A Maldição do Lobo Vermelho - Capítulo 04 - Reencontro
— Acorda moleque! — Exigiu o acusador que acabara de conter o sangramento do nariz. — Já lhe dei tempo demais para descansar.
Com uma risada maldosa, o homem levantou a criança pelos cabelos. Seu corpo estava mole e não exercia mais resistência aos puxões.
— Senhor, o menino não pode mais ficar de pé, acredito que tenha aprendido a lição — disse um dos abutres que não conseguia mais assistir a tortura — é melhor deixa-lo aí e…
— Se não aguenta ver a justiça sendo feita, dê logo o fora daqui — o desfigurado esbravejou, soltando o garoto que caiu pesado no chão — amarrem o pivete naquela árvore, iremos acabar logo, logo.
Ouvindo o comando, dois subordinados arrastaram o corpo desfalecido até o tronco que estava meio encoberto pelas sombras de outras árvores. Virando-se para a corja restantes, o algoz retirou do paletó uma pequena adaga.
— Eu preferiria ter o coração arrancado a matar uma criança, mas vocês viram o que esse demônio fez a mim, se não lidarmos com ele agora, enquanto ainda é pequeno, será impossível detê-lo. Pode parecer cruel, mas estou pensando no bem de vocês e dos demais moradores honestos de nossa vila.
— De fato, como poderíamos estar a salvo com tal criatura a solta?
— Sim, ele tem razão.
E assim o julgamento foi finalizado, sem direito a defesa ou misericórdia.
Com um sorriso vitorioso estampado no rosto grotesco, o executor se virou para aplicar a sentença, mas inesperadamente, os dois que deveriam ter amarrado o garoto estavam caídos aos pés de uma figura envolta pelas sombras.
— Quem está aí? O que você está fazendo? Largue agora esse moleque se não quiser ter o mesmo fim.
Mas nenhum movimento foi feito deste lado.
— Você é surdo, é? Eu mandei largar o moleque e dar o fora daqui antes que eu perca a paciência.
Novamente suas ordens foram ignoradas.
Com a raiva explodindo nos músculos, o desfigurado avançou em direção a floresta, apontando o punhal para o desconhecido:
— Eu mandei você…
Mas algo de errado fez com que o restante da frase ficasse presa em sua garganta. Ao redor dos homens caídos, uma grossa poça de sangue escorria pelo chão e onde deveriam estar as cabeças existia apenas uma massa pegajosa.
— Q-QUEM É VOCÊ? — gaguejou paralisado.
Com a criança embalada em um dos braços, o ruivo caminhou para fora da escuridão. Os olhos cintilavam como raios e sua intensa aura assassina podia oprimir até mesmo as criaturas malignas que viviam nas profundezas da terra.
— F-FIQUE ONDE ESTÁ!
Por mais que o maldito quisesse fugir, suas pernas apenas tremiam diante do medo extremo. Enquanto isso, Ílios continuava se aproximando.
— Eu… eu não tive escolha… e-esse garoto é um demônio… eu… estava apenas protegendo os cidadãos… — A faca oscilou sem mira.
— Não, você está enganado, ele não é um demônio. — A voz calma do ruivo reverberava a ameaça e a cada passo uma nova onda de tremores assolava o antigo acusador. — Eu, por outro lado…
O pequeno soltou uma exclamação de dor antes de tentar abrir os olhos.
— Não se apresse, está tudo bem agora — Ílios o confortou.
Aproveitando o momento de distração, o homem desfigurado recuperou um pouco da coragem e avançou na direção do menino:
— Morra de uma v…
Mas nem sua frase, tampouco a ação puderam ser completadas. Sem nenhum esforço, Ílios desviou-se do golpe, desferindo um contra-ataque derradeiro.
Girando de leve o tronco, afastou a criança, enquanto projetava o braço livre como uma alabarda contra o algoz. Os dedos estalaram e as unhas afiadas perfuraram roupa, carne e ossos, retalhando o peito do oponente de uma lado ao outro.
Arregalando os olhos, o homem que incitou toda aquela comoção não parecia acreditar no desfecho repentino e mesmo com o sangue escorrendo pela boca, tentou balbuciar suas últimas palavras:
— C-como…? Como é p-poss…
— Como eu estava dizendo… — Ílios ergueu mais o braço para que pudesse acompanhar a luz abandonando as pupilas incrédulas. — Eu sou o demônio.
Os pés balançaram acima do chão e uma rajada escarlate desceu pelo buraco nas costas quando o homem empalado convulsionou pela última vez. O líder dos lobos não ficou satisfeito com a conclusão e com violencia, recolheu o braço, arrancando o coração do maldito no processo.
A essa altura, a multidão já havia se dispersado montanha abaixo, gritando acusações sobre o “filho da bruxa” e seus “demônios” escondidos na floresta.
— Como imaginei, coisas assim não servem nem mesmo de adubo. — Com um desprezo evidente, o ruivo cerrou o punho, transformando a carne pulsante em um amontoado pegajoso. — Matem todos!
Dois grandes pares de olhos reluzentes iluminaram a mata densa e o som grave de rosnados preencheram o ambiente.
— Sim, senhor.
Gritos de pânico ecoaram pelo sopé da montanha mas logo foram substituídos por sons agudos de carnes e ossos sendo dilacerados.
— O-o que está acontecendo? — o menino perguntou alarmado após recobrar a consciência.
Com um tom suave o líder dos lobos respondeu:
— Eu falei para não se apressar, não há mais o que temer.
Firmando o olhar, o garoto finalmente conseguiu enxergar quem o carregava:
— É você… — sussurrou.
Trazendo-o para mais próximo de seu próprio corpo, Ílios afastou as mechas negras do rosto assustado.
— Sim, sou eu.
O som da matança perdurou por um bom tempo, mas os dois pareciam não se importar. Caminhando devagar, o ruivo era guiado pela baixa, porém entusiasmada voz do pequeno:
— Vire alí, após a pedra com formato de ovo.
— Ovo? Você tem uma bela imaginação — gargalhou.
— Não ria, se parece mesmo com um — a criança retrucou franzindo a testa.
Ambos estavam feridos e exaustos, mas também estranhamente satisfeitos.
— Pronto, é ali. — Apontou tímido.
A silhueta da casa começava a se formar entre as árvores mais espaçadas.
— Você tem um belo quintal — sorriu.
Alguns segundos se passaram mas não houve resposta; a criança havia desmaiado novamente. Ílios estava com a mente inquieta e, apressando os passos, ultrapassou o limiar precário da residência.
Se pelo lado de fora a casa parecia pequena e simples, do lado de dentro nem mesmo parecia uma. Apesar de organizada, a moradia possuía apenas um cômodo que era utilizado como quarto, cozinha e depósito. A madeira com que fora construída era antiga e estava corroída por insetos, fazendo com que as luzes do crepúsculo dançassem por entre os buracos do teto e trouxessem consigo, um ar bucólico ao ambiente.
Objetos rudimentares de caça e pesca se misturavam com desgastados utensílios domésticos. O chão era de terra batida e o local usado como cama era apenas um amontoado de feno, disposto sobre um trançado de palha antigo.
Ílios se abaixou e afofou a serragem antes de, delicadamente, acomodar a criança que franziu as sobrancelhas.
— Não me deixe sozinho de novo.
A voz fraca do garoto carregava um sentimento doloroso que preencheu o peito do homem, trazendo à tona, lembranças há muito esquecidas.
Como uma promessa sincera o ruivo respondeu:
— Você nunca mais estará só.
Após acariciar os cabelos desgrenhados do pequeno, o líder dos lobos tapou seus ouvidos e um alto e melancólico uivo ecoou por toda a montanha. Alguns minutos se passaram e sons ofegantes se aproximaram da residência acompanhados de uma marcha pesada e contínua.
Do lado de fora da porta, a voz grave de Dásos entoou:
— Mestre?
— Entrem — ordenou.
Milésimos de segundos se passaram e os dois guerreiros altos atravessaram o limiar da casa. Pelo que parecia, haviam descoberto o riacho que corria nas redondezas e a atual aparência não denunciava em nada a carnificina na qual estiveram envolvidos.
— Senhor, qual a urgen… ah sim, seus ferimentos se abriram. Acalme-se, eu irei buscar algumas ervas e…
Mas Ílios o interrompeu:
— Eu não preciso de cuidados Kardia, o menino por outro lado… — Desviando o olhar, encarou o companheiro antes de voltar a contemplar o corpo inerte. — Ele… ele precisa de ajuda.
Sua voz denunciava a preocupação e as últimas palavras soaram como uma súplica.
Apesar de um pouco relutante Kardia assentiu:
— Se este é o seu desejo, farei o que estiver ao meu alcance — virando-se para o terceiro homem no recinto, continuou — Dásos, seja útil uma vez em sua vida e me traga água e panos limpos. Eu irei colher algumas ervas.
O grandalhão queria discutir as ordens, mas vendo o quão penoso seu mestre havia se tornado preferiu acertar as contas em outro momento:
— Não demorarei — rosnou.
Ao passar pela porta, os dois homens se entreolharam antes de tomarem direções diferentes, desaparecendo na escuridão da floresta.
Dentro da casa a situação não era a das melhores: a criança permanecia desacordada, com uma grave lesão na cabeça; já o homem, estava com os ferimentos abertos e o sangramento permanecia denso e contínuo.
Ílios lutava para manter a guarda, mas, por mais que não quisesse admitir, a dor excruciante e a perda de sangue estavam afetando aos poucos sua consciência. Mesmo sendo um guerreiro extraordinário, seu corpo ainda era mortal e o mesmo começou a ceder.
— Levante seu inútil! — uma voz fria e arrogante reverberou em seus ouvidos — Quantas vezes terá de apanhar até aprender a segurar uma lança direito?
Ílios piscou rapidamente para conter as lágrimas que insistiam em sair. No rosto, uma mistura triste de sangue, suor e terra escondiam os delicados traços infantis.
— Adamastos, pegue leve com o moleque, ele é apenas uma criança — a voz de Dásos soava jovial, apesar de cansada.
— Pegar leve? Você e Ánesi estão estragando esses garotos. Por um acaso não se deram conta do inferno em que vivemos? Acham mesmo que eles irão sobreviver se não aprenderem a lutar?
A criança tremeu enquanto recebia um olhar de desprezo do guerreiro imponente. Antes, sua mãe o protegia, mas agora, o havia abandonado. O deixado à mercê desse homem que deveria ser seu cuidador, mas que nunca lhe concedeu um gesto de carinho sequer.
— Não é este o caso, apenas tente não quebrar todos os dentes do moleque. Ele precisará deles para comer. — Dásos suspirou enquanto olhava a figura miserável que permanecia no chão.
— Não me diga como educar meu próprio filho. Já não basta terem afastado o “Mirrado” do treinamento, agora querem dar boa vida a Ílios também?
— Ánesi está ensinando Kardia sobre a medicina das florestas, Adamastos. Precisamos de mais gente para ajudar os doentes e feridos — retrucou.
— Não precisaríamos nos preocupar com doentes e feridos se tivéssemos mais soldados! Até quando vocês pretendem viver sob o jugo desses desgraçados?
— Adamastos… — a voz fraca de uma mulher que observava de longe chamou a atenção.
— Veja Ánesi! — o homem berrou apontando a lança na direção da criança — Eu transformarei esses inúteis em grandes guerreiros e juntos, iremos libertar nosso povo das garras dessas panteras malditas.
— Mamãe! — a criança suplicou enquanto derramava as lágrimas que prendera com muito custo — Por favor, eu não quero mais ficar aqui.
A jovem mulher lhe cedeu um último olhar vazio antes de se virar e sair.
— Mamãe!!! Por favor!!! Não me deixe sozinho de novo!
— PARE DE CHORAR E LEVANTE-SE ÍLIOS! — o pai ordenou.
— Ílios? — a voz preocupada de Kardia se misturava com o pesadelo de seu mestre.
— Por favor! Eu não quero ficar sozinho de novo. — O ruivo permanecia preso em alucinações.
— Mestre! Ílios! Acorde, isso é apenas um pesadelo — Dásos falava aflito enquanto o sacudia.
Empurrando o brutamontes para trás Kardia rosnou:
— Não vê que ele está ferido, seu idiota! Pare de sacudir!
— Ele vai ficar bem, só precisa acordar desse pesadelo — explicou retomando a postura e a intenção de chacoalhá-lo.
— Não ouse! O que deu em você? O ferimento de Ílios é grave, mas não é como se nunca o tivéssemos visto nesse estado — Kardia resmungava irritado enquanto pressionava as ervas recém colhidas nas lesões mais profundas — Agora pare de se comportar como um imbecil e segure isso aqui. Irei dar uma olhada no moleque.
Ao se levantar, apertou os olhos e encarou o companheiro, certificando-se que o mesmo havia entendido as ordens.
— Tudo bem! Eu entendi… sem sacudir… — Dásos resmungou .
— Pelos céus, o que eu fiz para merecer isso? — O homem revirou os olhos enquanto se assentava ao lado da criança desfalecida.
Kardia afastou os cabelos grudentos do garoto para examinar melhor os ferimentos da cabeça. Depois, suspendeu a blusa rasgada e apalpou o tronco raquítico:
— Hum… — Analisou o corpo franzino, com um interesse quase científico — Hum…
— Pelos céus, o que é há de tão interessante em uma criança quase morta? — Dásos praguejou.
— Exatamente o fato dela não estar morta e nem ser assim tão criança — Kardia depositou um bocado de ervas amassadas nas feridas.
— Como assim não ser “tão criança”? — repetiu perplexo.
— Bom, não que ele não seja uma criança, como eu disse, ele apenas não é tão jovem quanto aparenta ser. Olhando de forma superficial, você poderia dar a ele no máximo uns 10 anos de idade, certo? Mas pela estrutura de seu corpo, é possível que ele tem mais de 15.
— Nem ferrando! Nesse caso, ele seria mais mirrado do que você era. Um recorde! — debochou.
— Maldito! Eu não era “mirrado”, eu apenas estava desnutrido, assim como esse garoto. Agora entendo porque Ílios se afeiçoou tão rápido ao moleque.
Abanando a poeira das vestes, Kardia levantou e foi até a saída.
— Onde você vai?
— Não é óbvio? Irei buscar alguma coisa para o pirralho comer. Faça algo útil na sua vida miserável e cuide dos dois enquanto isso.
Kardia passou pelo limiar segundos antes do grande machado de Dásos abrir um buraco largo no beiral da porta.
— Idiota!
— Idiota!!!
Publicado por:
- GSK
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Escrevendo, desenhando, editando e fazendo mais algumas artes por ai.
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