A Maldição do Lobo Vermelho - Capítulo 15 - Instintos incontroláveis
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— Ah… Parece que vocês dois brincaram mesmo de casinha… — Kardia revirou os olhos depois de passar pelo limiar.
— Não ligue para ele, meu senhor! — Dásos entrou logo depois. — Esse penteado realmente te deixou muito fofo.
Não haviam velas ou lamparinas, mas a luz do luar que passava pelo teto esburacado era o suficiente para revelar as bochechas vermelhas de Fengári, que se encolheu com a provocação. Ílios estava acostumado com a ousadia dos comandantes, mas por algum motivo, sentiu as orelhas arderem.
— Já não era sem tempo. — O líder ignorou desviando o olhar. — Sentem-se e comam, conversaremos mais tarde.
Após mais algumas provocações, os quatro terminaram o jantar. Ílios havia caçado e Fengári se incumbiu de assar os coelhos e temperá-los com algumas ervas e vegetais da horta. Não era exatamente um banquete, mas a dedicação do garoto transformou os pratos simples em uma refeição invejável.
— Você fez um ótimo trabalho, filhote! — Dásos elogiou sorridente dando alguns tapinhas no ombro do garoto — a comida também estava uma delícia.
Kardia revirou os olhos e se levantou:
— Se já acabaram vamos conversar lá fora.
Fengári piscou algumas vezes confuso, mas agradeceu fazendo uma pequena reverência com a cabeça. Ílios, por sua vez, desviou o olhar da mecha cortada, que fazia cócegas em seu rosto todas as vezes que o vento soprava pela janela. Os momentos de distração não passaram despercebidos pelos comandantes e com toda certeza seriam motivo de insubordinação mais tarde.
“O leite já foi derramado”, o líder pensou. Com um suspiro tímido, acariciou a cabeça do garoto e se preparou para seguir os outros dois.
— Você realmente fez um ótimo trabalho, Fengári. — Sorriu. — O dia foi cansativo, então deite e descanse, não precisa esperar por mim.
As sobrancelhas arquearam e os olhos âmbar brilharam como os de um gato acuado no escuro. A refeição tranquila o havia distraído, mas as últimas palavras fizeram o coração voltar a bater de forma dolorosa. Não podia impedir que o ruivo saísse, mas também não queria lidar com o sentimento de solidão que a ausência do lobo traria à tona.
— Você… tem mesmo que ir? — sussurrou de cabeça baixa.
Ílios conhecia muito bem esse sentimento e sabia o quão difícil era acalmar um coração que sofreu com o abandono. Toda a insegurança e tristeza que algumas palavras poderiam causar, mesmo ditas de forma despretensiosa, a dor de perder a única fagulha que impedia a escuridão de devorar sua alma.
O lobo engoliu as lembranças e se agachou na frente do garoto.
— Eu preciso, mas… — Suspendeu o rosto triste para que se olhassem. — Eu vou voltar. Nós fizemos uma promessa, se lembra?
Fengári apertou o cabo da adaga presa a cintura e assentiu balançando a cabeça.
— Muito bem então! — O homem levantou e caminhou até a porta. — Agora descanse, nós teremos muito tempo para conversar amanhã.
O garoto concordou, silencioso. Vê-lo partir ainda doía, mas os fios vermelhos que contornavam o metal frio sussurravam repetidas vezes aquelas palavras gentis em seu ouvido. Não havia o que temer, só precisava confiar no lobo e no juramento que fizeram, não tinha porque duvidar do homem que salvou sua vida.
— Finalmente, — o esquentadinho bufou — pensei que ia ficar a noite inteira ninando o seu filhote.
Os dois comandantes esperavam do outro lado do riacho. Kardia estava de braços cruzados, ostentando o mau humor habitual, Dásos por sua vez, tinha o semblante tenso o que não era muito comum.
— Já disse para não falar assim, soa estranho. — Ílios se aproximou carrancudo.
— Então pare de agir igual a um cachorrinho, abanando o rabo pra cima e pra baixo, isso está me dando nos nervos — Kardia berrou.
— Você perdeu o medo, comandante? — o líder rosnou estreitando os olhos — talvez eu deva lhe recordar qual é o seu lugar…
Fazia tempo que Ílios não revidava as provocações e por isso os amigos se sentiam à vontade para perturbá-lo, mas não era como se desconhecessem sua fúria ou seu poder. Mesmo sendo filho do antigo chefe, o líder atual conquistou com as próprias mãos o direito de governar o exército dos Guarás e suas presas e lâminas eram tanto temidas quanto respeitadas pelos lobos.
O rosto gentil, escondia a natureza implacável do predador, capaz de dominar a alcateia inteira com apenas um olhar. A aura assassina que aqueles olhos verdes emanavam era hipnótica, um ataque feroz aos instintos alheios, um lembrete brutal de quem era o líder e o porquê.
Os comandantes abaixaram a cabeça e se ajoelharam obedientes, relutar seria apenas desafiar a soberania de Ílios, o que levaria a uma luta até a morte. Ambos presenciaram vários motins ao longo dos anos e mesmo quando o número de insurgentes ultrapassava o de aliados, o líder era inclemente. Naquela época, suas espadas nunca estavam embainhadas e raramente dormiam sem se manchar de sangue.
Foram necessárias muitas baixas para que os Guarás se curvassem à autoridade filho de Adamastos e os dois guerreiros sabiam que Ílios não hesitaria em derramar mais sangue para mantê-la.
— Nos perdoe, meu senhor. — Dásos apertou a mão direita sobre o peito. — Não era intenção ofendê-lo.
Kardia arfou antes de falar, pressionado pelo olhar afiado que o mantinha submisso:
— Peço perdão ao mestre. Fui desrespeitoso e completamente insolente. Isso não irá se repetir.
Ílios não gostava de ver os amigos nessa situação e por isso estava se esforçando para acalmar a mente e não prolongar a discussão. Passando a mão no rosto, respirou fundo antes de falar:
— Tudo bem, apenas… tenham mais cuidado a partir de agora.
A pressão esmagadora se dissipava devagar e depois de alguns minutos os homens puderam ficar de pé novamente, mas a sensação de perigo ainda pairava no ar.
Dásos havia notado a inquietação de Kardia desde que o encontrou caído entre as árvores e mesmo que tentasse disfarçar, os olhos azuis permaneceram completamente desfocados durante toda a refeição. Além disso, por mais atrevido que fosse, não era de seu feitio insultar o mestre daquela forma, seja lá o que for que o Mirrado viu na floresta, com certeza não era algo bom.
Dando mais tempo para que o amigo se recuperasse pediu a palavra, quebrando o silêncio constrangedor.
— Gostaria de reportar a situação da alcateia, acredito que não possamos mais ignorar a questão. É hora de voltar, meu senhor.
Ílios focou sua atenção em Dásos e finalmente a pressão do ar voltou ao normal. O comandante tinha razão, suas feridas estavam em bom estado e não havia motivos para protelar o retorno. Por mais que Geros fosse extremamente capaz, um líder não deveria ficar longe de seu povo por tanto tempo.
— Continue — ordenou — não creio que tenha feito o caminho de ida e volta apenas para repetir o óbvio.
Estava claro que o humor do mestre não havia melhorado, então Dásos escolheu bem as próximas palavras antes de dizer em um tom mais baixo que o usual:
— Acredito que exista um cão entre os lobos, meu senhor. É claro que é apenas uma suposição no momento, mas… é algo que precisa ser investigado o quanto antes.
Essa não era uma hipótese absurda, pelo contrário, não seria a primeira vez que um lobo insatisfeito com sua liderança tentaria a sorte se aliando aos inimigos. Por ser uma criança na época que assumiu o comando, sua posição era desafiada todos os dias e os adversários que não acabavam mortos eram expulsos do reino. Apesar de rígida, a lei era necessária para que a ordem fosse mantida, mas é claro que não foi bem aceita por todos.
Mesmo depois de tantos anos se dedicando a manter a paz e a liberdade dos Guarás, ainda haviam aqueles que se ressentiam dos métodos austeros de Ílios e buscavam vingança.
— Você conversou com Geros sobre sua desconfiança? — O líder desviou o olhar da lua cheia que brilhava no céu limpo para encará-lo. — Se existe um cão, o velho já deve ter suas próprias suspeitas.
Dásos e Kardia se entreolharam. Haviam relatado sobre o sumiço de Fídes ao líder, mas não sobre as afirmações de traição que Geros fez no dia que o reino caiu.
— O que vocês não estão me contando? — Os olhos verdes brilharam afiados como o aço enquanto subjugavam os guerreiros.
— Meu… senhor… — Dásos espremia as palavras pela garganta sufocada — morto não presto para nada… se acalme e me deixe falar…
Ílios respirou fundo novamente, tentando se acalmar, sua cabeça estava confusa e os instintos difíceis de serem domados. As coisas que descobriu mais cedo sobre o passado de Fengari ainda martelavam no peito e um sentimento de culpa arranhava de forma irritante o coração.
Além disso, parecia que até mesmo os leais comandantes estavam se rebelando contra sua autoridade, era hora de parar de “brincar de casinha” como o Mirrado disse e voltar às suas responsabilidades. Passando a mão nos cabelos, se controlou o suficiente para que Dásos recobrasse o fôlego e que Kardia voltasse a ficar de pé.
— Diga… e é bom que dessa vez não me escondam nada…
Dásos fez um resumo detalhado de tudo o que ouviu na caverna e das revelações que Geros havia feito antes de atravessarem a passagem Leste. Ílios escutou em silêncio a história até o final, refazendo mentalmente todos os passos que deu antes de seus domínios ruírem. O ataque, a defesa, o combate em si seguiu o fluxo esperado e exceto pela falha no fechamento do túnel, nada indicava que um traidor pudesse estar interferindo na batalha.
Além disso, Ílios confiava cegamente nas capacidades da comandante, se ela tivesse armado contra os lobos, eles não estariam tendo essa conversa agora.
— Não poderia ser… — Kardia murmurou.
— É claro que também não acredito que Fídes fez algo do tipo e…
Mas Dásos foi interrompido pelo líder:
— Continue Kardia, no que está pensando.
— Bem — suspirou, encostando o punho nos lábios — Eu também tenho algo para contar. Sei que não vão gostar disso, mas não podíamos perder essa oportunidade, então, peço desculpas de antemão.
— O que você aprontou, Mirrado? — Dásos perguntou desconfiado.
— Eu descobri um amuleto de proteção escondido no interior da floresta, bem onde reencontramos Ílios. Acredito que lá seja o centro da barreira de proteção, não dá para perceber andando pelo chão, mas existem muitos arranjos de ervas ao redor do Jacarandá.
Dásos ergueu a sobrancelha e fez uma careta de descaso:
— Era isso que você estava procurando, ajoelhado daquele jeito no escuro? Me deu um baita susto…
— Não terminei — interrompeu — não era um amuleto comum, era um pacto…
— Ah não, não, não, não! — O brutamontes se levantou e puxou o homem pelo xale. — Você não fez isso, Mirrado. Você prometeu que nunca mais faria e…
— Largue ele, Dásos. Deixe que termine.
— Mas Ílios, você mais do que ninguém deve…
— JÁ CHEGA! — o líder rugiu — não me façam perder o resto da paciência.
Dásos soltou o lenço preto, estava tão indignado que se não fosse pelo mau humor de Ílios teria esbofeteado a cara do outro até o dia amanhecer. Kardia por sua vez, apenas abaixou a cabeça, não poderia revidar, sabia que havia quebrado uma promessa antiga e que a curiosidade podia ter lhe custado muito mais do que um simples ferimento na mão.
— Enfim, eu acessei as lembranças e realmente foi um Urutau quem montou a barreira. — Levantando os olhos encarou o líder. — Zoe estava lá também, segurando uma criança.
— Zoe? Aquela Zoe que desertou e foi executada? Não me diga que ela… — Dásos estava perplexo.
— Continue, eu já sei sobre Allagí e o garoto — Ílios cortou.
— Como? Bem, não importa. O Urutau falou comigo, me disse para ter cuidado com a serpente. Achei que eu pudesse estar confuso, mas agora acho que era um aviso sobre nosso inimigo.
— Isso é tudo? — Ílios questionou.
Kardia já havia decidido omitir alguns pontos até que entendesse melhor tudo o que viu e ouviu naquela lembrança, mesmo que estivesse se sentindo culpado, era melhor manter a cautela, principalmente agora que o líder estava tão agitado.
— Sim, meu senhor. Isso é tudo.
— Ótimo! Descansem por hoje, amanhã voltaremos às montanhas.
— Mas… meu senhor — Kardia falava aflito — eu gostaria de ficar mais um pouco e investigar a floresta, o Urutau e…
— Não! — Ílios levantou e começou a andar em direção à cabana. — Você irá também. Desculpe Dásos, sei que acabou de chegar, mas irei precisar da ajuda dos dois. Vamos buscar a alcateia.
— Perdão? — Dásos falou confuso — Buscar?
— Sim! Iremos trazer todos para a floresta do Urutau.
Ílios se afastou resoluto enquanto os comandantes se recuperavam do choque, ambos entendiam os motivos e a circunstância, mas ainda assim a decisão soava precipitada. De qualquer forma, não seria nada benéfico questionar o líder nesse momento, levando em consideração o seu humor atual apenas assumiriam o risco de iniciar uma luta desnecessária.
Dásos esperou que o Ílios se afastasse o suficiente:
— É melhor deixar ele sozinho por um tempo, apesar de que, não acredito que vá mudar de opinião.
Kardia não respondeu, continuava com os olhos perdidos e isso estava incomodando o brutamontes além do que podia controlar.
— Vem aqui, Mirrado! — Dásos sussurrou puxando o braço de Kardia — precisamos conversar. A sós!
Os dois caminharam para dentro da floresta até que o som das águas agitadas do riacho fossem abafadas pelo canto das corujas e morcegos.
— Me solta! — Kardia puxou o punho. — Estamos longe o suficiente, sobre o que quer falar?
— Desembucha, Mirrado. O que mais aconteceu naquele lugar?
— Do que você está falando? Eu já contei tudo o que…
— Para de enrolar! Eu sei bem que você está escondendo alguma coisa — cortou — Ílios só não percebeu porque está fora de si, mas é melhor você tomar mais cuidado…
Kardia suspirou e esfregou a têmpora direita, estava claro que Dásos não o deixaria em paz. Mesmo que gostasse de zombar da inteligência do brutamontes tinha que admitir que o homem era perspicaz, principalmente quando se tratava dos dois garotos que ajudou a criar. Talvez por terem passado tanto tempo juntos era muito difícil enganá-lo.
Na verdade, era assim desde que se lembrava, do mais visível até o mais bem guardado dos sentimentos, nenhum ficava oculto diante daquele homem. Todos os segredos se revelavam como pinturas nas páginas de um livro aberto, que ele podia folhear quando bem quisesse.
Kardia não achou ruim no começo, sempre teve dificuldade em se expressar e ter alguém que o entendia tão facilmente era um alívio. Com o tempo, porém, percebeu que alguns pensamentos não deveriam ser compartilhados e que era melhor que alguns sentimentos nunca fossem descobertos.
— Vamos lá! Eu estou preocupado com você. — Dásos segurou no ombro de Kardia, arrancando-o dos devaneios. — Ílios e eu sabemos o quanto você é forte, não precisa lidar com tudo sozinho.
— Tá bom, tá bom… agora para com essa baboseira. — Afastou a mão do outro com um tapa. — Eu não falei tudo porque eu não sei exatamente o quanto do que vi era real.
— Você acha que era uma armadilha?
— Não tenho certeza… mas… foi igual a última vez…
Os olhos azuis de Kardia brilharam em direção à lua e por alguns segundos, sua mente voou livre pelo céu, não tinham nuvens naquela noite também, só o gosto do sangue encobria o ar com a ferrugem. Havia banido essas lembranças para o mais profundo da alma, mas por algum motivo, o sabor ingrato do passado estava persistindo em infectar novamente o paladar.
— Eu… nunca contei tudo o que aconteceu naquela noite a vocês… — Kardia tocou o pescoço por cima do xale. — Parecia tão irreal…
Dásos acariciou a cabeça do comandante com uma das mãos e com a outra segurou gentilmente o punho que se fechava sobre a garganta marcada pela cicatriz.
— Mirrado… Não se preocupe, eu não vou a lugar nenhum.
O coração de Kardia tremeu por um segundo, por mais doloroso que fosse relembrar tudo aquilo, sabia que o homem à sua frente jamais o abandonaria, mesmo que o que ouvisse a partir de agora revelasse o quão fraco e mesquinho o “Mirrado” poderia ser.
Com um longo suspiro, juntou toda a coragem que conseguiu. Despindo-se da máscara carrancuda e inabalável que escondia quem era de verdade, pode voltar ao dia em que sua fraqueza foi marcada na pele, o dia em que perdeu seu orgulho.
— Está bem… — Kardia encarou o rosto gentil que sempre o acalmava. — Vou te contar tudo, mas… por favor… prometa que não vai me odiar.
Dásos sorriu:
— Não importa o que aconteceu, ou o que você fez, eu jamais conseguiria gostar menos de você.
— Como pode ter tanta certeza? — Os olhos azuis brilharam marejados.
— Porque eu já tentei e não consegui.
Publicado por:
- GSK
-
Escrevendo, desenhando, editando e fazendo mais algumas artes por ai.
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