A Maldição do Lobo Vermelho - Capítulo 13 - Allagí
Uma ansiedade incomum acelerava o coração de Fengari e trazia uma tinge rosada à face. Era estranho o quanto estava consciente de cada objeto ao redor, principalmente do pente de dentes largos que era cutucado e movido de posição constantemente sobre a cama improvisada.
Esta também mereceu atenção redobrada, tendo a palha limpa e afofada de forma quase compulsiva durante os minutos agitados que precederam a chegada do ruivo ao casebre. Pensando nisso, desde que acordou deitado sozinho, não teve paz no espírito e a sensação de abandono só diminuiu ao escutar a voz zombeteira de Ílios.
A frase dita de forma tão despretensiosa havia acalmado as inseguranças do garoto, mas por algum motivo, ainda se sentia agitado. Lembrar dela, na verdade, fazia o coração errar uma batida.
Quando a mãe partiu, a solidão fez com que a casa pequena se transformasse em uma prisão sem fim. Por várias semanas esperou ouvir a voz doce e animada, mas apenas os sons da floresta ecoavam pelas paredes de madeira antiga. Com o passar do tempo, a necessidade de conversar e ser respondido ficou maior e a angústia tomou conta da alma, foi quando resolveu se aventurar novamente pelas ruas apertadas da vila.
Tudo o que ele queria era um retorno ao seu “bom dia”, mas o que recebeu foi um olho roxo e algumas costelas fraturadas. Mesmo antes, sua mãe era chamada de bruxa e nunca foi bem vinda entre as pessoas da cidadezinha, porém, ninguém tinha coragem de agredi-la ou se meter com o seu pequeno tesouro.
Depois que ela se foi as coisas mudaram bastante, a raiva e o desprezo que os habitantes não podiam despejar na mulher por medo, foram facilmente direcionados a criança. Fengari nunca entendeu o que aquelas palavras maldosas significavam, só sabia que não aceitaria que sua mãe fosse tratada dessa forma e por isso se meteu em inúmeras brigas.
Ele não demorou muito a perceber que era melhor passar fome a mendigar qualquer atenção daqueles abutres mesquinhos. Com o tempo acabou se acostumando e a escuridão e o silêncio já não pareciam tão ruins. As coisas deveriam ter continuado assim se os visitantes inesperados não o tivessem lembrado de como era assustador acordar e não ter ninguém por perto.
Afundando a cabeça entre os braços cruzados sobre a perna o garoto murmurou:
— Porque as coisas tem que ser assim? No que é que eu estava pensando…
— Provavelmente em mim! — Ílios riu convencido ao passar pela porta entreaberta. — Acertei?
Pego de guarda baixa, Fengari pulou da cama e respondeu sem jeito:
— Não seja idiota. Porque eu estaria pensando em você?
— Hummm… — Com uma tristeza fingida, o homem pegou o pente e sentou na cama. — Talvez estivesse se sentindo culpado depois de me ofender agorinha…
O coração do garoto ainda estava acelerado pelo susto quando a vergonha corou-lhe a face.
— Eu… sinto muito… eu não quis ofender… é só que você realmente estava com cheiro de cachorro molhado antes…
Ílios estreitou os olhos enquanto encarava a figura de bochechas vermelhas que caminhava em sua direção. Por mais que Kardia exagerasse na maior parte do tempo, ele não podia ignorar suas suspeitas desta vez. Realmente havia algo de estranho com o garoto e talvez essa fosse uma boa hora para conseguir algumas respostas.
— Porque você parou? — Ílios estendeu o pente na direção de Fengari. — Não está pensando em fugir do seu compromisso, não é?
O menino hesitou por alguns instantes. A expressão séria com que o homem havia lhe encarando fez os pelos dos braços se arrepiarem e uma sensação de perigo tomou conta do corpo todo.
— Me… me desculpe… — O garoto se encolheu. — Eu não queria te deixar bravo.
O ruivo sorriu vitorioso e o puxou pela mão:
— Vamos, sente-se aqui e comece logo.
Ainda receoso, obedeceu o comando e subiu na cama de palha, ficando o mais distante possível. Ele sabia o que tinha que fazer, mas estava com medo.
Por sempre ser tratado com gentileza havia esquecido, mas aquela não era uma pessoa comum. Assim como há instantes atrás e também quando Ílios arrancou o coração de um homem para lhe salvar, seus olhos eram mais afiados do que qualquer arma de caça que já tivesse visto, era como se o próprio ar ao seu redor pudesse cortar.
— Arre… o que está acontecendo? — Ílios perguntou virando na direção do menino — Eu não estou mais bravo. Na verdade eu não fiquei bravo, estava só brincando… não fique assim.
Com toda certeza essa não era uma pessoa comum, não era possível que alguém pudesse ser tão ameaçador em um momento e parecer completamente inocente no outro. Talvez fosse a cabeça inclinada e a expressão confusa em seu rosto, mas Fengari não pode evitar compará-lo a um filhote de cachorro que não entende bem as reações do dono e isso o fez sorrir aliviado.
— Tudo bem, apenas vire pra frente — o garoto resmungou empurrando os ombros de Ílios — se não começarmos logo ficaremos assim a noite toda.
Claro, era mais fácil falar do que fazer. Por mais que tentasse parecer confiante, as mãos trêmulas denunciavam o nervosismo. Não havia nada de muito especial no ato de pentear os cabelos de alguém, mas Fengari sentia como se estivesse prestes a voltar no tempo, se fechasse os olhos, podia até mesmo sentir o perfume da mãe.
Involuntariamente, levou uma das longas mechas ruivas até o nariz.
— Que cara é essa? — Ílios tombou a cabeça, encostando nas mãos desatentas. — Ainda está com o cheiro ruim?
O garoto piscou algumas vezes e virou o rosto a fim de esconder o constrangimento:
— Não… é só que… me lembrei de algumas coisas.
Mesmo sem explicações era fácil entender o que se passava na cabeça do pequeno. Depois que os lobos fugiram das masmorras, várias crianças tinham esses mesmo olhos tristes e vazios, até mesmo o líder do Guarás não conseguia esconder completamente a expressão que refletia o quão desamparado seu coração estava.
— Você… se lembrou da sua mãe, não é? — Ílios murmurou endireitando a postura — porque não me conta um pouco mais sobre ela? Ela devia ser uma mulher muito forte.
— Ela era mesmo! — Um sorriso discreto iluminou o rosto. — Se ela estivesse aqui você ia ver, nenhum daqueles homens teria tido coragem de subir a montanha.
— É mesmo? — Essa era a oportunidade que o homem estava esperando. — E como ela se chamava?
— Zoe, Zoe Allagí — respondeu orgulhoso — ela me disse que nosso sobrenome significa “mudança” e que…
O menino continuou falando, mas Ílios já não estava prestando atenção. Por mais que ela tenha mudado o nome, ele conhecia esse sobrenome muito bem. O comandante Allagí serviu seu pai e morreu muito antes da filha desonrar a família e desertar do exército dos Guarás.
É claro que ele já havia pensado nessa hipótese, mas saber que de todas as possíveis traidoras o garoto era filho logo de Allagí estava lhe revirando as entranhas. O menino não tinha nada haver com isso, mas como o encararia depois de descobrir o fato, ou pior, como Fengari reagiria se soubesse que o homem que abrigou debaixo do próprio teto havia lhe tomado seu bem mais precioso?
Ílios balançou a cabeça algumas vezes, não era hora para pensar nessas coisas, precisava focar em entender melhor a situação. O garoto não tinha cheiro de lobo e também não se parecia com um. Seria possível ser um mestiço? Alguns Guarás se camuflaram no meio dos humanos e construíram famílias sem nunca serem descobertos, ele não seria o primeiro e nem o último meio lobo a andar pela terra.
— E seu pai, como se chamava? — o ruivo interrompeu o raciocínio do menino.
— Meu pai? Bem… — Fengari parou de escovar os fios vermelhos e pensou um pouco. — Eu não me lembro muito bem dele. Sempre que eu tento, minhas memórias ficam confusas e minha cabeça dói.
— Entendo, mas vocês sempre moraram aqui? — Ílios não queria desistir.
— Na verdade não. Nós moramos em muitos lugares antes de chegar aqui. Minha mãe falava que não devíamos nos envolver na guerra e por isso tínhamos que achar um lugar onde nem lobos nem panteras pudessem nos encontrar.
Não podia ser diferente, não haviam muitos lugares seguros para um Guarás viver fora das muralhas de pedra do reino. Se não pudesse se camuflar em meio aos humanos seria presa fácil e para um desertor com uma criança mestiça as coisas não devem ter sido nada fáceis.
— Faz sentido e você nunca conheceu a família dos seus pais? Ou os amigos deles? — o ruivo provocou.
— Como a gente se mudava muito nunca teve ninguém — a voz de Fengari tremeu de leve — sempre fomos só minha mãe e eu.
Ílios vacilou por um momento, as coisas não estavam indo conforme o planejado. Mesmo tendo descoberto o que queria, se soubesse antes, nunca teria tocado no assunto, mas agora não podia evitar pensar em tudo que ouviu.
O silêncio repentino chamou atenção de Fengari:
— Desculpe, eu não quis te chatear com essas coisas.
— De forma nenhuma você me chateou — forçando um sorriso o ruivo continuou — foi eu quem perguntou, lembra?
— Oh! Eu lembrei de uma coisa. Minha mãe sempre visitava o Jacarandá de manhã, antes do sol nascer. Uma vez eu a segui, ela estava conversando com alguém que eu não conseguia ver direito, mas — riu do pensamento — posso jurar que essa pessoa tinha asas…
— Asas? — Ílios perguntou surpreso.
— Sim, sei que deve ser um sonho, mas pareceu tão real que ficou gravado na minha cabeça. De qualquer forma, agora não acho tão impossível, já que conheci um lobo falante debaixo do Jacarandá.
O garoto continuava rindo da possibilidade enquanto desembaraçava os fios. É claro que uma pessoa com asas só poderia ser um sonho ou alucinação, por isso nunca pensou muito no assunto. Nunca viu um lobo ou pantera pessoalmente e na sua cabeça, eles eram apenas animais ferozes que lutavam sem se importar com quem estava no caminho.
Ainda pensava assim, mas depois de discutir com a fera vermelha, uma pessoa alada já não parecia tão irreal, era possível que sua mãe tivesse um amigo no final das contas. Se esse era o caso, existia alguém além dele que morava na floresta e essa pessoa poderia saber para onde Zoe correu tão desesperada e porque voltou naquela situação, apenas para se despedir.
Por mais que o coração doesse ao lembrar da cena, um fio de esperança iluminou seus olhos, parecia que finalmente as coisas estavam começando a mudar para melhor e isso tudo era graças ao homem que aguardava paciente na cama. Ele era um completo estranho, que apareceu repentinamente e poderia sumir da mesma forma, mas seu jeito gentil e zombeteiro faziam com que Fengari desejasse o contrário.
Ílios continuou calado, mesmo depois que o garoto parou de falar. Kardia tinha razão, afinal, não haviam mais dúvidas que um Urutau era o responsável pela barreira da floresta e que a criança era o alvo de sua proteção. Fazia sentido que Zoe tivesse recorrido à magia para esconder o filho, mas o que poderia ter oferecido em troca do pacto? Ficou claro que os humanos não eram afetados, então ela estava ali para evitar os lobos?
A mente de Ílios estava agitada e o coração bagunçado, por mais que quisesse continuar perguntando não sabia se conseguiria encarar novamente aqueles olhos tristes. Precisava se afastar dali, não tinha o direito de permanecer no mesmo lugar que o garoto, muito menos fingir que nada havia mudado. Já era hora de deixar essa vida comum e tranquila e voltar para o seu povo e suas obrigações como líder.
— Prontinho, espero que goste… eu acabei me empolgando um pouco — Fengari coçou a cabeça sem jeito.
Ílios tremeu ao escutar a voz que continuava doce sem suspeitar de nada. Um gosto amargo preencheu a boca e um impulso forte o fez levantar e caminhar em direção a porta, precisava partir o quanto antes.
Fengari seguiu o homem e segurou seu pulso, impedindo que atravessasse o limiar:
— Você não gostou? — a voz saiu falhada — Me desculpe, eu prometo que farei melhor da próxima vez.
— Não é isso… eu só preciso ir agora. — suspirou.
O ruivo puxou o braço, se desvencilhando das mãos aflitas e a passos largos, marchou para fora. Os cabelos estavam presos em uma trança embutida, que balançava acompanhando o movimento do corpo, era o mesmo penteado que Zoe usava daquela vez que saiu pela porta e nunca mais entrou.
Por um segundo era como se o tempo tivesse voltado e toda a dor e sofrimento que o garoto entalhou nas paredes de madeira escura tivessem voltado para o atormentar. Desesperado, estendeu a mão, tentando agarrar a figura borrada da mãe que se afastava lentamente, mas quanto mais se esticava, mais distante ficava da trança vermelha. Não conseguiu conter as lágrimas e tombou de joelhos sob o peso da agonia.
Ílios podia ouvir o arfar desolado mas não parou, sabia que se virasse para trás não conseguiria deixá-lo. Não era a primeira vez que precisava colocar o interesse do reino acima dos seus e seria melhor para o garoto se nunca mais se vissem de qualquer forma. Entretanto, era como se a cada passo que desse, um novo rasgo surgisse no coração estraçalhado e nenhuma dessas desculpas fossem o suficiente para costurá-lo de volta.
— Você prometeu… — a voz embargada de Fengari cortava como o aço.
Ílios cerrou os punhos e apertou a mandíbula com força, se conseguisse dar o próximo passo seria capaz de continuar em frente, mas os braços finos que contornaram sua cintura incapacitaram o guerreiro. O movimento o surpreendeu e nenhuma defesa seria eficiente contra as lágrimas quentes ou o pulsar descompassado do coração que tremia agarrado a suas costas.
Fengari apertou o abraço com todas as forças que tinha, era como se estivesse segurando o último fôlego de vida entre as mãos:
— Você prometeu… que nunca mais eu estaria só… — soluçou.
Naquele momento o homem soube que havia perdido a batalha, todos os pensamentos que tornavam a mente barulhenta se calaram e apenas a voz doce que lhe acordou daquele pesadelo ressoava em seus ouvidos.
— Você tem razão… — Ílios se desvencilhou do abraço e virou para encarar o garoto. — Nós fizemos uma promessa.
Fengari tentava decifrar a expressão complicada do ruivo, parecia que ele estava prestes a tomar a decisão mais difícil de sua vida. Os olhos brilhavam afiados e o maxilar estava tenso, até a respiração estava pesada e ruidosa, nunca o vira tão sério antes.
— Desculpe… eu não devia ter… — o garoto abaixou a cabeça tentando se explicar sem sucesso.
Ílios não estava ouvindo, seja lá sobre o que ele estivesse deliberando havia tomado sua decisão. Afrouxando o penteado, separou uma mecha fina da trança que prendia os cabelos e com um movimento rápido da adaga cortou os fios longos.
— O que…o que você está fazendo? — Fengari perguntou assustado.
O ruivo continuou em silêncio enquanto dava várias voltas com a mecha vermelha no cabo da adaga. O garoto observava atônito, mas não ousou questionar, sabia que era algo importante e por isso apenas esperou até que o ritual estivesse concluído. Na última volta, Ílios amarrou as pontas e as prendeu em forma de uma trança curta que pendia sobre a lâmina afiada.
— Não é o jeito certo de se fazer, mas… — o ruivo respirou fundo antes de continuar — vai servir por enquanto.
Dando um passo para trás se ajoelhou sobre a perna direita e puxando gentilmente o braço do garoto, depositou a adaga em sua mão.
— Guarde isso com você — disse solenemente — e mesmo se o mundo te esconder, por traz de muros e prisões, te encontrarei. Eu juro que nunca irei esquecer essa promessa.
Publicado por:
- GSK
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Escrevendo, desenhando, editando e fazendo mais algumas artes por ai.
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