros escondia muitas verdades, jamais poderia imaginar que quem causou todo aquele estrago havia sido o pequeno Mirrado.
Um ataque tão repentino e tão próximo ao acampamento nunca fez sentido para o comandante. Uma pantera transformada teria acabado facilmente com os filhotes e mesmo que Ánesi tivesse intervido a tempo, não seria páreo para o animal. Sem contar que, as chances do inimigo ter preferido atacar os pequenos ao invés de segui-los e descobrir o esconderijo do restante da tribo eram muito baixas. Ele mesmo vasculhou os arredores várias vezes e nenhum cheiro ou rastro de sangue denunciaram o paradeiro do fugitivo.
Pensando bem, essa foi a melhor escolha. Como Kardia estava entre a vida e a morte, Ílios recebeu a punição de ambos e passou semanas trancado na solitária após ter sido espancado na frente de toda a tribo. Adamastos usou o próprio filho como exemplo de que ninguém estava imune às consequências de desacatar suas ordens ou colocar o restante do povo em risco. Se ele ao menos imaginasse o que aconteceu de verdade, teria matado o Mirrado sem hesitar.
Quanto mais pensava, mais raiva Dásos sentia de si mesmo, sabia que havia falhado em proteger Ílios, mas não imaginava o quão alheio esteve ao sofrimento de Kardia. Os Guarás sempre estiveram em guerra então era inevitável que as novas gerações fossem treinadas desde de cedo. Tinha sido assim com ele, Adamastos e com todos os que vieram antes e depois, mas queria acreditar que seus esforços em tornar a vida um pouco mais fácil para aquelas crianças não tinha sido de todo em vão.
“Como fui tolo”, pensou, enquanto afagava os cabelos macios do comandante.
Kardia segurou o choro da melhor forma que pode até completar o relato, mas as últimas palavras que saíram de sua boca pareciam ter terminado de quebrar os pedaços trincados do coração. Não havia esperança no rosto pálido, apenas a angústia e a culpa escureciam os olhos azuis que já não comportavam as lágrimas. O corpo todo tremia e as mãos fechadas em punho sangravam pelo aperto contínuo.
Não se sentia digno de estar com aquelas pessoas, muito menos de ser tratado com tanta gentileza. O toque que acalmava a alma também agitava o coração, sabia que Dásos era bom demais para apenas o afastar e por isso a sensação de culpa queimava a pele. Apertando a mandíbula com força, Kardia esticou as mãos sobre o peito do homem, se desvencilhando do abraço:
— Eu… entendo se estiver sentindo nojo de mim neste momento… — Não ousava olhar para o rosto do outro. — Eu me sinto da mesma forma e…
Mas Dásos segurou seus pulsos, interrompendo o raciocínio.
— Nada mudou — a voz estava mais grave do que de costume — eu continuo não conseguindo gostar menos de você, Kardia.
— Dásos… você está choran… — os olhos azuis se derramaram.
— Não! — interrompeu secando o rosto pálido que o fitava incrédulo — está começando a chover, não vê?
Kardia assentiu apoiando a testa no peitoral de Dásos que retribuiu o gesto cruzando os braços ao redor de seu corpo.
— Verdade, você tem razão.
As águas que transbordavam do coração aplacavam a alma sedenta. Por mais que os pecados permanecessem gravados na pele, era como se o espírito finalmente pudesse ser absolvido da pena interminável. Dividir esse fardo renovou o vínculo de confiança que tinha com Dásos e acendeu o sorriso que há muito tempo havia se apagado.
Depois de se acalmar, Kardia contou o restante dos acontecimentos que presenciou dentro das lembranças guardadas no pacto do Urutau. Dásos ouviu tudo em silêncio enquanto acariciava a cabeça que permaneceu apoiada em seu peito. Estava claro que, as linhas escritas pela ave se encaixavam nas memórias dolorosas do passado e, talvez, completassem também alguns rabiscos obscuros do presente.
Haviam muitas perguntas, mas uma coisa era certa, seja lá quais forem as surpresas e desafios que estivessem desenhadas no livro do tempo, daqui para frente, não estariam mais sozinhos.
A mesma lua que delineava as sombras dos comandantes sobre a grama baixa traçava pequenos cones de luz dentro do casebre de madeira. Ílios havia tomado sua decisão, não podia mais adiar o retorno à tribo mas também havia uma promessa que o impedia de partir, assim, optou pelo único caminho viável, mesmo que fosse o mais arriscado.
— Ainda acordado? — disse apoiado no limiar antigo — tente descansar, partiremos amanhã, assim que o sol se pôr.
Fengari piscou algumas vezes, assimilando a informação. Desde que o homem saiu, permaneceu sentado, perdido em pensamentos e levou um susto quando notou que estava sendo observado.
— Partir? — repetiu atordoado — Para onde? Porque?
— Eu sou o líder da minha tribo e já fiquei tempo demais longe do meu povo.
— Ah… eu compreendo… — Fengari abaixou a cabeça.
Por mais que não quisesse aceitar, sabia que essa hora chegaria. Mais cedo ou mais tarde o ruivo teria que ir embora e tudo voltaria a ser como era antes, só não imaginava que seria tão cedo. No final, só podia confiar na promessa que fizeram e esperar que isso lhe desse forças para superar as noites claustrofóbicas no topo da montanha.
Ílios suspirou e balançou a cabeça, podia ver a cortina melancólica que encobria o garoto. Por algum motivo isso soava engraçado, “será que ele faz ideia de que é como um livro aberto?”, pensou. Esfregando o rosto, recobrou a compostura e caminhou até a figura triste.
— A viagem será longa e perigosa, então tente levar apenas o necessário. Tem alguns riachos daqui até as montanhas, então não se preocupe com água, mas leve algumas frutas pois não vamos parar e… porque está me olhando assim?
— Você… vai me levar? Eu… realmente posso ir? — Os olhos âmbar brilharam.
— Claro! — Ílios estendeu a mão direita sorrindo. — Nós fizemos um juramento, ou você já se arrependeu?
O rosto infantil se iluminou e com um salto abraçou o ruivo:
— Jamais! Eu nunca vou me arrepender!
— Uou!! — Ílios cambaleou e caiu sentado. — Você ficou mais pesado.
— Nada disso! — O garoto riu se apoiando nos ombros do outro. — Você que está perdendo o jeito.
— Acho que você tem razão… — O lobo riu bagunçando o cabelo do pequeno que se contorcia. — De qualquer forma, eu estava falando sério. O caminho não é fácil, ainda mais para um filhote de humano, tem certeza que quer ir comigo?
— Sim, eu tenho certeza! — respondeu sério — prometo que vou fazer o meu melhor para não atrapalhar vocês!
O rosto honesto deixava clara a decisão, talvez por ser apenas uma criança, seu caráter sincero e inocente exalava uma aura confiável que podia convencer o mais incrédulo dos corações. Essa era uma característica rara, que tanto podia lhe dar vantagem sobre os outros quanto ser a maior de suas fraquezas. Ílios se divertia com esse traço, mesmo que suas intenções estivessem escritas na face, a forma como o garoto as expressava era sempre uma surpresa.
— Sabe de uma coisa? — O lobo ajeitou algumas mechas que havia bagunçado. — Tenho certeza que você se tornará um grande guerreiro quando crescer.
— Sério?? — Os olhos brilharam.
— Sério! Se continuar engordando desse jeito pelo menos a parte do “grande” estará resolvida.
Ílios gargalhava enquanto o menino se debatia em seu colo. Não conseguia evitar, era muito divertido atormentar o garoto, todas as suas reações eram autênticas e exageradas, como toda criança deveria ser.
— Eu não sou gordo! — Fengari se esforçava para se livrar dos braços do ruivo.
Ílios ria enquanto segurava os pulsos que o atacavam:
— Claro que não é! Veja só, eu consigo segurar seus dois braços com uma mão e ainda sobra espaço.
— Ora seu… Porque está me atormentando? — O garoto virou o rosto fazendo bico.
— Não fique assim… — sorriu levando alguns fios negros para trás da orelha corada — estou apenas feliz que esteja se recuperando depressa.
Era verdade, estava feliz como a muito tempo não se sentia, mas a culpa ainda espetava o coração vez ou outra. Será que foi mesmo uma coincidência encontrar o filho de Allagí dessa forma ou essa era mais uma brincadeira astuta do destino? Por mais que não quisesse pensar nisso, agora que havia decidido levar o garoto até a alcateia, precisava contar sobre o passado que ligava Zoe aos Guarás.
O sobrenome Allagí era muito conhecido entre os lobos e não demoraria muito até que o pequeno descobrisse que sua mãe era uma traidora, e é claro, também quem foi o seu algoz. Ílios sabia o que tinha que fazer, mas também conhecia as consequências.
Aquele rosto sincero que fingia estar emburrado com as provocações do ruivo, não seria capaz de esconder o ódio e o desespero. Os olhos que brilhavam de alegria se encheriam de amargura e o coração trincado se espatifaria de vez. Talvez ele o atacasse tentando se vingar, ou quem sabe desistisse de viver, não importa o cenário que Ílios pintasse, não suportava ter que lidar com nenhum deles.
— Fengari — murmurou, virando o rosto do garoto para si — Eu… preciso de contar uma coisa.
— Nem vem… — respondeu carrancudo — não vou cair nessa de novo. Aliás, me solta logo, eu preciso ir dormir agora para não me atrasar com os preparativos de amanhã.
— Mas… eu… — Ílios tentou, mas as palavras estavam presas na garganta.
— Sem mais! — o garoto repreendeu se desvencilhando do lobo — você também deveria descansar, seu rosto está estranho…
Ílios estendeu a mão para segurá-lo, mas parou no meio do caminho. Não podia fazer isso, não tinha esse direito. Desde o acidente com Kardia nunca tinha sentido tanto remorso quanto agora, se pudesse apenas mudar o passado, não importa o preço, o faria. O sentimento frio que empalideceu o rosto foi surpreendido pelas mãos quentes que, gentilmente, seguraram as bochechas e interromperam o devaneio do ruivo.
Com um sorriso radiante, Fengari sussurrou:
— Não se preocupe! Eu vou ficar bem enquanto estiver ao seu lado! Agora boa noite!
O garoto se levantou e foi até a cama de palha onde se aninhou da melhor forma que pode. Estava começando a esfriar mas todos os lençóis e panos que tinha foram usados para ajudar o lobo e ficaram inutilizados como cobertores. De qualquer forma, não estava arrependido, só queria ter lembrado disso mais cedo e talvez tivesse conseguido encontrar algum outro trapo velho jogado como lixo no pé da montanha.
Ílios observou imóvel o menino se encolher sob a palha velha, como poderia não se preocupar com uma criatura tão frágil e ingênua? Sua própria essência doce e gentil já faria qualquer um querer protegê-lo.
“Eu sou mesmo um covarde… mas… talvez, só por hoje…”, o ruivo pensou.
Um vento gelado soprou pela janela quebrada fazendo o garoto tremer automaticamente, com toda certeza a noite seria longa. Ele estava se preparando psicologicamente para isso quando sentiu os pelos macios aquecerem suas costas.
— Mas o que? — Fengari virou instintivamente.
— Você está com frio, não é? — a voz grave soava triste — Eu posso te aquecer, se não se importar.
O gigantesco lobo vermelho se destacou dentro da pequena cabana, mesmo encolhido, ocupava boa parte dela e os olhos verdes brilhavam como lamparinas na escuridão. Fengari havia se esquecido o quão majestosa era essa face de Ílios, mesmo que o homem fosse belo e imponente, era como se aqueles pelos rubros pudessem hipnotizar.
Mesmo que tentasse, seria impossível resistir a tentação de tocá-los e por isso apenas se aconchegou, abraçando o dorso quente e macio do animal. Talvez não fosse tão ruim ter uma noite longa, afinal. Ambos ficaram ali, deitados em silêncio enquanto a lua seguia o seu caminho pelo céu. Por mais que as inquietações fossem diferentes, compartilhavam o mesmo desejo, esperavam que o “amanhã” não chegasse tão cedo.
Publicado por:
- GSK
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Escrevendo, desenhando, editando e fazendo mais algumas artes por ai.
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